O Projeto
O projeto de pesquisa e entrevistas “Rubens Gerchman: com a demissão no bolso” teve como meta ampliar o acervo histórico e documental sobre o pensamento pedagógico que norteou a fundação da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage em 1975, no Rio de Janeiro, pelo artista Rubens Gerchman. Sob a administração de Gerchman, entre 1975 e 1979, a EAV tornou-se o epicentro cultural do Rio de Janeiro e ficou configurada como um espaço de resistência ao regime autoritário que governava o Brasil no período, a ditadura militar. A convivência de alunos e professores em cursos “livres”, o lazer integrado ao aprendizado artístico e o trânsito aberto entre as diversas disciplinas implementadas são apenas alguns dos aspectos desta didática peculiar que uniu arte e educação, que este estudo aqui apresentado registra e torna disponível universalmente. A experiência pedagógica e livre da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage durante a gestão de Gerchman, a partir de agora, serve como referência didática para a prática das artes plurais, além de atuar construtivamente na história da arte do Brasil.
O acervo, mais rico e completo graças ao Projeto iniciado junto à Casa Daros em 2014 e continuado em 2015 com o apoio da ArtEdu Stiftung passou a contar com o registro de depoimentos históricos e inéditos, feitos em gravação audiovisual. O IRG procurou, ao longo do processo, abranger todas as atividades que ocorriam na escola e em seu entorno criativo e de seu diretor Rubens Gerchman.
Foram realizadas ao total 25 entrevistas com ex- alunos, professores, artistas, curadores e críticos de arte, poetas, músicos, cineastas, formadores de opinião, entre outros.
Abaixo, a relação de todos os entrevistados:
Helio Eichbauer (cenógrafo e professor), Heloísa Buarque de Hollanda (poetisa e professora), Carlos Vergara (artista), Roberto Magalhães (artista), Sérgio Santeiro (cineasta e professor), Xico Chaves (artista e gestor cultural), Rosa Magalhães (carnavalesca e professora), Frederico Moraes (crítico de arte), Luiz Ernesto (artista e professor), Jards Macalé (músico), Bernardo Vilhena (poeta), Walter Carvalho (diretor de fotografia), Daniel Senise (artista), João Carlos Horta (cineasta), Armando Strozemberg (jornalista e publicitário), Anna Bella Geiger (artista), Paulo Sérgio Duarte (curador), Antônio Dias (artista),Lauro Cavalcanti (arquiteto e curador), Celso Guimarães (fotógrafo e professor), Claudia Saldanha (ex-diretora da Escola de Artes Visuais e curadora), Marcos Flaksman (cenógrafo e professor) , Ney Matogrosso (cantor e performer), Antônio Grosso (gravurista e professor) e Tunga (artista).
Após os registros em vídeo, o material bruto foi transcrito e traduzido para o inglês de forma integral e aqui estão disponíveis para consulta.
00:03
ENTREVISTADOR: Pra começar, Bernardo, qual é a tua visão da história, desse momento histórico dessa questão política da esquerda e dessa contracultura de artistas que existia nesse período um pouco anterior, no início dos anos setenta.
BERNARDO: A vida é feita de amor e guerra e eu acho que a gente tem que escolher qual é o seu partido e de preferência “hay que endurecer pero sin perder la ternura”. Então eu acho que tem pessoas que realmente tem um espírito mais militarista mesmo e tem uma visão de que as coisas devem ser resolvidas nas armas, tem uma disposição pra luta e que foi o caso de parte da minha geração que escolheu a luta armada como caminho de libertação da ditadura.
01:08
ENTREVISTADOR: Vamos só dar uma ajeitadinha em um negócio aqui, mil desculpas. Só pra não/está muito caído.
TERCEIRA PESSOA: O que está aqui em cima da cômoda, aqui atrás, não está vazando não?
ENTREVISTADOR: Não.
TERCEIRA PESSOA: Não né?!
ENTREVISTADOR: Desculpa, Bernardo. Mil desculpas, tá?
BERNARDO: Tem que começar de novo?
SEGUNDA PESSOA: Não, pode continuar. Se quiser começar, pra não perder o fio da meada
BERNARDO: O fio da meada eu não vou achar ((risos)). Mas/eu vou continuar, que é melhor, talvez. E, era isso né, estou respondendo sobre o que/foi isso que você perguntou né.
ENTREVISTADOR: Você falava de amor e guerra, a parte que foi militarizada na sua geração.
BERNARDO: Exatamente. E tem outra parte, que é a contracultura, que são as pessoas que mantém a vida, o sonho, a utopia, dentro do cotidiano, porque na verdade a maioria das pessoas só quer é viver, e tem pessoas que não sabem nem escolher o regime, mas de qualquer forma, em qualquer luta política eu acho que tem que haver os exércitos, sem dúvida, mas tem que haver uma vida normal, cotidiana, porque a vida é uma só, não adianta tu dizer: - Tive uma vida de luta, tive isso, tive aquilo outro. Não viveu porra nenhuma. Então acho que esse balanço entre as pessoas que escolhem a luta armada e as pessoas que escolhem a arte, a vida cotidiana como forma de luta e de manter a normalidade/porque o duro é você manter a normalidade, ali é que é uma batalha séria, que precisa ser feita, e acho que no final, dentro do caso brasileiro, eu acho que a vitória foi de todos que eram contra a ditadura, sem distinção nenhuma, na minha opinião.
03:05
ENTREVISTADOR: E você se inseria aonde nisso?
BERNARDO: Eu sou artista, minha luta sempre foi pelo cotidiano, pelo sonho, pela alegria das pessoas, pelo direito de escolha. Eu sou do sim e do amor ((risos)).
03:25
ENTREVISTADOR: Sobre a produção (editora e...). Você tinha falado que queria tirar os óculos. Você quer ficar com os óculos? Porque às vezes (...)
BERNARDO: Está fazendo um reflexo, não?
03:36
ENTREVISTADOR: Até faz um pouquinho, mas eu acho que não é um problema não, é só que às vezes a gente esquece que está de óculos e você falou que queria tirar os óculos.
BERNARDO: Não, estou legal.
03:46
ENTREVISTADOR: A produção editorial da época, parece assim, na nossa pesquisa, o que transparece, o que explode aos olhos nossos, é a quantidade de publicação que tinha, a quantidade de ideias que surgiam e de textos e poesias que eram produzidos. Eu queria que você contextualizasse, me contasse um pouco sobre o que era essa produção editorial e porque você acha que existia tanto texto, tanta coisa escrita.
BERNARDO: Existe uma coisa que no Brasil não é muito analisada, que é o fim da Segunda Guerra, que transformou barbaramente a vida na Europa, sobretudo, e a resposta que a sociedade e os artistas deram foi inicialmente a contracultura, mas a grande resposta, na minha opinião, é a cultura pop, é a pop art. É você rever o cotidiano, você esquecer o preto, o branco e o cinza. Você trabalhar, lembrar que os carros e os telefones não são só pretos, saber que o design é importante na vida das pessoas, que os seus objetos cotidianos tem que trazer uma beleza, que as revistas passaram a ser muito mais importantes que os jornais. Isso é uma marca super interessante. Teve uma proliferação inicial de revistas, e revistas trazendo as artes plásticas com muito mais qualidade, trazendo fotografia colorida, que era uma super novidade em termos impressos, o design com suas cores todas, a arquitetura, então passou a moda, então acho que teve uma revisita no cotidiano das pessoas e que a arte pop foi super influenciada por isso e que na minha visão, não é que ela seja uma arte de consumo para ser consumida, ela é uma arte que tinha a capacidade de perceber a ansiedade das pessoas e os seus contemporâneos. Essas pessoas sendo seus contemporâneos, é um compromisso que você tem com elas, em primeiro lugar.
06:01
ENTREVISTADOR: Falando um pouco sobra a Malasartes. Na tua memória, como é que ela surgiu, você lembra?
BERNARDO: A Malasartes tinha um núcleo inicial. Eu acho que o Zilio é um cara muito importante nisso, o Zilio é um cara agregador e ele conseguiu trazer diferentes pessoas para aquele núcleo e foi um momento que eu acho muito importante, porque ali eu acho que marca um rito de passagem nas artes plásticas, que era essa geração maravilhosa de pintores que a gente teve pra geração de arte conceitual e na poesia também, aconteceu a mesma coisa, que era da poesia moderna brasileira para a poesia marginal, que é uma transformação séria que eu acho que Malasartes talvez tenha sido a primeira revista fora do circuito marginal que publicou poetas importantes como Leomar Fróes, Ana Cristina César, Cacaso, Chacal, Francisco Alvim e vários outros poetas da geração e que logo em seguida estariam na antologia da Heloísa Buarque de Hollanda, 26 poetas hoje, que acho que é o livro mais importante da época.
07:26
ENTREVISTADOR: Como é que você chegou até a revista?
BERNARDO: Na verdade eu era amigo do Rubem, era amigo do Vergara e era amigo do Cildo. E eram pessoas que/o Vergara já estava fazendo um trabalho com eles sobre o carnaval; o Cildo, a gente jogava bola juntos sabe, tinha uma intimidade muito grande e o Rubem, a gente nasceu no mesmo dia, nós somos de dez de janeiro, somos capricornianos autênticos, aliás sempre programamos fazer uma festa/ - vamos fazer uma grande festa, e acabou que não/mas o bacana mesmo era a promessa, a promessa é uma dádiva que, se souber cultivar se transforma em esperança e a vida fica mais divertida. Então acho que fui muito bem recebido ali, na verdade eu era uma ave fora no ninho porque eu era um poeta, e um poeta marginal, mas tive o prazer de inventar o nome da revista, que pra mim já é um/no meio de pessoas tão queridas e brilhantes, então eu tive essa sorte desse nome ser aceito e o convívio era maravilhoso, as reuniões eram fantásticas, e a gente fazia reunião aqui no Rio, em diversas casas, tinha uma coisa meio cigana na reunião e algumas reuniões em São Paulo, sempre na casa do Zé Resende, aquela casa maravilhosa, e eu me lembro muito das viagens para São Paulo, que a gente tinha um/era no Electra, que era aquele avião da Vale, que atrás tinha uma/da Vale não, era da Ponte Aérea, atrás tinha uma salinha com uns seis ou oito lugares, então a gente já ia ali bebendo whisky, já começando a esquentar a reunião, era uma conversa ótima, e geralmente quando a reunião era em São Paulo era aos sábados pra gente não pegar trânsito e aquela coisa, trânsito de aeroporto sobretudo, e era muito divertido.
09:32
ENTREVISTADOR: Por que esse nome, você lembra por que você (...)
BERNARDO: Malasartes? Olha, Malasartes é um/primeiro que era uma revista sobre arte, esse foi o primeiro ponto, segundo eu estava/como eu era um poeta em início de carreira, eu estava sofrendo uma influência do modernismo brasileiro muito grande e o Malasartes era uma personagem do Mário de Andrade assim, bem/estava esse personagem. Veio daí a minha/eu não me lembro com precisão, mas certamente, acho que eu devo isso ao Mário de Andrade.
10:10
ENTREVISTADOR: Você acha que pra eles também tinha alguma revisita ao modernismo, para os artistas?
BERNARDO: Eu acho que o modernismo é a grande referência da arte brasileira do século vinte, eu acho que aí a gente teve uma/a nossa passagem do romantismo pra arte moderna, então eu acho que tem uma influencia brutal nas gerações seguintes.
10:37
ENTREVISTADOR: E qual foi a repercussão que a Malasartes teve, como foi a recepção, como é que era a distribuição dela?
BERNARDO: A distribuição era em jornaleiro, normal e tal. A gente agradece ao (Newman). Puta merda, desculpa, esqueci o nome. Não é o (Newman), é o grande bibliófilo paulista.
11:07
ENTREVISTADOR: Você está tentando lembrar de quem?
BERNARDO: É o que pagava a revista, que era o único anunciante que a gente tinha.
TERCEIRA PESSOA: A distribuição da Malasartes era muito boa.
BERNARDO: Era. Bom, a distribuição ia pra as bancas e era distribuída pela/era uma grande distribuidora de revistas que tinha aqui no Rio de Janeiro, Fernando Schneider, se não me engano, e a repercussão foi muito boa, foi muito legal porque eles/a década de setenta é uma década que teve uma importância muito grande nas artes plásticas porque a gente tinha um museu muito vivo, que era o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O Museu de Arte Moderna tinha aquela coisa dos Domingos da Criação do Frederico e aquilo funcionava, aquilo era maravilhoso. Eu ia pra lá fotografar, era um momento de muita energia, muita vontade de fazer as coisas. Então os anos setenta tiveram essa característica, as pessoas queriam mostrar serviço, queriam mostrar trabalho, e o Rio de Janeiro estava vivendo uma fase muito legal, a cidade estava muito bem porque tinha alguns redutos de encontros que funcionavam, que faziam a cidade ferver, desde de manhã na praia, lá com as (dunas), aquela coisa toda, tinha a turma do Arpoador também, e também a noite, no Baixo Leblon. Tinha um negócio na cidade que era muito concentrado, as pessoas se/o Baixo Leblon era uma coisa muito grande, não era um bar, era um pedaço do final da Zona Sul que era tomado, ficava ali e ali rolava de tudo, tudo podia, não existia polícia, não tinha nada, ali era um espaço que sabe, qualquer cidade do mundo tem esse espaço. Tem lugares que a polícia não vai porque não interessa, não precisa, porque o lugar tem ali uma auto-gerência que a coisa funciona normal, não tem nenhum problema pra cidade, então isso ali era uma/esses redutos eram redutos muito criativos. Eu brinco sempre dizendo, sobretudo com meus amigos paulistas, eu digo que a praia é um grande escritório, era um grande escritório, porque aparecia sempre alguém fazendo alguma coisa, que precisava de outro alguém, que fazia e ia ali. – Ah, mas fulano, o fulano acabou de fazer a peça tal. Ou: - fulano acabou de não sei o quê; ai ia juntado o cenógrafo... e acontecia ((risos)). Então essas funções de produzir as coisas eram muito realizadas ou na praia ou no Baixo Leblon. Eram os lugares de encontro, não tinha internet, o telefone era uma merda, ninguém tinha escritório, não existia essa coisa de agora, de ter um espaço. - Ah eu tenho um espaço ali. Não tinha nada disso. Era um improviso, era de casa/todo mundo morando sozinho e também essa coisa da comunidade, de algumas pessoas terem vindo de comunidades, que eu acho uma coisa muito interessante. Nunca vivi em comunidade, mas eu acho que a comunidade é o grande inspirador dos coletivos de arte e a Nuvem Cigana, que era um grupo que eu participava, de poesia, foi um protótipo de coletivo. Não era um coletivo orientado só pra uma arte, era um coletivo multidisciplinar e eu acho que foi isso que fez o Rubem se apaixonar pelas Artimanhas, como a gente chamava, da Nuvem Cigana, que era um espetáculo multidisciplinar, onde você tinha teatro, tinha poesia, tinha música, tinha artes plásticas, tinha dança, e acabava em carnaval. E o Parque Laje foi o grande auditório e a grande sede das Artimanhas da Nuvem Cigana. Ali a gente teve uma receptividade enorme, e o Rubens, pelo que a gente muito conversou, ele tinha esse desejo da escola de artes visuais, ele entendia que uma escola de artes não podia ser dirigida só àquela arte, ela tinha que ser uma escola porosa, ela tinha que receber tudo pras pessoas poderem ter um diálogo mais rico e mais atualizado das expectativas dos artistas, dos projetos e das formas de lidar com a produção, porque a produção é o fundamental, se você não produz nada acontece. A Nuvem Cigana era um núcleo de produção muito autônomo, a gente não dependia de nada, chegava lá, - ah, tem um martelo, ah tem prego, podia me emprestar uma tábua; não tinha isso, chegava lá com tudo, já estava tudo desenhado, tudo feito, e achava o maior barato aquele negócio, abriu as portas pra gente sempre que a gente quis, e acho que isso, essa coisa da ideia da escola de artes visuais é uma clara demonstração da formação pop, autêntica do Rubens, que vem desde o trabalho dele com artes gráficas. Essa, aliás, era uma grande discussão que a gente tinha, o que era arte gráfica, o que era pintura ((risos)), era uma coisa muito divertida, e essa influência que ele tinha da pop arte, porque a pop arte é uma grande esponja né, é você poder/querer entender tudo, receber tudo e transformar tudo ao mesmo tempo, e representar aquilo/essa coisa tem que ser representada de uma outra forma que não essa coisa cotidiana que você está vendo. Um automóvel é um automóvel ali, mas ele é um automóvel num anúncio, ele é um automóvel diferente num quadro, então eu acho que essa coisa do/essa visão multidisciplinar do Rubens, das várias leituras que você pode ter de um mesmo objeto foi muito importante pra formação dos artistas que vieram se formar na Escola de Artes Visuais. Eu sou apaixonado por artes plásticas. Se eu fosse rico, eu teria/você não sabe o que eu teria ((risos)). Nem eu tenho ideia do que eu teria. E adoro a arte brasileira, acho que essa geração do Rubens, Vergara, Roberto Magalhães, o Antônio, essa geração é maravilhosa.
18:35
ENTREVISTADOR: Você acha que essa questão que você falou, da cidade, desse ambiente urbano como lugar desses encontros, essa coisa que/aqui no Rio o espaço de trabalho era a rua. Isso que era um dos principais, talvez o principal, motivo de haver tanto encontro entre, por exemplo, entre as artes. Porque hoje em dia é tudo tão segmentado né, o pessoal da literatura está aqui, das artes visuais está aqui, do design está ali, da arquitetura está ali. Hoje em dia eu vejo muito menos essa interação entre esses grupos. Profissionalizaram-se muito as artes. Você acha que era a cidade que fazia esses encontros?
BERNARDO: Eu acho que hoje você tem, talvez, eu não sei, talvez hoje você tenha um excesso de comunicação. E esse excesso de comunicação acaba criando guetos, porque quando você não conhece um caminho você geralmente se perde, seja ele qual for, então não adianta te dar duzentos caminhos que você não conheça. Então esses caminhos que essa geração está traçando, que começou a conviver com eles desde pequenos, são caminhos novos, que você não sabe direito onde é que isso vai dar então eu acho que carece um pouco de/eu acho que existe uma necessidade de pontos de encontros físicos. Essa coisa do excesso de comunicação, isso satura. Agora, eu acho que isso é um processo natural, porque de outra forma, por outro lado, acho que estão vivendo uma experiência que eu acho fantástica, você ter oportunidade de relatar o que você está fazendo com uma instantaneidade, isso é uma coisa nova e que certamente vai trazer algo de novo. Eu sou um pouco crítico com a questão da liberdade da internet. Eu acho que nada no mundo é tão livre quanto se pretende ser a internet, então eu acho que tem alguns limites, da mesma forma que estão se dando limites pras crianças por questões médicas, físicas e psicológicas, as pessoas precisam saber que todos nós somos crianças e todos nós precisamos de limites, então não é essa maravilha toda que se pinta. A que se tomar cuidado, a que se ter certa parcimônia no uso e não acreditar tanto que isso ali está resolvendo tantos problemas quanto se parece, porque na verdade o contato pessoal é o que determina a qualidade da relação, é o que determina a confiança sobre a qual essa relação está montada, e a gente, se perder a confiança (...)
21:00
ENTREVISTADOR: Eu estava até discutindo isso com um amigo meu que é músico e agora ele estuda filosofia, ele estava falando da questão do limite ser o lugar da confiança. Tinha limite nos anos setenta?
BERNARDO: Não ((risos)).
ENTREVISTADOR: Mas tinha confiança.
BERNARDO: Muita confiança. Sem confiança você não ultrapassa os limites, porque o medo é um sentimento importante. Não o mais importante, mas é um sentimento importante pra gente se manter vivo, mas sem confiança não dá pra ultrapassar limites. É a tal da broderagem né ((risos)). Tem que ter uma confiança mútua e isso eu acho, aliás, que é a argamassa dos coletivos, aquelas pessoas confiarem que juntas elas vão fazer alguma coisa importante e sólida.
22:21
ENTREVISTADOR: Você quer fazer alguma pergunta? Desculpa, acabei te atropelando.
TERCEIRA PESSOA: Não, acho que já foi.
22:34
ENTREVISTADOR: Tá. Parque Lage/não, desculpa, por que você acha que a Malasartes teve uma vida curta?
BERNARDO: Todas as publicações de arte do país tiveram vida curta. O Brasil é um país que sofre de um problema muito sério. É um problema que eu tenho debatido atualmente, que é um problema de isolamento. O Brasil é um país isolado em si mesmo. Pra nós, qualquer/desde um comerciante até um artista, até um industrial, o limite é ganhar São Paulo, é ganhar o Nordeste. Parece que a gente está acreditando no mito que isso aqui é um país-continente, e não é. Então a gente tem uma limitação de teste, necessidade de ser testado, você atravessar a fronteira de fato. Isso que está acontecendo agora, que a gente está se abrindo para a América do Sul, e acho que o vinho é um dos grandes motores dessa abertura, graças ao vinho, mas eu acho que a gente precisa disso porque a América do Sul vive uma realidade completamente diferente da nossa, tem um trânsito entre os países que são fronteiras a serem vencidas, e essas fronteiras quando vencidas te levam a outros lugares, a vôos maiores. E como eles tem o idioma comum e tem um porto na Europa, forte, que é a Espanha, e desse porto eles podem partir para um vôo seguinte, que é o mercado chamado mercado latino, dentro dos Estados Unidos, tem um percurso muito definido e antigo a ser percorrido, que vem sendo percorrido pelos artistas sul-americanos e os artistas brasileiros não tem essa oportunidade. Então acho que a gente está vivendo uma ilusão do país-continente e que a gente vai vencendo essas pequenas fronteiras e não se depara realmente com uma cultura completamente diversa da nossa e às vezes antagônica, que tem que ser conquistada. Isso aí é um ponto que a falta de uma política cultural no país/que nunca teve (...). A única política cultural que o país teve foi feita pelos Estados Unidos, que era a política cultural durante a guerra, que era a política da aproximação dos povos, que levou a Carmem Miranda, e que na verdade foi o que permitiu a Bossa Nova ir para os Estados Unidos. Era aquele resto dessa política da boa vizinhança, então acho que isso ai é uma coisa que o Brasil não pensa com seriedade, não temos intelectuais discutindo isso com seriedade e apresentando projetos, propostas claras sobre como o país deve agir em termos de política cultural. Eu não sei se eu respondi a tua pergunta ((risos)).
25:50
ENTREVISTADOR: É, pois é. Exatamente, a pergunta é por que você acha que a Malasartes acabou, por que ela teve uma vida curta. Você acha que as publicações sofrem as consequências das sequelas dessa falta de uma política cultural?
BERNARDO: Completamente, porque se o país cumpre a sua função de determinar e exercer/e praticar uma política cultural, o resto da sociedade vai sentir, vai descobrir qual é o seu papel dentro daquele projeto. Quando não tem projeto, então fica o que? É guerrilha o tempo inteiro, é um grupo que se une, vai e consegue fazer. Ai tem o Mindlin por exemplo, que nos ajudou a fazer a Malasartes e sem números de publicações. Então tem uma carência de politica cultural para que a sociedade saiba qual é o seu papel dentro do mercado cultural brasileiro.
26:58
TERCEIRA PESSOA: Vocês eram muito jovens nesse momento. Você acha que vocês tinham a real dimensão do que vocês estavam fazendo pra Malasartes? Vocês trazem o texto do ( ) pela primeira vez pro Brasil, o Allan Kaprow, quer dizer, era muito importante tudo aquilo, pra esse cenário das artes brasileiras. Dei aqui dois exemplos, mas tem outros mais.
BERNARDO: Olha, na Malasartes a gente tinha/eu sempre gosto de ressaltar que era uma revista voltada para as artes plásticas e eu acredito que tinham duas pessoas fundamentais ali, que era o Ronaldo e o Zilio, que eram pessoas muito ligadas a história da arte. Perdão, também não pode ficar assim. Eu acredito que eram duas pessoas muito importantes ali, que era o Ronaldo Brito e o Carlos Zilio, que são duas pessoas muito ligadas a história da arte, então essas pessoas trouxeram alguns pensamentos que eram fundamentais até para a compreensão do projeto da arte conceitual, que era uma coisa super nova no Brasil, que tem aquela coisa que o Mario Pedrosa fala, que a gente não/aqui no Brasil não tem vanguarda né, tem atualização com o que está acontecendo nos movimentos artísticos fora do país. Porque isso é uma verdade, se o Brasil não fosse um país periférico, Lindonéia seria um dos maiores ícones pops da história. Então é uma/a gente vive a reboque mesmo. E eu acho que isso é falta de uma política cultural permanente, de Estado, não é coisa de governo, é de Estado. O país tem que se inserir desta maneira. Mesmo pra música não existe isso. Até mesmo a música não tem essa política, o que tem são apadrinhados, porque, por incrível que pareça, eu nunca falei isso, mas a política cultural brasileira é feita pelo Ministério do Turismo. Por ai a gente vê a dimensão da coisa.
29:23
ENTREVISTADOR: É uma visão reduzida, simplista pra caramba.
BERNARDO: Vocês tem ideia que isso está gravado, mas não vai usar porque não tem sentido dentro da coisa. Eu, quando lancei meu selo na Europa, Regata, lacei o disco do Seu Jorge, da Banda Black Rio, da Paula Lima. Esses três discos, seguidos. Então, o distribuidor em Londres resolveu que era legal fazer um show. - Ah, vamos fazer um show dos três e tal, no final de semana, quinta, sexta e sábado, vamos fazer uma reunião. Aí alguém falou assim: - tem que pedir apoio a embaixada do Brasil; - claro, apoio a embaixada do Brasil. Ai alguém, no meio da história, falou assim: - não adianta, porque a Embaixada do Brasil só dá apoio pra artista baiano. Ai alguém falou: - mas como assim? – É, aqui só tem show dos artistas baianos. Alguém falou: - não, já teve show da Mangueira aqui. Ai o cara: - qual era o enredo? - Ah, “tem xinxim e acarajé, tamborim e samba no pé” ((risos)). Então na verdade era uma funcionária da embaixada, que é baiana e que ela/porque é essa coisa, quando eu falo agora da Embratur, tem um fundamento.
30:54
ENTREVISTADOR: Mas é verdade isso mesmo. Assim, mas engraçado que me parece assim, na pesquisa e no trabalho que a gente vai conversando com as pessoas, que havia principalmente na figura/não sei se você teve contato, do (Grisoli), que era o secretário da época no Parque Lage, que convidou o Gerchman, havia uma vontade muito grande nele de ter uma política pra esse estado, pro estado do Rio de Janeiro.
BERNARDO: É porque o (Grisoli) vinha do CPC, da UNE, vinha do Teatro Opinião, do Teatro Casa Grande, o (Grisoli) tinha uma trajetória política definida e sedimentada, o Partido Comunista, tinha essa coisa toda, então essas cosias/isso é um outro problema que tem no Brasil, porque na verdade a única coisa arquitetada que existe em termos de você ter uma maneira de agir e tudo mais, era determinado pelo Partido Comunista, que é uma coisa muito limitada porque era completamente fora da nossa realidade, então realmente nunca houve de fato essa política cultural definida. Mas eu não queria falar sobre o Partido Comunista porra nenhuma, porque eu acho que isso é uma chatice. Eu queria falar uma coisa sobre o Rubens, vou chegar na Escola assim, que eu acho que pode ser bacana. A coisa que impressionava no Rubens é que, pra mim, ele sempre foi um pintor entre os pintores. O Rubens tinha aquela coisa da mão, do traço, do gesto. Aquilo era uma coisa importante pra ele, aquilo ali era definidor. As reuniões, a Malasartes, por exemplo, tinha até uma coisa que a gente/que eu e o Vergara ficávamos sacaneando ele, dizendo que ele era o pior aliado que se podia ter, porque ele ia ficando puto, ia perdendo a cabeça, e de repente assim, meu irmão, o negócio é o traço meu irmão, eu quero ver o traço, é o pincel ((risos)). Era uma coisa muito engraçada, mas você perdia qualquer debate ((risos)). Tinha que recomeçar tudo do zero. Mas essa coisa vigorosa, que eu acho que é essa passagem, eu acho que o Rubens talvez seja uma das maiores mostras dessa passagem da arte moderna pra pop arte, porque ele tinha essa busca. Se você pegar, até mesmo esse trabalho, o Ar, por exemplo, a escultura, no Atlântico, é uma coisa, se você pensar, hoje em dia em tempos de Google Earth, é genial, você ter uma visão fantástica. Eu fico pensando, o Ar, seria genial, e o Google lá. É um espetáculo. Então ele tinha essa inquietação, mas a grande coisa que eu acho importante é essa coisa do pintor dentre os pintores. Acho inclusive que a geração oitenta do Parque Lage é um reflexo disso, desse desejo do Rubens de que o artista fosse um grande pintor, que o artista dominasse as técnicas da sua profissão, então acho que isso ai é uma coisa bacana, importante.
34:20
ENTREVISTADOR: Aproveitando que você está falando dele, vamos mudar o rumo da história aqui. Como é que foi a tua amizade com ele, como foi que vocês se conheceram?
BERNARDO: Como é difícil. No bar, tudo foi bar. Tudo foi/porque na verdade eu comecei a frequentar bar muito cedo. Eu comecei a frequentar bar com dezesseis anos. Então os bares que eu frequentava eram bares que nem existem mais, era o Jangadeiro, o Zepelim, que eram os bares que os artistas iam. Eu era muito amigo da Regina Vater, que é uma artista brasileira que mora acho que no Texas, hoje está em Houston e eu era super amigo dela e ai então eu saía. A Regina me ligava e falava – oi, Bernardo, tudo bem? Porque a Regina estudou com uma prima que eu tenho que também foi morar nos Estados Unidos e que deu aula na NYU e tudo mais. Ai quando essa minha prima Marta viajou, a Regina me ligava: - Bernardo vamos lá no Jangadeiro, tem uma festa não sei aonde. E foi ai que eu conheci o Rubens, foi ai que eu conheci o Vergara. Mas não eram meus amigos nessa época porque eu era muito jovem mesmo, nessa época então, fazia uma diferença. Eu sou de quarenta e nove e o Rubens é de quarenta e um ou quarenta e dois né, mas ai nos anos setenta/eu estou querendo lembrar quando é que teve o reencontro mas não é claro, porque eu o conheci era final de sessenta e oito, dos anos sessenta, aquela coisa toda. Porque o Rubens era muito amigo da minha primeira mulher também, a Marta Costa Ribeiro, que pintava também, então teve uma/várias coisas. Rio de Janeiro né, cidade pequena ((risos)).
36:18
ENTREVISTADOR: Mas você lembra quando o poeta Bernardo Vilhena, o artista Bernardo Vilhena, começou a conviver com o Gerchman?
BERNARDO: Isso foi um pouco antes do Parque/nessa época foi o nosso grande convívio. Foi o Parque Lage e a Malasartes. Ali a gente ficou bem próximos, bem amigos, me prometeu uma Lindonéia que não me deu até hoje. Mas tudo bem, está guardada aqui.
TERCEIRA PESSOA: Ele se arriscava na poesia, não sei se vocês tiveram esse diálogo de escrita.
BERNARDO: Não. Isso ia ser bacana. Porque eram tempos muito intensos, porque acontecia muita coisa, era uma época muito intensa porque tinha muita atividade, aconteciam /eram exposições, eram coisas, mostras, lançamentos e tudo mais. Mas essa eu gostaria de ter conversado com ele, sobre poesia, porque tem um lado/tem uns artistas plásticos que pararam no Mallarmé na poesia, então é difícil, eu sempre falo, o () sempre que encontra comigo eu falo, por que o Mallarmé ((risos)).
37:45
ENTREVISTADOR: Queria te perguntar, se você se sentir confortável, se você lembra de alguma poesia que você tenha produzido nessa época e quiser falar.
BERNARDO: Bom, um monte ((risos)).
37:55
ENTREVISTADOR: Pode ser uma que more no seu coração.
BERNARDO: Bom, tenho Vida bandida, por exemplo, que é uma poesia dessa época e que é emblemática; emblemática desculpa, eu vou refazer a fala. Tem Vida Bandida, que é um poema bem típico dessa época, marcante, e que eu falava nas Artimanhas lá no Parque Laje, falei várias vezes. Esse é um poema que é até engraçado, eu conto essa história e as pessoas não acreditam, mas nessas Artimanhas da Nuvem Cigana, as pessoas pediam bis de poema ((risos)). Você falava o poema e as pessoas pediam bis, era genial. Eu estou querendo só lembrar aqui. Tem um poema que saiu numa antologia na Colômbia agora, que eu gosto muito, que é o poema que dá o título ao livro, Atualidades Atlânticas, que é:
“é preciso viver
atualidades
reconhecer códigos
revirar noites
ser todas as épocas
todas as raças
entrar em todas
as barras
e não sujar
em nenhuma
falando o que querendo
ouvindo o que não querendo
perseguindo a realidade
e a fantasia aí
poesia é momento
em que a gente se encontra
sendo
não por dom
pelo entorpecente trabalho
de pensar no tempo
nos contemporâneos
obstinadamente
feito um tubarão”
ENTREVISTADOR: Uau. Você me tirou agora ((risos)). Pode falar umas cinco ai. Ok, então agora eu queria entrar nesse mote do Parque Laje. Agora eu fiquei meio tonteado mesmo, sinceramente. Fiquei meio emocionado. Tão difícil a gente (se reconhecer) no mundo hoje em dia né, uma coisa rara.
BERNARDO: Mas tem um movimento de poesia importante acontecendo nas periferias do Brasil inteiro, é sério.
40:04
ENTREVISTADOR: Estou precisando descobrir uma periferia dessa na minha vida, quando terminar essa entrevista, se quiser me passar o endreço ((risos)).
SEGUNDA PESSOA: Nada a ver com o assunto, mas eu fiquei impressionado, eu fui fazer um trabalho em Angola e fiquei impressionado com a qualidade dos poetas de Angola.
BERBARDO: Você sabe que em Angola Menina Veneno é música de casamento. As pessoas casam ao som de Menina Veneno na igreja. Inacreditável né.
40:29
ENTREVISTADOR: Voltando ao Parque Laje um pouquinho, que é o principal tema dessa exposição também. A exposição é o Rubens, mas a grande (...). Você considera o Parque Laje como um trabalho de arte do Rubens?
BERNARDO: Conceitual sim, sem dúvida, porque se você pegar, tem todos os elementos de uma obra de arte. Tem imaginação, tem entrega, tem produção, tem crítica. Acho que tem suor, dúvida, acho que tem/essa coisa é muito engraçada, tem uma frase do Glauber Rocha que me guia muito. Ele fala assim: “o artista é aquele que se produz”, então acho que se você escolhe ser artista como profissão, tudo o que você produz é uma obra de arte, dentro do campo da arte, seja uma escola, seja um quadro, seja uma exposição.
41:38
ENTREVISTADOR: A idéia de inventar a vida.
BERNARDO: Exatamente.
41:42
ENTREVISTADOR: Você acha que o/como é que você conviveu dentro do Parque Laje, além da Nuvem Cigana, das Artimanhas que você falou. Você convivia por lá?
BERNARDO: Olha, o convívio no Parque Laje era muito grande porque/sobretudo para nós da Nuvem Cigana. A Nuvem Cigana era uma permanência no Parque Laje, qualquer livro a gente lançava lá, qualquer calendário. A gente fazia calendário: - ah, vamos lançar o calendário... Parque Laje! -Ah vamos lançar Almanaque Biotônico Vitalidade... Parque Laje! Tudo era o Parque Laje, eram portas abertas para a Nuvem Cigana. Só que para você produzir isso levava um tempo ali. Tinha uma reunião, tinha um não sei o quê. Então a nossa vida ali dentro do Parque Laje era muito grande, além dos outros/o Hamilton Vaz Pereira fez uma peça lá, encenou a peça lá, foi lindo. E eu vou te falar que tinha pouco dinheiro, porque se tivesse mais dinheiro ia ser uma loucura, porque o Parque Laje é um espetáculo. O Parque Laje é um espaço dentro da cultura carioca. Você sabe que o 26 poetas hoje, o livro, ele foi lançado no Parque Laje, o grande lançamento foi lá, tem filmes disso, do Luis (Alfonso), o cenário é até da minha mulher na época, a Marta Costa Ribeiro. Vieram poetas de São Paulo, e o Roberto Piva ficou tão impressionado com o que acontecia ali no Parque Laje que ele, junto com o Cláudio Villa e mais outros poetas de São Paulo, inventaram a feira de Poesia e Arte no Theatro Municipal de São Paulo, que aconteceu durante três dias em mil novecentos e setenta e seis e foi um acontecimento. O Theatro Municipal lotado em São Paulo, e era exatamente essa miscelânea de música, ballet, teatro, poesia. Foi uma coisa marcante. Infelizmente a imprensa dava muito pouca cobertura as coisas. Nós da Nuvem Cigana não tínhamos cobertura nenhuma da imprensa, por exemplo. O próprio Parque Laje teve pouquíssima em relação ao que acontecia ali. E na Feira de Poesia e Arte a grade repercussão foi o fato de o Tavinho Paes ter ido ao palco do Theatro Municipal de São Paulo e feito xixi no palco do Theatro Municipal, ai foi pra Veja, foi pra tudo quanto é lugar. Agora, tudo o mais que aconteceu, não interessa. É igual a Virada Cultural de São Paulo, que agora só interessam os crimes, a imprensa virou a grande/a luta democrática, só interessa o crime. O que aconteceu de importante de arte na Virada Cultural de São Paulo ninguém fala, então tem um/o Parque Laje tem uma influência muito grande não só naquele momento, mas na repercussão do que foi feito ali pra outros lugares até, como São Paulo, por exemplo, e outros. A gente foi em Belo Horizonte, Brasília, era uma (...) ((telefone toca))
SEGUNDA PESSOA: Isso atrapalha a gente.
45:15
ENTREVISTADOR: Mas é interessante você falar disso porque é muito difícil mapear a repercussão que o Parque Laje teve pra fora dele, porque, tem gente que chama de ilha, tem gente que chama de fortaleza, tem gente que chama de bolha (...)
BERNARDO: Bolha não. Fortaleza só se for/eu acho que o Parque, veja bem, a Nuvem Cigana é hoje em dia/são passados quarenta anos, então tem uma nova geração de críticos e poetas e tudo mais que tem um interesse pelo trabalho produzido pela Nuvem Cigana e pelo trabalho produzido em Malasartes muito profundo, muito intenso. A Nuvem Cigana/o fato de existir o Parque Laje, de ter permitido essa experiência permanente de apresentações de poesia com música, dança, por exemplo/se a Nuvem Cigana é um coletivo, um protótipo de um coletivo, pela sua forma de produção, inclusive, essa forma de produção, hoje, está sendo replicada no setor x, ela está lá, e um dos/porque os artistas plásticos e cenógrafos da Nuvem Cigana, eles faziam os cursos do Parque Laje também.
TERCEIRA PESSOA: Você fez curso?
BERNARDO: Eu não, porque eu sou/eu odeio escola. Minha escola foi o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Sou um fugitivo da escola. Mas os cenógrafos faziam. Dionízio fez. Tem outros que fizeram Parque Laje. Então acho que essa idéia do coletivo foi muito sedimentada ali, acho que é uma/por essa escolha do Rubens, de fazer da escola um ambiente multidisciplinar, porque você não faz um coletivo/se a gente pegar o Opavivivará agora por exemplo, você tem artistas plásticos, você tem um poeta como o Domingos Guimarães, que está fazendo uma passagem para as artes plásticas, que é uma passagem super interessante, então estamos assistindo esse rito de passagem. Eu estou achando genial, então é um coletivo multidisciplinar. Então acho que essa idéia do multidisciplinar, o Parque Laje tem uma influência, tem uma importância muito grande nessa forma de pensar a arte.
48:21
ENTREVISTADOR: Você acha que ali era uma gênese, ou uma semente, ou o que quer que seja, um embrião ( ). Essa frase que eu estou citando é do Chico Chaves, que ali era um embrião de tudo o que veio se tornar tema da contemporaneidade. Você concorda com essa idéia da gênese do tempo contemporâneo?
BERNARDO: Olha, vou te falar o seguinte, se você quiser pegar o melhor exemplo de influência do Parque Laje, é o Circo Voador. O Circo Voador era exatamente isso. Era teatro, música, poesia, cenógrafos, todo mundo “all together now”. O principio do Circo Voador/eu participei de todas as reuniões, e depois fiquei mais ligado a música, mas o principio do Circo Voador no Arpoador era totalmente influenciado pelo que era o Parque Laje, totalmente.
49:24
ENREVISTADOR: Se você vê, hoje em dia, pensando nessa época, foi até o filho do Grisolli que falou isso pra gente. A palavra utopia foi mudando o significado ao longo da história. Começou como o lugar que supostamente tinha existido, pra depois um lugar que poderia existir, pra depois ser um lugar que nunca poderá existir. A palavra sofreu essa metamorfose, esse deslocamento. Você vê o Parque Laje, aquela vivência que vocês tiveram ali, eu estou falando do Parque Laje, fazendo um recorte mesmo, desse período, na verdade, no Rio de Janeiro. Como utopia, seria possível existir novamente algo parecido com aquilo, dentro desse mundo hiper conectado, hiper comunicado?
BERNARDO: Eu acho que hoje em dia é mais fácil acontecer um lugar como o Parque Laje porque acho que hoje você tem muito mais possibilidades de ser multidisciplinar do que foi o/porque hoje, quando o cara que escreve hoje em dia, o poeta tem diante dele uma máquina de fazer coisas. Antigamente você tinha um lápis, depois uma máquina de escrever, hoje você tem uma máquina de fazer coisas. Você pode desenhar, pode fotografar, pode fazer um filme pode fazer tudo com o computador, então esse lado do computador, essa máquina de fazer coisas é genial para um projeto como um projeto do Parque Laje, que as pessoas vão ter acesso imediato ao fazer aquela disciplina, então acho que o Parque Laje foi uma utopia, as utopias continuam existindo. O John Lennon falava, se não me engano, da Nutopia County, como se tivesse uma nova utopia, e a utopia é fundamental, tem que ter, ela existe. As pessoas acham que ela não existe, acho que a internet é uma utopia, do jeito que as pessoas acham que ela é. Eu não canso de falar isso, o primeiro computador foi montado dentro de um destroyer da Marinha americana em alto-mar e a internet foi desenvolvida com o dinheiro do Pentágono, então não veio para o bem. Não fiquem achando que é a liberdade, porra nenhuma. E tem outra coisa também. Dá-se uma importância ao que as pessoas falam na internet, os internautas. Eu sempre soube que em jornal a opinião do leitor é a opinião do leitor que escreve para o jornal, não é uma opinião geral, e a opinião do internauta é a opinião do internauta, o cara que escreve no computador, daquela forma desabusada, absurda, mal educada, mal escrita, então não é para ter tanta importância, deixa lá, é um espaço que o cara está ali extravasando, não é nem o melhor momento nele, não é nem o que ele realmente pensa, é um diálogo de surdos, então, bobagem, a internet é mais uma porra ((risos)).
52:44
ENTREVISTADOR: Voltando ao Parque Laje. Você chegou a freqüentar, porque o Rubens fala muito dessa coisa que você falou, não é só trabalho, tem a coisa do lazer, tem a coisa do encontro, você tinha o cineclube, o Verão a mil, esses momentos e encontro lá.
BERNARDO: Claro. Você sabe que tem uma coisa que é genial que é/voltando a Nuvem Cigana, você vê como é que hoje a gente vive um espírito mercantilista né. O Rubens, ele poderia perfeitamente proibir venda de bebida alcoólica que não fosse pela cantina, e a gente tinha um negócio chamado Alerte Limão, que eram aqueles galões de mate que vendia na praia, e ficavam duas ou três pessoas com aquele galão, com um negócio que a gente chamava de Alerte limão, que era o resto de bebida que tinha na casa de todo mundo, misturado com suco de limão, e era dado de graça ((risos)). Chegava ali com o copinho, botava e tomava seu Alerte Limão. Imagina se é hoje em dia, não... não pode porque tem o patrocínio ( ) ((risos)). Então não pode, eu acho que esse é o maior problema de hoje, é o mercantilismo. A gente vive nos piores momentos do mercantilismo da história, e a história mostra que esses momentos são absolutamente negativos para o bem estar, para a alegria, pra tudo. Não é um momento a favor da humanidade, é um momento contra a humanidade, é reducionista, é persecutório, é denuncista, é isso. O mercantilismo trás tudo isso, vem tudo na calda desse comenta. Então nessa época não existia isso, então permitia, apesar da ditadura, não tinha esse pensamento mercantilista, que esse pensamento mercantilista/tem um momento que a sociedade toda se engaja. É uma coisa barra pesada, o cara só quer saber do seu quinhão, então é duro.
55:07 ENTREVISTADOR: Então acho que é nisso que o Pedro estava falando um pouco da dificuldade de se construir um lugar como Parque Laje hoje em dia.
BERNARDO: É pelo mercantilismo.
55:18
ENTREVISTADOR: O capitalismo sofisticou de uma maneira tão grande.
BERNARDO: É, você teria que ter o patrocínio. O maior exemplo que a gente tem do mercantilismo é o caso da música no Brasil. A música no Brasil, ela tem uma trajetória de turnês que eram feitas pelos artistas, que não precisavam ser grandes artistas. Grandes artistas faziam turnês em grandes palcos. Pequenos artistas faziam turnês em pequenos palcos, e eram levados por empresários. No sul tinha empresário, que hoje em dia, até o Dody Sirena, que é empresário do Roberto Carlos, no Nordeste tinha o Pinga, que levava as pessoas. As pessoas saiam, faziam quinze, dezesseis, dezessete, dezoito shows. Em São Paulo tinha o ( ) que fazia ali, pegava tudo, mandava para o Paraná adentro, Santa Catarina, não sei o que. Com a história da Lei Rouanet acabou isso. As pessoas vão fazer um show e voltam, ninguém faz mais uma temporada, virou um horror com os artistas, então é/você imagina, desde quando um grade artista no Brasil precisou ter um patrocínio para fazer uma turnê? Hoje ninguém sai sem ter patrocínio, só os malucos, e a internet não sustenta esses malucos, eles estão lá, coitados, malucos, sozinhos. Então o que acontece com a música no Brasil? Em grade parte não existe uma renovação de fato, uma renovação potente, em termos de chegar uma geração inteira e fazer uma coisa, porque não tem espaço. Existem as pessoas, existem os talentos. Estão ai porque o negócio não é safra, acontece. Só não tiveram a sorte que outros tiveram, de nascer na época certa e surgir na época certa, porque é sorte isso, não é talento.
57:29
ENTREVISTADOR: Só pra gente ter aqui, uma coisa que eu estou um pouco preocupado, porque acabou com uma coisa, foi um vacilo nosso aqui e a gente não botou no esquema da Nuvem Cigana. Eu estou vendo a força do que era, pelo que você está falando. Você pode me dar uma síntese do que era, como surgiu o coletivo?
BERNARDO: Tá. Deixa-me ver como é que eu vou começar aqui. A Nuvem Cigana surgiu como um coletivo de fotógrafos, artistas plásticos, artistas gráficos, poetas e com vontade de fazer coisas, produzir seus livros e fazer esses lançamentos. A sede da Nuvem Cigana, o encontro, geralmente era em Santa Tereza, era ali o lugar. Tinha a casa do Pedro Cascado, que era o lugar onde a gente se reunia, fazia todas as reuniões. Eram reuniões semanais, e fora os botequins, então a Nuvem Cigana criou esse modo de produção. O Chacal era um cara fundamental que veio com seus primeiros livros em mimeógrafo, e o Chacal fazia parte disso com o ( ), o Guilherme Mandaro, o Ronaldo Santos e eu. Nós éramos os poetas principais da atividade das Artimanhas. A gente precisava ter um lugar pra apresentar os trabalhos, lançar os livros e tudo mais, que inicialmente foi a Livraria Muro em Ipanema, que era no subterrâneo, que era do Rui, que é o dono da Livraria da Travessa atualmente, só que a Livraria Muro ficou pequena e o espaço que surgiu foi o Parque Laje, então saímos da Livraria Muro, subterrâneo em Ipanema, para o Parque Laje e ali o Parque Laje passou a ser nosso ponto de encontro. Qualquer reunião que a gente fazia, que era uma reunião menor, só dos poetas, então a gente fazia o encontro no Laje. Tinha uma faixa do Chacal que é genial, tinha que achar essa foto, que é “cartilagem no Laje” ((risos)).
1:00:04
ENTREVISTADOR: Bacana. É... tem alguma coisa?
TERCEIRA PESSOA: Eu ia perguntar se tem alguma história, algum episódio, alguma coisa.
ENTREVISTADOR: Algum Lado B. Alguma história dos terraços depois de tomar o Alerte Limão.
BERNARDO: Deixa eu lembrar de alguma história. Não, a história que tem são essas das reuniões mesmo, da Malasartes.
TERCEIRA PESSOA: Você tem exemplares da revista?
BERNARDO: Você sabe que eu até vi pra isso, eu só tenho um aí.
TERCEIRA PESSOA: Porque eu tenho, se você quiser depois.
ENTREVISTADOR: Tem alguma coisa da época, do seu acervo pessoal ? Fotografia, vídeo, alguma coisa?
BERNARDO: Da Nuvem Cigana?
ENTREVISTADOR: Da Nuvem cigana, ( )
BERNARDO: Eu tenho. Tenho eu falando no Parque Laje. Tem um filme que está sendo feito sobre o Parque Laje.
TERCEIRA PESSOAS: Quem está fazendo?
ENTREVISTADOR: Eu já ouvi falar de vários filmes que estão sendo feitos sobre o Parque Laje.
BERNARDO: Sobre o Parque Laje não, perdão, sobre a Nuvem Cigana.
ENTREVISTADOR: Alguém me falou. Quem está fazendo? Ouvi falar.
BERNARDO: É a Paola, mulher do Geraldinho Magalhães, junto com o Cláudio Lobato, que era um dos caras da Nuvem Cigana.
ENTREVISTADOR: Acho que foi o Chico Chaves que chegou a comentar.
BERNARDO: O Chico Chaves pode ter falado, porque a Nuvem Cigana tinha carnaval, tinha o bloco (...)
ENTREVISTADOR: Aquele disco do Milton, a música (...)
BERNARDO: É, tem a música, porque o Ronaldo Bastos é o fundador da Nuvem Cigana. A música era do Ronaldo Bastos. Então a Nuvem Cigana surge com uma ideia do Ronaldo Bastos, de fazer um agrupamento de artistas. Não tinha esse nome, coletivo, ainda. Mas era uma coisa muito inspirada na Apple dos Beatles, que era ser realmente uma produtora de cultura. E nossa sede era na casa que o Ronaldo Bastos morava, que era a casa do Pedro Cascado em Santa Teresa e ali que o núcleo duro da Nuvem Cigana/e a Nuvem Cigana tinha um bloco de carnaval, que era o Charme da simpatia, porque as Artimanhas acabavam em carnaval, ai entrava o bloco, e ai todo mundo/ que fosse Junho, Junho, Setembro ((risos)).
1:02:12
TERCEIRA PESSOA: É, tinha o Charme da Simpatia também, que depois vira o Simpatia.
BERNARDO: Pois é, não vira o Simpatia.
TERCEIRA PESSOA: Não?
BERNARDO: Não. Ele falou isso?
TERCEIRA PESSOA: Não, ele não falou, mas já me falaram isso.
BERNARDO:É, pois é. O Simpatia/eu sou muito amigo do Dodô Brandão, estamos até fazendo um projeto juntos hoje em dia.
TERCEIRA PESSOA: Sim, Dodô Brandão. O Dodô/até, no ano que papai faleceu, no carnaval, a camiseta foi dele, foi lindo.
BERNARDO: Pois é, mas ele diz que o Simpatia é por causa da música do Aldir Blanc, Simpatia é quase amor.
ENTREVISTADOR: O que o Chico falou foi que a primeira reunião do Suvaco do Cristo foi no Parque Laje, eu acho que até depois da gestão do Gerchman, no final dos oitenta.
BERNARDO: É, porque tem essa coisa do Simpatia é quase amor do Aldir Blanc porque antigamente se falava isso no subúrbio: -Ah, você gosta da fulana? -Ah, eu tenho simpatia por ela ((risos)).
TERCEIRA PESSOA: Quase amor.
BERNARDO: Quase amor.
ENTREVISTADOR: Bernardo, eu queria só te pedir um favor. Não quer lembrar outra poesia pra gente não?
BERNARDO: Pode ser. É só se eu beber água aqui. Claro, com o maior prazer.
1:03:27
ENTREVISTADOR: Achei tão bonito uma poesia.
SEGUNDA PESSOA: Aquela foi linda, fiquei pensando sobre várias coisas.
BERNARDO: Deixa eu ver uma aqui que tem algum (...). Deixa eu pensar. Deixa eu falar uma aqui, essa poesia foi até epígrafe de um livro de um historiador em São Paulo. É assim:
“Acredito no balanço das árvores
que se não induzem, sugerem
leve origem dos ventos
a encher de sons o ar
soprado de respostas às vezes esquecidas
varrendo as mentiras pregadas
em nome da evolução e do progresso
à sombra
à sombra de um pé de Pau-Brasil”
ENTREVISTADOR: Você, além de poeta sabe falar poesia, não é qualquer um não.
BERNARDO: Eu era bom nisso cara ((risos)). Já fui bom nisso, era uma festa.
TERCEIRA PESSOA: Vocês deviam aprontar.
SEGUNDA PESSOA: Só uma pergunta. Você falou do lançamento do livro, que o (Luís Afonso) filmou. Quando é que foi isso?
BERNARDO: É, ele tem. Em mil novecentos e setenta e seis. O 26 poetas hoje é o livro mais bem sucedido de poesia nos últimos (...)
TERCEIRA PESSOA: ( )
BERNARDO: A Heloísa falou?
ENTREVISTADOR: Não, a gente ainda vai estar com ela.
BERNARDO: Ela vai falar. E o (Luís Afonso) tem esse filme que é interessante, é um filme mudo, que foi narrado. Cara, quem é que narra esse filme? Eu,acho que o Charles e não sei se tem Ana Cristiana, tem uma mulher que fala também.
ENTREVISTADOR: É um filme mesmo?
BERNARDO: É o lançamento de 26 poetas hoje.
ENTREVISTADOR: Mas isso virou um filme?
BERNARDO: Virou um filme. É um filme. Tem o Parque Laje lá todo/porque o cenário é lindo, ela fez o cenário todo com folha de jornal, então são folhas de jornal com frases escritas.
SEGUNDA PESSOA: Por acaso você não tem uma cópia não né?
BERNARDO: Não, mas o Luís é fácil né.
TERCEIRA PESSOA: ( )
BERNARDO: o Luís foi diretor do Parque Laje inclusive depois.
SEGUNDA PESSOA: Eu queria fazer uma pergunta bem afetiva. Se você tem saudades e do que você tem mais saudades, se é que você tem saudade dessa época.
BERNARDO: Saudade a gente sempre tem, saudades tem. Se eu for te falar da saudade puramente, eu acho que pode ficar uma coisa simplesmente nostálgica, mas o que eu tenho saudade criticamente é de um tempo em que se falava poesia pra público e não só pra poetas. O Parque Laje é um lugar muito importante, fundamental, pra esse momento da poesia brasileira, porque a gente falava para um público real, como aconteceu depois, no Museu de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, na FAAP em São Paulo, no Galpãozinho em Brasília, o teatro e vários outros lugares que a gente teve oportunidade de falar poesia, mas eu tenho saudade dessa época, que tinha um púbico para ouvir poesia, interessado, e não uma platéia de poetas.
VERGARA: O Rubens era ilustrador da revista Jóia quando eu o conheci e a gente freqüentava/tinha duas áreas, o Rubens freqüentava mais do que eu a Escola de Belas Artes, mas o nosso ponto de encontro no começo era o bar do Museu de Arte Moderna, que foi o lugar que a gente se formou. O bar do Museu de Arte Moderna, os botequins de Copacabana e/a gente comia num restaurante que tinha no final de Copacabana, ali no Beco da Fome e rachava um caldo verde, disputava na purrinha o paio. Só tinha um pedaço de paio, na purrinha a gente disputava o paio. Então o Rubens foi um/na verdade a gente cresceu junto, nessa/isso eu estou falando de sessenta e dois, sessenta e três, quando a gente começa a botar a cabeça pra fora. O Rubens era um profissional da área de arte como ilustrador e eu um jogador de voleibol e funcionário da Petrobrás, e ai a gente foi crescendo. Isso determinou, pelo próprio temperamento do Rubens, determinou muito a nossa amizade. Nós éramos bastante próximos. Talvez, do que depois ficou sendo um pouco chamado do grupinho de Antonio, Roberto Magalhães, Gerchman e eu, eu e o Rubens éramos mais próximos. Nós éramos bem próximos e talvez por ambos, tanto ele quanto eu sermos namoradores, mulherengos e gostarmos do desenho. Embora o formidável desenhista Roberto Magalhães/mas nós tínhamos essa coisa do desenho brincalhão e de misturar as coisas do dia a dia na/isso era parte da profissão dele como ilustrador de uma revista e eu com vontade de politizar o mundo. Esse foi um pouco o nosso começo e fomos muito companheiros na nossa trajetória, principalmente no início. Pra você ter ideia, três galerias no Rio de Janeiro/quem comprava o nosso trabalho era professor universitário, filosofo, advogado, não eram milionários, milionários não compravam arte contemporânea, só compravam coisas barrocas, não tinha mercado. O mercado era uma coisa absolutamente irrisória e isso obrigou com que/a gente fazia o trabalho, escrevia o texto e levava no jornal, quer dizer, a gente fazia tudo. Como dizia o Helio Oiticica, “da adversidade vivemos”, e foi isso que foi construído e eu tenho uma lembrança muito amorosa e gostosa do Rubens. Tive com ele em Nova York várias vezes, tive sempre aqui. A vida de adulto é uma coisa que separa as pessoas um pouco. Ele morando sempre em outro lugar, mas sempre tínhamos uma cumplicidade e uma amizade muito grande e no fundo eu acho que uma mútua admiração. Só pra encurtar um pouco, pra cortar logo esse assunto, eu acho que/não sei se as pessoas dão o real valor na revolução que o Rubens fez no Parque Laje. Quer dizer, a ideia de um workshop, mas do que de ensinamento. Não se ensina arte, ninguém ensina arte. O Iberê que era o meu mestre, meu amigo, dizia uma coisa que eu acho extraordinária: “eu não ensino nada, eu sou um semeador louco, atiro sementes. Se o terreno for bom, germinará” e eu acho que é um pouco isso e o Rubens acreditava também nessa história. Sempre foi um homem muito livre e as escolhas estilísticas do Rubens sempre foram escolhas em função do pretexto que ele estava trabalhando e não a criação de uma grife. Tanto assim que na exposição agora que estava no CCBB, aquela grande escultura do (Lutti), que era uma coisa tão/transformar uma palavra que nos era cara naquele momento numa coisa geométrica forte, que tinha o/se erguia como prédio. Não sei por que/eu me lembro muito das nossas/Rubens era também um cara aglomerador. Eu sou uma pessoa aglomeradora, quer dizer, gosto do convívio, gosto de ser motivador também. Quando nós fizemos Malasartes, fizemos a Malasartes apesar de algumas pessoas que eram do Malasrtes também, mas a gente fez Malasartes apesar deles. Malasartes teve três números. Acho que é importante entender uma coisa. Final dos anos sessenta, quer dizer, de sessenta e sete, a partir de sessenta e cinco, quando o Jean faz a Opinião, quer dizer, Opinião, sessenta e seis/a nossa exposição na Galeria G4, a nossa exposição ( ) em São Paulo, as coisas que nós fomos fazendo, a gente tinha que fazer o trabalho e criar o contexto pro trabalho não ficar oco, perdido do espaço, então a criação do contexto/nós não estamos sozinhos. O trabalho da gente/e a gente sempre foi muito informado de tudo o que acontecia, nós sabíamos tudo o que acontecia no mundo. Sabíamos tudo o que acontecia no Japão, no eixo Amsterdã-Bélgica com o grupo Cobra, a gente sabia o que estava acontecendo com a nova figuração francesa, a gente sabia o que estava acontecendo no começo da pop arte americana, a gente conhecia os desenhos do Oldemburg, a gente sabia o que estava/e a gente sabia que a gente tinha paralelos e diferenças, quer dizer, nos chamar de pop artistas é de uma estupidez gigantesca. Estupidez é meio forte, eu sou meio sanguíneo. É uma ingenuidade, simplesmente porque a gente estava incorporando a questão do cotidiano na nossa imagem. Isso não é pop, porque um pop crítico como nós fizemos/o pop de Andy Warhol é uma ironia do crescimento da sociedade americana e nós não tínhamos essa ironia, na verdade era uma nova figuração critica sobre uma realidade brasileira. Quem cresceu sob Juscelino, com as promessas de futuro, cinco anos em cinco/em uma/como é aquela coisa, “cinqüenta anos em cinco”, por exemplo, esse tipo de otimismo que existia. Quem conviveu com o governo do Carlos Lacerda, com a remoção da favela da Catacumba, quem conviveu com essas mudanças e aquele otimismo, aquela coisa, nós éramos/dezoito anos, dezenove anos, e depois deu uma/vamos dizer assim, truculentamente calado por uma mentalidade militar que era estúpida. Isso era o seguinte, você está com vinte e três anos, toda testosterona, tu está com tudo, tu está a fim de comer o mundo, cheio de vontade de fazer coisas, e aquele bloqueio. Acho que isso gerou na gente uma vontade de fazer coisa, nova identidade brasileira. Juntamos-nos ao Helio, que vinha de outra formação, muito mais intelectual, do neo-concretismo. As aproximações foram feitas por essa vontade de criar um contexto onde o trabalho da gente pudesse crescer. Não sei, eu não/é meio caótico, eu estou falando, mas, é essa coisa e a gente vivia o trabalho com muita intensidade, ia pros botequins de noite pra conversar, pra discutir, pra armar as nossas possíveis ações e acho que o Rubens foi um sujeito positivíssimo por isso, a coragem do mau gosto do Rubens é extraordinária. E esse mau gosto que eu estou falando evidentemente que é um mau gosto entre aspas, porque essa incorporação de uma coisa chula, uma coisa vã, brasileira, que tem no trabalho dele é um ensinamento pra nós. Uma coisa que assim, falando diretamente para os artistas, a coragem do desenho do Rubens é absolutamente/porque o Rubens desenhava sem um modelo mental anterior. Nós tínhamos desenhistas absurdamente/o Roberto Magalhães, que eu já falei. O Jesuíno, por exemplo, era um cara que olhava pra você/como o Chico Caruso hoje é. Se o Chico Caruso estiver aqui, ele pega um pedaço de papel, ele desenha essa situação aqui. Ele tem uma facilidade de transpor três dimensões pra duas, absolutamente inata, como o Roberto Magalhães também tem, tinha e tem, como o Jesuíno, que é uma coisa impressionante. O Jesuíno olhava pra você e estava você vindo, crescendo no papel. Rubens e eu não tínhamos essa mesma facilidade, então essa facilidade era substituída por uma coragem do traço poder surpreender. Na verdade, é o seguinte, não tem modelo, tem pretexto. Os pretextos são/o real é pretexto para o trabalho, não é modelo do trabalho, então isso acho que é muito bom de ver e de ter convivido. ((Vergara se emociona)). Desculpa, por favor, tira isso, porque é piegas, mas é que a gente (...). A idade de perder pedaços é muito ruim, desculpa. Dá um tempo aí. É fogo mesmo, essa coisa/tem uma coisa que eu tenho pensado assim que pode ser que não tenha a ver com o assunto, mas, a gente se prepara um pouco pra morte porque como ela é inevitável, você se prepara pra morte, você se prepara pra aceitar que isso é uma coisa inevitável, mas você não se prepara pra velhice e a velhice não acontece num dia só, é aos poucos, você perdendo pedaço. Então é uma coisa/não sou melancólico, foi só um momento de emoção mesmo, de (...).
CLARA: De relembrar tudo.
VERGARA: É. Eu sou meio assim, meio (...). Agora eu preciso de pergunta.
BERNARDO: Vamos lá.
PEDRO: Posso fazer uma?
BERNARDO: Pode.
14:56
PEDRO: Você falou que você e o Rubens não tinham esse olhar fotográfico que outros colegas tinham, ou seja, vocês conviviam com esse modelo do acidente. Como é que é o acidente do teu trabalho no dele, que espaço tem pro acidente no trabalho de vocês?
VERGARA: Total, porque não tem/eu tenho dito, o trabalho é um pouco uma mistura de dois jogos. O jogo de dardos e o jogo de dados. Sem sorte, não tem artista. Sem azar, não tem artista. Quer dizer, esse jogo, na verdade/a conversa com o trabalho é um conversa com o branco. Eu te dou uma aula de desenho agora. Agora, vou te dar uma aula de desenho.
PEDRO: Quer um papel?
VERGARA: ((com um papel)) É. Está em branco. O que é isso aqui? Um traço? Não. Um traço e dois espaços. O que é isso aqui? Dois traços, quatro espaços? Não, dois traços, quatro espaços e uma cruz. Acabou a aula de desenho. Porque tem uma coisa que o branco te responde, e a cada coisa que você dá, ele te responde se você acrescenta uma coisa. Isso é uma conversa com o branco, onde você acrescenta coisas. O azar está quando de repente você/sem querer é revelado uma coisa que você não percebia e a partir daí o branco te ensinou, ai tu vai em frente, entendeu? Então quando eu falo da coragem do desenho do Rubens, é essa, entendeu? Então tem que ter uma coisa que vai ser descoberta, não tem um modelo anterior, é uma conversa com o branco.
17:03
BERNARDO: Queria que você falasse um pouco de como foi o ( ) da G4 . Queria que você lembrasse essa noite.
VERGARA: Foi maravilhoso. Cinco doidos, a gente não pode deixar de falar de um sujeito que foi muito positivo na época, que era o sogro do Antonio Dias, o Pedro Escosteguy que era um poeta gaúcho, um sujeito mais velho que nós, mas com uma visão política muito clara, e era um cara corajoso também e fizemos/quando resolvemos fazer aquela exposição, o Rubens estava fazendo aquela coisa das caixas de morar, dos elevadores, então resolveu fazer aquela construção que foi absolutamente extraordinária. O Escosteguy fez uma coisa que era um foguete que era uma pipa melancólica, e eu fiz uma/entrei de paletó e gravata numa galeria com uma pasta e eu tinha preparado na parede atrás de um painel de madeira, eu tinha preparado uma frase com uma fotografia. A fotografia eram os olhos do Grande Otelo e ai eu entro/não se via nada, tinha um painel na frente, eu entrei com uma pasta executiva, sentei na frente daquela parede branca, abri e tirei uma/botei na tomada, era uma máquina de furar, e fiz um buraco, ai fiz um circulo no buraco, assim “olhe aqui”. Levantei, botei tudo, guardei e saí da galeria. Fizeram fila, e era mais ou menos oitenta centímetros, que obrigava o cara a ficar meio assim e ai lá atrás estavam os olhos do Grande Otelo assim: “o que está fazendo você nessa posição ridícula, olhando para um buraquinho e não olha a sua volta com tanta coisa errada acontecendo” e ai o cara tomava esse esporro, saía e não falava nada pro seguinte ((risos)). O Rubens que encerrou todo mundo naquele super elevador, tinha umas quinze pessoas, Zuenir Ventura/eu me lembro de duas pessoas, Zuenir Ventura e Gustavo Dahl, e ai cobre de plástico e começa a pintar e a fechar com cor, com coisa e aquela coisa fica encerrada. O Rubens pára de pintar e simplesmente deixa eles lá dentro. Aí começou aquele murmurinho, e eles querendo sair. Quer sair sai, ai os caras não aguentaram pra sair, que era a ideia que o Rubens tinha de criar uma situação que era um pouco a situação que a gente vivia. Então essa ideia/pra você ter ideia, o Paulo Afonso Grisolli nessa época, antes de dirigir televisão, dirigia teatro, pediu uma conversa com a gente sentamos num botequim pra conversar sobre a experiência da performance, dessa instalação. Evidentemente que a gente conhecia a Lygia Clark, Helio Oiticica, evidentemente que a gente trocava ideias, não tem nada a ver diretamente com o trabalho, mas tem a influência dessas experimentações que estavam acontecendo simultaneamente na época e o Grisolli pergunta: - como é que é isso? E três meses depois o Grisolli monta num teatro que tinha ali no Flamengo, uma peça chamada Onde canta o sabiá, onde ele pendura pela primeira vez um trapézio no palco e o ator sai e avança pra cima da platéia. O que ninguém pode imaginar é como é que era a grande conversa que existia entre cinema, artes plásticas, teatro, literatura. Rubens fazia capas/eu fiz tanta capa de livro pros escritores, era uma conversa, cartaz de cinema, coisas, cartazes pra teatro, cenários de teatro. A conversa grande entre setores, essa comunhão, essa coisa mais coletiva, existia. A primeira coisa que a ditadura fez na Escola de Arquitetura foi acabar com o trabalho de grupo, eram trabalhos individuais. Quatro arquitetos faziam o trabalho final do ano. Trabalhavam juntos e ganhavam a nota, os quatro, para um trabalho coletivo. Depois o cara era obrigado a fazer o trabalho individual. É essa noção que eu acho que o Rubens generosamente leva para o Parque Laje depois, essa experiência que existia antes, que ele tenta encucar lá. Quando ele convida o Marcos Flaksman pra fazer um curso de cenografia no Parque Laje, que era uma escola de artes visuais/eu acho que tem que conversar com o Marcos, por exemplo, pra mostrar a liberdade que ele teve lá, o ( ), esse tipo de coisa que o Rubens sabia, porque tinha nascido intelectualmente no trabalho mais misturado.
23:07
BERNARDO: A Nova Objetividad, por que surgiu a Nova Objetividade?
VERGARA: Veja, a Nova Objetividade Brasileira/porque exatamente, pra neutralizar essa idéia pop que existia. A gente tinha o prazer da convivência com um intelectual arrogante e transgressor, que era o Helio Oiticica e ele imagina essa coisa, ele sabia que não era pop, que era uma coisa, que era uma nova objetividade brasileira, alguma coisa que tinha um caráter daqui e que não era provinciano, não era provinciano, era reflexivo. Era um trabalho cujo uso/Lindonéia, por exemplo, o uso de um personagem de jornal era o uso/Antonio Manuel também vai usar os ( ) de jornal. Era uma coisa que nós todos estávamos/Cildo vai usar nota de dinheiro. Toda essa coisa está um pouco/uma nova objetividade brasileira. Ou seja, é arte, não é arte e volta a ser arte. É arte, não é arte, é panfleto, e volta a ser arte. Eu acho que isso faz parte dessa idéia. A idéia da Nova Objetividade é a idéia de criar um espaço e uma espécie de perfil nosso onde a gente pudesse ser reconhecido e que acaba sendo reconhecido depois por ( ), por um montão de gente que vê que tem uma coisa que faz sentido. Ou seja, tem um marco de pensamento que pertence a um grupo de malucos do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, que são os artistas da vanguarda brasileira. Esse nome vanguarda, eu acho que é muito importante ter também o nome que tem que ser acoplado, falar, estamos falando do Rubens aqui, mas não pode não falar do Mário Pedrosa, quer dizer, a arte é o exercício da liberdade. Essa frase/isso liberou geral pra nós e ele era simplesmente o presidente da Associação Mundial de Críticos de Arte e foi o cara que tirou Morandi da Itália. Foi o primeiro cara que tirou o Morandi da Itália, pra mostrar na Bienal de São Paulo. Atenção. O que é Morandi? Todos nós sabemos, Morandi é um novo tipo de beleza, é outra coisa. Todos nós estávamos atrás de um novo tipo de beleza, que não fosse absolutamente boba, ou decorativa, ou bem comportada. Um novo tipo de beleza que pode vir do trágico. Lindonéia.
26:23
BERNARDO: Pode prosseguir. ( ) fazer mais perguntas.
VERGARA: Acho que não tem mais muita coisa.
26:30
BERNARDO: Não. Deixa só eu te fazer mais duas perguntinhas então. Eu queria saber se você consegue, na tua memória, me dizer o que Nova York mudou no artista Gerchman. A experiência de Nova York.
VERGARA: Qualquer pessoa/vou voltar um pouquinho atrás. Mil novecentos e sessenta e cinco, ou sessenta e sete. O Estado americano faz um projeto de Estado e manda um cara chamado Robert Rauschenberg pra Bienal de Veneza, transportado por dois aviões da Força Aérea. O trabalho de Rauschenberg foi transportado por dois aviões da Força Aérea Americana. O Mud Pool, que era uma coisa gigantesca de lama borbulhante/os trabalhos eram gigantescos. Rauschenberg ganha a Bienal de Veneza e o pólo de arte sai de Paris e vai pra Nova York. É um projeto de Estado. Está me escutando dona Dilma? Isso é um projeto de Estado. Cultura é um projeto de Estado. Mudou o pólo de Paris pra Nova York. A pop explode. Eu vi na Bienal de São Paulo o Barnett Newman de paletó, gravata borboleta, em frente ao seu quadro e disse assim: -pintei a mão, eu pintei a mão. Por que ele dizia isso? Porque não tinha um traço de pincel, parecia pintado à pistola e isso é pintado à mão. Subtrair o rastro pessoal era um esforço gigantesco de um senhor artista chamado Barnett Newman, não estava nessa coisa expressiva, expressionista. O valor estava na relação de cor, era outra proposta de coisa. Você pode não concordar, mas é uma proposta intelectual de pintura. Pintura é uma forma de pensar e Nova York passa a ser, não que não fosse interessante antes. Tem uma exposição do Museu de Arte Moderna agora, da coleção desse/eu esqueci o nome ( ), que é uma coleção absurdmente extraordinária, feito por um brasileiro, ele é belga-brasileiro, que morava em Nova York nos anos cinqüenta, quarenta e tal, então sempre morou em Nova York e colecionou. Tem tudo lá Picabia, tem Man Ray, tem tudo que ele comprou nos botequins dos caras. Quer dizer, então Nova York depois dos anos sessenta/por que o Helio vai pra Nova York? Por que o Rubens vai pra Nova York e não vai pra Paris? Porque ali tem uma/eu ia pra Nova York pra ver/quando eu chegava a Nova York o Helio deixava uma lista no meu ninho dizendo assim: -está acontecendo isso, isso, isso e isso. Tinha uma bula pra me encurtar o caminho, pra não ter que ficar procurando no jornal, no New York Times ou no Time Out as coisas, no Village Voice, já tinha lá. Então eu ia. Começava de manhã indo ao ( ) , vi todos os filmes de Duchamp, de Man Ray, Picabia, todas as coisas do dadaísmo eu vi lá. O Rubens também. Pra entrar na casa do Rubens tinha que passar por três bêbados pobres, porque ele morava no Bowery na época que o Bowery era outra coisa. Hoje o Bowery tem o New Museum, que é uma coisa espetacular, mas na época que o Rubens/mas ele estava lá, ele estava querendo ficar nessa freqüência. Ele, Miguel Rio Branco, Helio Oiticica, estavam lá, Cildo Meireles, Teresa Simões, estavam lá a fim de estar contaminados com essa freqüência e tanto assim que a fase do Rubens/evidentemente que quando o Rubens começa a escrever nas coisas, a parte mais reflexiva, conceitual, do Rubens é troca com aquele ambiente reflexivo de Nova York, ( ) e todas essas coisas que depois a gente tenta dividir com os outro através do Malasartes. É isso. Eu acho que ele foi lá nessa tentativa mesmo, de correr mais riscos.
31:15
BERNARDO: O que você acha/na tua memória do amigo Gerchman, como é que você explica, por exemplo, o Gerchman, quando volta de Nova York e vocês estavam tinindo, na ponta dos cascos, ele deixa o ateliê e vai se dedicar a essa função de pensador, de educador, na pedagogia do Parque Laje.
VERGARA: Porque eu acho que tem essa noção do criar o contexto, era fundamental ele criar o contexto pro próprio trabalho dele, quer dizer, do contrário continuaria sendo o Portinari o padrão e o Portinari não é o padrão, o Portinari é um grande artista. Posso gostar, não gostar, posso gostar, eu posso gostar mais de Goeldi, mas é um grande artista. Eles tiveram o contexto deles, feito pela Escola de Belas Artes, porque era outro momento. O próprio Estado Novo criou o contexto para o Portinari. O Rubens tinha essa noção. Na verdade é o seguinte, era fundamental a interlocução. Quer dizer, na exposição que eu fiz há alguns anos atrás inaugurando a galeria do Arte 21, eu chamei um amigo meu, que é um jovem artista, hoje está explodindo por ai, o Thiago Rocha Pitta, pra ter um conversa comigo, e a conversa chamou o seguinte: conversa de um jovem que está chegando com o velho que não está saindo, é isso. Acho que essa era a proposta do Rubens no Parque Laje, uma conversa de jovens que estão chegando, com um velho que não está saindo, que não tem que sair. Essa ideia, por exemplo, essa ideia do jovem artista hoje ser uma coisa, valor de mercado, quase uma moeda de troca. Jovem artista é talha, porque tem jovem artista ruim pra caramba. Vinte e dois anos e fala assim: -a minha obra. Que obra? Você tem vinte e dois anos, está começando, não incorpora essa vestimenta do mercado, isso interessa só ao mercado, não interessa ao teu trabalho. Quando eu falo, tem alguns amigos meus que são jovens artistas, por exemplo que são grafiteiros, eu falo: -tenha coragem, mata o teu personagem, como é que tu vai envelhecer com um personagem desse? Mata ele! Porque é uma forma de pensar o mundo. A arte é uma forma de pensar o mundo e dividir esse pensamento com os outros. Isso é o esforço da criação de uma nova beleza, porque nova beleza não tem a ver com/por exemplo, se alguém fosse falar em nova beleza para o Matisse/se você olhar o Matisse/eu acabei de voltar, de ver a Barnes Collections com o Matisse, com o Soutine e com o Cézanne que tem lá, aquilo não tem nada a ver com as belezas daquela época, era uma contravenção, aquilo é uma contravenção. A beleza vigente, as maçãs poderiam cair da mesa do Cézanne, aquelas mulheres do Matisse não se sustentam, as bailarinas também/as dançarinas na verdade são delírios. Quer dizer, é um novo tipo de beleza que é procurado e a cada geração vai se substituindo, tem que responder as glândulas internas, tem que responder as vontades glandulares da juventude, mas não essa ideia de que/como éramos nós, jovens artistas, não éramos interessantes porque éramos jovens, a gente estava trazendo uma coisa diferente mesmo, não era por causa da idade. Eu tinha vinte e três anos e fui pra Bienal de São Paulo pela primeira vez com vinte e três anos, o Antonio ganha a Bienal de Paris com vinte e um e o Antonio nunca parou de pensar, o Antonio é um trabalhador, ele é um/continua cavando, é um sísifo, levando aquela pedra lá pra cima e pedra desce. Eu acho que/eu intuo, por que eu nunca conversei com o Rubens sobre o Parque Laje, conversei muito sobre o Malasartes, mas o próprio Malasartes, que nós fizemos juntos, era um caminho em direção aos outros, era um esforço em direção aos outros, generoso, que fazia parte da criação de um contexto para o nosso trabalho, então não é uma coisa – oh que generosidade grande e tal. Não, é uma visão inteligente de que você precisa de contexto para o teu trabalho repercutir. Então é isso.
36:39
BERNARDO: Só fazer mais uma perguntinha então. Assim, é só porque essa noção/fazendo essa comparação do jovem que você está falando, do jovem de vinte e dois e/quer dizer que tem obra, se vocês tinham a noção do tamanho disso, pra história da arte. Obvio que não, não pra historia da arte. Perguntei mal, vou reformular. Vocês tinham noção, por exemplo, que vocês estavam talvez fazendo o primeiro happening da arte brasileira?
VERGARA: Não. A gente tinha noção que a gente estava na vanguarda, mas não tinha nenhuma/essa história/a gente sentava no botequim com o Antonio Calado, com vinte e três, vinte e quatro anos. Ontem eu encontrei com a Ana Arruda que veio me beijar, a mulher dele, quer dizer, da mesma forma que há quarenta anos atrás. A gente não tinha/essa noção é uma noção deslocada. Certas noções vem do mercado. O mercado hoje tem uma influência muito grande inclusive nessa construção desse universo hoje. Trinta galerias, quarenta galerias em São Paulo, cem galerias. Nova York é uma coisa louca. Ontem, quando o professor da Universidade de Columbia almoçou aqui, conversamos um pouco sobre arte, um pouco sobre memória. Ele escreve sobre arte e memória e no fundo ele queria saber... -como é que você fez esse peixe? Qual é a receita desse peixe? Eu acho que essa idéia de/vou trabalhar porque o meu nicho no mercado vai ser esse e tal, se for por ai/porque eu acho que o trabalho tem que adensar, adensar, adensar e essa tentativa/nós todos erramos, não adianta chegar e dizer que todos os quartetos do Bethoveen são bons. Tem melhores, tem os melhores e tem os menos bons, como no trabalho de todo artista tem a coisa que é desbundante, que é o melhor que ele pode. A mesma coisa é dizer assim: o melhor artista brasileiro. Quem é o melhor artista brasileiro? Não tem o melhor artista brasileiro, você tem um caldeirão, o que é maravilhoso é que você tem um caldeirão de gente jovem interessante, de gente velha interessante, de gente de meia idade interessante, tem uma produção que é um caldeirão, vai nesse caldeirão e pega o que bate na tua cabeça, o que te anima. A arte foi feita pra animar, no sentido de anima, da alma, pra alimentar a alma. Não sei, eu acho que o que é legal de falar do Rubens é que a gente cai em si que ele foi um homem generoso da forma grande de ser generoso, quer dizer, porque ele não esquecia de si mesmo. E fim de papo.
00:03
ENTREVISTADOR: A história é a seguinte, como eu te falei, é um pouco dessa história do Parque Lage, então eu queria que você contasse primeiro quando foi que você chegou no Parque Lage e como é que era esse Parque Lage que você encontrou.
DANIEL SENISE: Eu cheguei ao Parque Lage no começo dos anos oitenta, oitenta e dois, por aí, oitenta e três e era um lugar muito simples. Tinham dois ou três cursos que me interessavam. Era o do John Nicholson, do Luiz Aquila e do Charles Watson. Eu fiz por três meses o curso do John, um ano depois voltei, fiz três meses de curso do Aquila, depois eu virei tipo um sócio do Parque Lage, eu ia lá pra encontrar o pessoal e tal, conversar, e depois, quando eu já era artista, eu comecei a dar aula no Parque. Isso rápido, no meio dos anos oitenta eu já estava dando aula no Parque.
01:00
ENTREVISTADOR: Mas como é que era o sistema de aula, a metodologia dos cursos, eles eram separados?
DANIEL SENISE: O Parque não tinha uma estrutura de escola. O diretor naquela época era um cara muito livre. Depois do Gerchman foi o Ruben (sobrenome do diretor). E o (sobrenome do diretor), que era o diretor na época, ele basicamente/você dava o que você queria. Você ensinava o que você queria. Então eram cursos estanques, independentes uns dos outros e bem poucos, não tinham muitas opções. O Parque era como se fosse realmente um clube, um lugar que você ia lá conversar sobre coisas e estar com o pessoal, mas não existia quase curso teórico na escola e não existia uma linha de/você entra, segue mais ou menos um caminho, pega um curso mais básico e vai pegando uma coisa mais complexa. Você entrava no curso que você queria. Talvez o Charles Watson pedisse pra que/alguns requisitos, pra alguns alunos, pra ter a pessoa como aluno.
02:13
ENTREVISTADOR: Mas não tinha metodologia na Escola?
DANIEL SENISE: Eu acho que não tinha. Não tinha. Cada curso era um feudo independente e isso foi o que o Parque foi assim, ao longo do meu tempo até recentemente. Eram grupos, cursos estanques e sem muita comunicação com outros. Como o peso de cursos teóricos é maior hoje em dia, alguns cursos davam uma parte teórica, ainda dão, e uma parte prática. O Parque teve uma reforma de ensino recentemente, da qual eu participei e a gente tentou fazer um curso de entrada e um curso de saída pra tentar criar um fluxo dentro do Parque e é mais ou menos como está acontecendo e está indo bem. Tem a participação do estado agora então tem uma grana que está vindo pra apoiar esse curso de entrada, então acho que ele é todo/é pago pelo estado, subvencionado pelo estado.
03:23
ENTREVISTADOR: Essa idéia que você falou da convivência, interessa muito a gente porque na época do Gerchman lá, no próprio festival, ele fala dessa coisa que o lazer é um lugar importante para o conhecimento, ou seja a pessoa que/se a pessoa é feliz ela tem um cérebro que absorve melhor, ela tem mais potencial criativo. Queria te perguntar, como é que era a convivência nesse período, desde que você chegou lá? Essa convivência se dava como, com que freqüência que as pessoas se viam lá?
DANIEL SENISE: O Parque era realmente como um clube, você chegava lá e encontrava seus amigos e eu o usava basicamente pra isso. Na minha aula com Aquila/ele conversava com você às vezes, de vez em quando, sobre o que você fazia e foi lá que eu encontrei os caras com quem eu tive o meu primeiro ateliê, que era o Pizarro, o Venosa e o João Magalhães, daí eu continuei indo ao Parque, mas fazendo uma social. Quer dizer, ele sempre teve uma função social muito importante pra mim e posteriormente como professor eu aprendi muito porque tinha que ensinar, eu não sabia muita coisa e ai eu acho que foi importante pra minha formação no meu trabalho mais dar aula do que ter aula. Na prática eu tive aula durante seis meses lá.
04:49
ENTREVISTADOR: Você chegou lá, você era muito novo né?
DANIEL SENISE: Mais ou menos.
04:53
ENTREVISTADOR: Enfim, você estava cru na arte né?
DANIEL SENISE: Totalmente.
04:56
ENTREVISTADOR: E como é que era, você tinha essa/você e a sua geração ali, essa turma com quem você convivia, Pizarro, conhecidos do ateliê e tudo mais, vocês tinham esse conhecimento de arte brasileira, vocês sabiam o que tinha acontecido antes?
DANIEL SENISE: Não, eu não conhecia, não sabia a história do Parque. Eu não sabia do Gerchman, sabia muito pouco de arte brasileira. O que eu sabia/tinha me formado em engenharia, o que eu sabia de arte brasileira eu vi nas poucas Bienais que eu fui em São Paulo. Eu queria fazer alguma coisa, não sabia o que e nem como e nessa época o olho estava muito voltado para fora do Brasil, então não existia, na época que eu entrei na Escola uma continuidade com a arte brasileira dos anos setenta. Foi tudo inaugural e no meu caso eu queria respostas rápidas, então por isso que eu não fiz o curso do Charles, porque o curso do Charles aprofundava mais a coisa, fazia você problematizar. Pra conseguir alguma coisa, você tem que problematizar, mas era mais divertido fazer o outro curso, que era mais livre e tal, e é isso, eu não sei.
6:05
ENTREVISTADOR: Não, porque tem uma coisa que a gente repara, que não é necessariamente/um momento não é diferente do outro, eles são distintos mas não é uma ruptura, a geração oitenta, a coisa da volta a pintura, não é necessariamente uma ruptura. Aquilo também já estava ali um pouco antes, no ensino do próprio Gerchman, mas porque/eu queria entender, porque é difícil pra gente entender, era uma escola de pintura basicamente? Porque ficou muito caracterizada a pintura, naquele retorno de vocês da pintura ali.
DANIEL SENISE: Eu não sei como era na época do Gerchman, mas na nossa época, até pelo contexto mundial, era pintura que estava acontecendo e o Aquila era um pintor, é um pintor, e o Charles pintava na época. Ele se formou na Inglaterra/ele pintava também. John Nicholson pintava também, e tinha uma aula de 3D que eu não me lembro quem dava, mas o forte da Escola era a pintura, e tinha desenho com o Luiz Ernesto também. Luiz Ernesto dava uma aula no curso de desenho, então era tudo no 2D. O contexto internacional nessa época era pintura também.
07:30
ENTREVISTADOR: Como é que esse contexto chegava até vocês?
DANIEL SENISE: Revistas. Eu acho que a gente tinha uma biblioteca no Parque e eles recebiam essas revistas internacionais, então você via o que um cara estava fazendo, que foi terminado há três meses atrás, sei lá, na Itália ou em Nova York e já estava na revista na Escola e isso é tão influente ou até mais do que o contexto onde a gente estava aqui, que tinha uma ruptura realmente pra mim. Eu não vim de uma escola de arte e não tinha tanto acesso/e não existe até hoje muito acesso a arte contemporânea brasileira nos museus. De vez em quando você tem alguma exposição e tal, mas você não tem uma exposição permanente que que te explica o que aconteceu, períodos anteriores e tal. No Parque a gente, com a turma dos alunos do Charles também, que era Bia Milhazes, o Chico Cunha, a gente fazia grupo de estudos e estudava arte nos ateliês ou nas casas. Não tinha isso, a escola não estava dando isso e era muito prosaico. A gente estudava Impressionismo, Expressionismo, entendeu? Claro, a gente se encontrava, era divertido, era todo mundo jovem, mas nunca passou, nesse momento, estudar concreto ou neo- concreto, sabe? A gente estudava arte moderna nos seus primórdios e isso durou algum tempo, mas aconteceu.
09:06
ENTREVISTADOR: Também tem uma outra coisa que é engraçada, eu estou querendo destruir certos mitos aqui contigo. Tem esse início também um pouco romântico, antes dos anos setenta era bacana porque tinha essa coisa da loucura e que nos anos oitenta o mercado tomou conta, então cada um foi fazer a sua pintura. Mas você está me falando dessa troca que vocês tinham; você acha que faltava uma coletividade, qual a tua opinião sobre isso?
ANIEL SENISE: Como faltava uma coletividade?
09:43
ENTREVISTADOR: Assim, porque não tem muito coletivo de arte naquele momento também, né?
DANIEL SENISE: Não. Eu acho assim, nos anos setenta não tinha mercado e se tivesse mercado, estava todo mundo operando com essas/com esse fato, sabe? Tanto é que os artistas dos anos setenta que estão vivos, ele estão no mercado e estão bem, produzindo obras legais, entendeu? E nos anos oitenta não foi um projeto nosso trabalhar no mercado, foi uma situação, foi o contexto que fez aquilo. Tinha mercado pra gente e os meus trabalhos e os trabalhos que nós vendíamos eram muito baratos, você entende? Mas foi um começo, e esse mercado beneficiou todo mundo, entendeu? Quem já estava, e quem entrou. Mas foi o começo de uma/se você quer usar essa palavra, profissionalização da arte. O contexto da arte ficou mais profissional, o que não é ruim, entendeu? Se você tiver a dose certa desse tipo de profissionalização. Mas foi ficando cada vez/se você quiser mais intenso, pior, com o passar do tempo. Hoje em dia galeristas vão numa escola de arte procurar novos artistas, entendeu? Nessa época era mais tranqüilo. Foi muito estranho eu vender. Um dia chegou um cara no meu ateliê e comprou cinco trabalhos meus e cinco de Pizarro e a gente foi pro bar ((risos)). Vender aquilo que a gente fazia foi inesperado. Quer dizer, não foi o nosso projeto, vamos atacar o mercado. Eu tinha um trabalho, eu me segurava fazendo o outro trabalho, eu não queria que uma coisa poluísse a outra e invadisse outro terreno, entendeu?
11:38
ENTREVISTADOR: Por que você foi virar artista?
DANIEL SENISE: Por quê? Ah, não sei, eu queria fazer alguma coisa, mas eu não sabia, eu não estava/eu sempre desenhei e tal, mas eu não queria ((ruídos no local)) -- está muito barulho isso? --
11:53
ENTREVISTADOR: Nesse momento foi, mas até então estava tranqüilo.
TERCEIRA PESSOA: Está tranqüilo, o problema foi quando fez o barulho.
ENTREVISTADOR: Mas está numa boa, estamos num ambiente de ateliê, assim, eu acho que não há tanto problema, só quando fica muito barra pesada.
TERCEIRA PESSOA: É, quando fica batendo a caixa assim .
DANIEL SENISE: Ô Mari? Ô (Roger)? Quem está ai atrás do pano? Faz um silenciosinho agora, por favor.
ENTREVISTADOR: Mais quinze minutinhos.
DANIEL SENISE: Só dez minutos.
ENTREVISTADOR: Obrigada.
DANIEL SENISE: Qual é a pergunta que você falou?
12:31
ENTREVISTADOR: Eu tinha te perguntado por que você resolveu virar artista. Por que você buscou a arte e não por que você virou artista né. Por quê?
DANIEL SENISE: Eu gostava de desenhar, eu desenhava, fazia encontros da engenharia, eu ilustrei jornais, fiz charges, depois fotografei. Daí quando eu me formei eu fui fazer outras coisas, fui trabalhar com uma coisa chamada videotexto, que não existe mais. Quis juntar tecnologia e arte. Eu cuidava da parte visual do videotexto do Banco Nacional, que é uma coisa que não existe porque existe o PC, o computador pessoal. Era uma mídia que juntava telefone, televisão pra você acessar bancos de dados remotos. Eu fazia a parte visual e tal, que é a internet né. Daí eu tinha meio expediente nesse trabalho, tinha uma moto e eu fui pro Parque Lage. Em dois meses eu arrumei o ateliê com esses caras, em Botafogo e realmente mudou a minha vida porque eu pensei, agora estou com um problema . Ai eu comecei, entrei nesse (...)
12:48
ENTREVISTADOR: Por que você foi parar no Parque Lage, você lembra?
DANIEL SENISE: Não.
12: 51
ENTREVISTADOR: Como você descobriu o Parque Lage?
DANIEL SENISE: Já devia ser como hoje, uma referência e não tinha outra, entendeu? E era um lugar que você podia entrar e começar na hora. O meu primeiro contato com o Aquila, eu entrei e falei, posso fazer a tua aula? Eu passei por uma vila que o Aquila morava, eu vi aquelas telas assim, pensei, legal. Ai eu fui no Parque e vi que esse cara dava aula lá e falei, posso fazer a tua aula? Ele falou, pode. Eu falei, e o que eu faço? Ele falou, compra tinta. Ai ele virou pro Pizarro e falou, que cores Pizarro? Vai falando as cores ai! Eu fui anotando e fui na loja. Eu não sei, acho que já tinha uma loja lá, comprei as tintas, voltei e comecei a pintar. Claro que, isso é/e cada semana eu pintava de uma maneira diferente, ele não dava exercício, nada, entendeu. Um dia eu fiz um trabalho assim, que eu meio que entrei num processo mais complicado. Eu botei na sala, quando ele chegou, ele apertou minha mão ((risos)), não era muita conversa. O Aquila/o Charles, ao contrário, você tinha que pegar uma tela de tal por tal quadrada, dividir em nove quadrados e em cada quadrado você ia fazer uma pintura com uma característica diferente da outra. Aí eu falei, eu não quero fazer isso. Deveria, por exemplo. Teria sido legal. Eu fiz isso num caminho mais longo, entendeu?
15:22
ENTREVISTADOR: Isso que você diz do estudo (...)
DANIEL SENISE: De aprofundar, de você experimentar as coisas e tal. A ponto de eu já ser um artista participando da Bienal de São Paulo de oitenta e cinco e nunca ter usado tinta óleo, entendeu? Pintor. Ai quando eu comecei a usar que as coisas ficaram mais complexas porque eu comecei a entrar realmente na complexidade da pintura, entendeu? Já estava, mas numa questão mais formal antes né. Mas essa entrada fez com que eu decidisse não usar mais a pincelada, por exemplo. Isso tudo não tem a ver com o Parque, isso é o meu processo já dentro do/era o artista, estava na Bienal, então eu estava experimentando ainda. Eu sabia que não tinha ainda a coisa fechada. Quer dizer, nunca fecha, mas em oitenta e sete foi a minha primeira boa crise assim de/que eu já estava/já tinha galeria, vendia meus trabalhos e estava experimentando muito, sabe. Não tive tempo para fazer isso antes da primeira exposição. Mas foi legal, foi como aconteceu.
15:35
ENTREVISTADOR : Como é que você, nas tuas memórias, como é que foi a tua experiência assim, que você lembra, de encontrar com a tela em branco. Como é que o professor, no caso o Aquila, e você o aluno, como é que foi o contato pela primeira vez com essa tela em branco, esse encontro com a arte?
DANIEL SENISE: Como o Aquila não demandava alguma coisa, eu comecei a olhar outros artistas, entendeu? E eu olhei por exemplo, David (Rockner) eu olhei, era um cara que eu gostava bastante. Então eu trabalhava um pouco à maneira do David (Rockner). Depois passou um Francis Bacon por ali, entendeu? Mas eram coisas de aluno, experiências, e às vezes eu dava uns trabalhos. Às vezes esses trabalhos aparecem aqui. Então eu usava uma estrutura de fora, coisas que me interessavam, pra tentar descobrir o que valia para o meu projeto, nessa construção. Mais ou menos eu era bem/sou organizado. Em oitenta e três eu já não estava mais no Parque. Eu viajava muito para São Paulo por conta desse trabalho no banco, eu vi um cara chamado Markus Lüpertz, um alemão, na Bienal de oitenta e três. Eu gostei muito da maneira como ele organizava a pintura e eu criei uma maneira minha de fazer isso, imaginando, como ele fazia. Pegar uma estrutura, uma imagem, e desconstruir. Uma imagem do meu cotidiano e tal, e foi isso que me fez virar artista, sei lá, em três, seis meses. Eu ganhei um monte de prêmios, fui pro Japão, fui pra Bienal de São Paulo com um trabalho que é realmente bem legal. Eu tenho uma tela dessas aqui no fundo, mas, também não era ainda o que eu estava querendo, mas eu tinha que me divertir também, então foi muito bom fazer aquilo. Em dois dias eu terminava um trabalho. Trabalhava intensamente, sabe? Tinha uma elaboração ali, mas, tinha a presença desse corpo estranho, que criou essas/o Lüpertz né, depois ele saiu do trabalho e como eu falei, quando entrou o óleo, ai o trabalho descarrilou total, eu passei a não terminar em dois dias o trabalho, passei a não terminar o trabalho. Às vezes eu largava, voltava. O ateliê ficou uma coisa/só tinha tinta em tudo que era canto, bem diferente disso aqui, e ai eu comecei a colar minha telas nas paredes, isso em oitenta e sete e é o que eu faço até hoje, eu fico colando telas nos lugares. Uma das coisas que eu faço. E fui elaborando as coisas nesses acidentes, descobertas, experiências. Eu acho que em noventa e três eu podia dizer que eu estava com uma obra já meio organizada pra seguir em frente.
TERCEIRA PESSOA: Acho que ele falou coisas que você adora né, acidente, Bacon ((risos)) . Não quer fazer uma pergunta aí?
19:49
ENTREVISTADOR: É que o acidente é uma das coisas mais interessantes do processo. Ai eu tenho feito essa pergunta, eu fiz pro Vergara também. Assim, qual é o espaço do acidente? Não tem muito a ver com o que a gente está perguntando aqui não, mas dentro do seu trabalho, assim, qual é o espaço que você dá pro acidente, como é que você permite que ele entre no seu trabalho?
DANIEL SENISE: O Bacon fala muito naquela entrevista com o Sylvester sobre o acidente e acho que eu entendi noventa por cento do que ele fala porque o acidente é uma coisa que você pode fazer o que quiser, mas você pode simplesmente descartar se não te interessar, então não é tão acidente assim, entendeu? Tudo bem, dentro da obra do Bacon, que ele está fazendo o acidente dentro da tela; no meu caso o acidente é mais uma coisa que passa na minha frente, que eu não estou imaginando. A tela colou no chão do ateliê. Eu fazia até esses primeiros acidentes, mais profundo pra mim, da tela colar no chão, eu fazia uma pintura de processo, de embate. Chegava no ateliê e ficava. Tinha dias que eu ia pra casa derrotado. (No dia eu conseguia ter feito alguma coisa). Com o tempo, você vai controlando mais essas coisas e o embate, o processo pra mim ficou um pouco mais/hoje em dia, muito tempo depois, eu ainda preciso disso. Mas ele está contido numa parte do trabalho. Tem uma série de trabalhos que eu faço que são basicamente composições, vai pra lá, põe pra cá. Eu uso uma abordagem subjetiva para escolher, para decidir sobre esse trabalho. Ao mesmo tempo eu faço outros trabalhos que a composição está totalmente dominada e tem decisões de cor, cromáticas e tal, mas eu sei mais ou menos/eu tenho muito domínio sobre o que vai acontecer no final do trabalho. Mesmo nesses casos de trabalho que eu tenho muito domínio, tem coisas que aparecem e você coloca e te surpreendem, entendeu? E eu acho que é isso uma das coisas mais importantes para você fazer um trabalho, é não estar engessado dentro daquilo que você está fazendo, poder de repente mudar de idéia rapidinho. Hoje o que eu preciso para não ficar engessado é estimulo externo, quer dizer, fora ver documentário, filme e tal, eu preciso trabalhar com uma galera jovem, que traga um tipo de incômodo pra mim. Eu tenho que me atualizar. Hoje quem está começando tem todo um registro que é diferente do meu quando eu estava começando e eu acho isso legal. Então tem um regime de troca que, a gente almoça todo mundo junto todos os dias e tal. O pessoal vem, passa um tempo e vai embora, tem sempre uma rotatividade, então eu estou sempre com um pessoal jovem aqui também, que estimula esse lado da interferência, do acidente. O acidente, eu sempre associo àquela areia que entra na ostra e daí aquilo vira uma pérola. É uma coisa que não estava no projeto e você tem que elaborar em torno e tem que achar uma solução praquilo.
23:16
ENTREVISTADOR: Falando dessa coisa do jovem, porque tanto eu como o Pedro, a gente fala muito do Parque Lage há dez anos atrás e você falou dessa metodologia que você teve que criar para você mesmo, pra começar. Porque, o que a gente já conversou, o que a gente sentiu falta no Parque Lage na nossa época é que a gente, de alguma forma/não houve um aprendizado que dissesse pra gente assim, olha/que fizesse a gente encontrar nosso caminho, nosso tema, nosso método. E eu pergunto isso porque me parece que você construiu o seu, você meio que lutou pela sua sobrevivência diante da tela ali e isso é uma coisa que no período do Gerchman era muito importante, receber o aluno, esse jovem que chegava, porque ele não sabe o que ele quer, ele não entende que aquela tela está em branco mas que, como diz Deleuze, ela nunca está em branco porque é você. Assim, essa luta do jovem artista cru com a mídia, com o trabalho dele, eu senti muita falta no meu período. Me parece que no seu não tinha isso né, você foi de uma geração super prolífera.
DANIEL SENISE: O que não era discutido na época que eu comecei é que você/era o seguinte: ou você ia pintar, ou você ia fazer escultura ou ia desenhar. Não tinha muito plano B, tinha talvez vídeo e tal, mas não no Parque Lage. Quer dizer, essa é a única coisa irredutível ali. Agora, em qualquer época, eu acho que o problema é o mesmo. Você, para se entender, se resolver e se expressar como um autor ou artista, você tem que ir fundo e a escola não ensina você a fazer isso. A escola te/eu acredito que a grande função da escola é te dar ferramentas, informações, pra você entrar na sua viagem pessoal, no seu caminho pessoal. Agora, você pode usar exercícios também pra fazer isso. A escola, o curso, o professor, podem te estimular alguns exercícios, mas essa descoberta é do indivíduo. Como arte virou um negócio de muita grana, tem uma super estrutura, tem muito artista que o trabalho é completamente planejado na prancheta, como se ele fosse um diretor de arte, entendeu? E tem muitos caras desses que dão certo e são queridos por muita gente. Mas, como qualquer coisa pode ser arte, qualquer pessoa pode ser um artista, você tem muitas soluções diferentes para isso. Artistas que eu realmente gosto e que eu admiro, que me estimulam, são pouquíssimos, mas tem um universo enorme que é válido. Eu acho que, resumindo, o problema sempre foi o mesmo. Pra você encontrar a obra, ou a coisa que você está tentando formular, é um processo de internalização em um ambiente social. É um problema pessoal. A escola não vai te dizer nunca como fazer isso. Eu tenho um amigo que é artista, ele fala que existe escola pra padre, mas não existe escola pra santo. Eu acho incômodo só associar artista a santo, porque eu acho que santo não existe, artista existe.
ENTREVISTADOR: E artistas não são santos.
DANIEL: ((risos)) Não, graças a Deus. Graças a Deus é um risco né. Ainda bem ((risos)).
27:11
ENTREVISTADOR: E você chegou a conhecer o Gerchman nesse período dos anos oitenta?
DANIEL SENISE: Não, eu conheci depois, em exposições e tal e estivemos juntos numa exposição na Suécia, depois acho que eu vi a última exposição dele em Nova York, num lugar chamado Art Collectors. Eu estava lá. E aí eu achei estranho quando ele morreu, porque eu achei que ele estava super bem e tal. Ele morreu um ano depois.
BERNARDO: Pra começar essa entrevista, eu quero um pouco/vamos voltar (...) HELIO: Já começou, né? BERNARDO: Já, já está valendo. O Gerchman fala, num depoimento sobre a Escola de Artes Visuais do Parque Laje e quando ele vai falar de você, ele fala da formação que você teve na Europa, isso antes. Queria que você falasse um pouco desse Helio que se formou na Europa e como é que foi essa formação. HELIO: Eu comecei a estudar filosofia e abandonei o curso pra ir pra Europa. Peguei um cargueiro do Lloyd Brasileiro e fui pra Europa estudar cenografia em Praga, na Tchecoslováquia, ainda no período socialista e fui aluno do maior cenógrafo do século vinte, o grande cenógrafo do século vinte, da cinética, das projeções, a união do cinema com o teatro, enfim, o grande cenógrafo europeu da época, Josef Svoboda, e ai eu fui estudar cenografia com ele na Ópera de Praga e quando eu voltei, passei por Cuba, trabalhei em Cuba um tempo também, um longo tempo, um ano em Cuba e quando voltei fui trabalhar no Oficina, fiz O Rei da Vela com o José Celso, e ai eu reencontrei o Gerchman, na estréia do Rei da Vela, que foi em sessenta e sete, mil novecentos e sessenta e sete. Conversamos muito, porque nós éramos amigos de infância. Infância, um pouco adolescência. Nós nos encontrávamos nos ônibus, nas lotações, e ele me contava: - eu estou pintando, eu subo as favelas pra pintar. Ele gostava de subir o morro pra pintar um pouco a vida, como era na época, de excluídos, mas boêmios e nos reencontramos depois da minha estada na Europa, que foi uma estada de formação, dentro da vanguarda russa, com os modelos da escola Bauhaus, então eu tive uma formação muito requintada, de música também, na Tchecoslováquia e falando tcheco, que é uma língua eslava, então o contato profundo com o teatro russo, com a vanguarda russa, que anos depois, anos depois no Parque Laje eu fui colocar isso nas minhas oficinas, tanto que eu fiz uma conferencia-espetáculo, como nós chamávamos na época, uma conferência encenada, quer dizer, o professor assumia uma personagem, então nós encenávamos as conferências, como aconteceu na época da escola da Bauhaus, em dezenove, vinte, vinte e um, até o Hitler fechar em trinta e três em Berlim. O que eu fiz na Escola de Artes Visuais era/eu conhecia esse mundo todo, vanguarda russa, Bauhaus, o abstracionismo geométrico, cinética, música, então quando o Gerchman me chamou em setenta e cinco, nós nos reunimos, Gerchman, eu e Lina Bardi, pra organizar a escola. Foi uma das primeiras pessoas, fora os grandes amigos dele, foi o primeiro amigo que ele chamou para criar uma escola livre, uma escola, vamos dizer, pluridimensional, um laboratório aberto e livre de arte, então ele me chamou, nós nos reunimos no meu ateliê com Lina e comecei a organizar o que poderia ser um curso, o que ele intitulou de Oficina do Corpo, que era o corpo em relação a obra de arte, o corpo como obra de arte, a relação espacial, o ser em movimento, e ai trabalhamos um pouco a questão antropológica, antropologia cultural, antropologia do teatro e eu propus esse curso, ele aceitou e eu comecei a trabalhar com ele na escola e eu acho que foi a grande escola brasileira da segunda metade do século vinte e em tempos de ditadura, quer dizer, uma escola livre de arte, de pensamento, que depois o Wilson Coutinho escreveu um belo artigo chamado Jardim da Oposição, porque era realmente um jardim da oposição. Na realidade parecia um oásis também, a escola dentro da época, que era uma época arbitrária, de arbitrariedades políticas, ditadura, tortura, censura. Eu saí do teatro e resolvi continuar o meu trabalho em liberdade dentro da escola. Nessa época eu era o coordenador do curso de cenografia da escola de Belas Artes da UFRJ, que era uma escola livre também, tinha um pensamento livre também. Era uma escola bastante democrática, a universidade, embora estivéssemos dentro de um regime de ditadura, mas a grande escola livre, não acadêmica da época é a Escola de Artes Visuais, que é uma criação, é uma obra de arte criada pelo Rubens. O Rubens, na realidade, criou uma obra de arte, mais uma, e juntou ali grandes professores, grandes amigos e grandes artistas dessa época, na pintura, na fotografia, na música, na sociologia, então era uma escola que recebia e abrigava esse pensamento livre e crítico da época, e ali eu podia exercer minha profissão. Tudo que eu passei pros alunos fazia parte da minha formação, eu aprendi isso antes, como eu falei, vanguarda russa, construtivismo, abstracionismo geométrico, a questão da Bauhaus, a disciplina da Bauhaus, a disciplina e a fantasia da Bauhaus, porque os professores da Bauhaus se fantasiavam também, faziam cenas, faziam teatro, dançavam. E foi uma época de vanguarda, na realidade é a expressão da contracultura brasileira é essa escola, junto com algumas atividades do Museu de Arte Moderna também, mas enquanto escola, lugar onde as pessoas se encontram e exercem sua liberdade e sua criatividade, foi a Escola de Artes Visuais dessa época, a partir de setenta e cinco, setenta e seis, e quando entrei propus fazer lendas amazônicas e a história de símbolos. Gerchman inclusive fazia os cartazes pra mim. Ele desenhava muito bem, letra. Eu falei: - eu não sei desenhar letra, você desenha letra que eu faço a ilustração. Eu tenho esse cartaz ainda, um dos cartazes, feito em papel craft, porque era uma escola, como dentro da tradição da Bauhaus, embora a Bauhaus fosse ligada a arte industrial, ao design, mas a Escola de Artes Visuais era uma escola feita com as mãos, pensamento e mão, não é uma época digital, é uma época que você trabalhava mais com as mãos, com a imaginação, se pintava, se sujava, se vivia intensamente a obra de arte em construção e é uma escola portanto de arte, artesanal, uma escola feita a mão e tanto que os textos todos usavam mimeógrafos, eram mimeografados, alguns xerox em PB, que acabaram perdendo a cor e a definição com a época, mas os cartazes eram desenhados a mão. Ele desenhou muitos cartazes com papel craft, então era uma escola bem interessante, que eu até tenho procurado restaurar esse espírito nos meus últimos cursos, trabalhar com as mãos, sair um pouco do computador, da parte digital, do Photoshop e trabalhar, embora tudo isso seja importante também, porque eu não nego a tecnologia, mas é importante a descoberta do artista a partir do seu próprio corpo, o módulo, a forma de expressão utilizando a sua arte, tudo o que a mão e a mente pode construir, então é nesse sentido que foi a grande escola brasileira dessa época, de escola livre, fora do pensamento acadêmico da época, que estava bastante cerceado por conta da ditadura e da censura, e ali então exercemos nossa liberdade, havia alguma tensão também da época, porque era uma escola do estado, da Secretaria de Cultura do Estado, mas ele teve a força de um grande artista e a coragem de um artista guerreiro para impor e defender aquela liberdade dos professores em relação aos alunos. Eram alunos de várias camadas sociais, uns muito pobres, que não pagavam os cursos, os cursos eram praticamente gratuitos. E outras pessoas com formação, arquitetos, artistas gráficos, pintores, muitos estudantes, jovens marginalizados na época, então aquilo/entrar no Parque Laje, pra muitas pessoas era entrar no mundo da diversidade, mas no mundo da liberdade, da liberdade de expressão e ali aconteceram muitas coisas importantes. Poesia, poesia marginal, música, história da arte, conferências, utilizavam os materiais dos jardins, isso por influência de Lina Bardi também, porque ela montava suas exposições com as folhas no chão, então nós usamos muito material do jardim na época, e ai voltando ao Uirapuru, eu falei eu vou fazer um tema, vou trabalhar o tema do Villa-Lobos, o Uirapuru, que é a expressão brasileira, do grade músico brasileiro, eu falei, vamos trabalhar essa lenda amazônica desse pássaro, e ai foi o curso de férias e chegamos a fazer um pequeno filme, era Super 8 na época e ai foi isso que deu, aconteceu. 11:35 TERCEIRA PESSOA: No início a sua oficina se somava a do Corpo e quase imediatamente, muito pouco tempo depois de começar esse período no próprio ano de setenta e cinco, muda de Oficina do Corpo para Oficina Pluridimensional e isso tem muito a ver com o perfil que queria introduzir você, o Gerchman e outros colegas, dentro da escola, e se abrir para a multidisciplinaridade, mas também me interessa porque, sem deixar de ser uma oficina do corpo, ela trás outras expressões dentro da proposta pedagógica e na época as pessoas estavam falando muito de happening, conhecendo essa obra pela primeira vez, o texto do Allan Kaprow na revista Malasartes, o Gerchman estava com aquele ensaio da Roupa dentro do Corpo, então todo o tema do corpo transita nessas outras disciplinas (...) HELIO: Oficina Pluridimensional, Oficina do Corpo, multidisciplinas, casa, corpo, cosmo, era o nome, o tema da oficina do Corpo. Oficina do Corpo porque envolvia/há muitas pessoas que trabalhavam com o corpo na época, faziam expressão corporal e nisso houve um protesto e por isso ele mudou o nome da oficina, ele descobriu que era mais do que a Oficina do Corpo, porque nós trabalhávamos com o corpo em movimento e fazíamos exercícios e fazíamos, uma coisa como a vanguarda russa, dos atores russos e da própria Bauhaus e então, fazíamos/subíamos no terraço, fazíamos respiração, saltos com varas e depois então nós estávamos preparados. Eu achava que o corpo precisava ser exercitado dessa forma, com alegria, para estar preparado pra depois entrar na pintura, nos grandes painéis coletivos que eu fazia. Eu estendia os papeis no chão e todos trabalhavam juntos nos painéis, com variados temas. E ele achou que não era só o corpo, boddy art, ele falou: - não, isso vamos chamar de Oficina Pluridimensional. Na época as pessoas riram muito, não entenderam nada, riram - isso ai é uma piada dele! Hoje é um nome muito interessante, muito contemporâneo, quer dizer, ele viu além, porque o que nós estávamos fazendo na realidade era a multidisciplina, experimentar a multidisciplina e coordenar aquela rede de informação e era na realidade holístico também, esse método e o que eu acho que ele viu, ele soube ver e falou: - então a sua oficina não vai se chamar do Corpo porque as pessoas que são do corpo, que fazem trabalho com o corpo, estão reclamando porque você não é um bailarino/porque nós dançávamos muito, havia festas, havia a parte teórica e havia a parte prática, então levava uma vitrola, botava uns discos da época, de vários/Villa-Lobos, enfim, músicos russos, brasileiros, enfim, e fazíamos o trabalho e era um trabalho que envolvia dança, por isso ele chamou de Oficina do Corpo, tanto que o Uirapuru é um trabalho feito com alunos, com figurinos feitos com material orgânico, porque usávamos muito material orgânico do jardim, aquele jardim fabuloso, e trabalhávamos com os figurinos feitos com material orgânico e dançávamos. Então envolvia a dança, sempre envolvia o corpo em movimento, a livre expressão, não a dança como método, a dança como livre-expressão, e tanto que uma das minhas aulas noturnas era sempre um baile, era aula-baile, era o espetáculo que eu chamava de espetáculo meeting, quer dizer, as pessoas que iam pro baile, vinham com seus trajes, com seu duplo e era umas quarta feiras noturnas então as pessoas iam todas pra festa fantasiadas. Tinha uma pequena aula e depois havia a grande festa, era um pouco como as festas do Bozar em Paris, dos estudantes de Belas Artes e Arquitetura em Paris, que tinham aquelas grandes festas a fantasia. Então toda semana tinha um tema e o tema então/as pessoas vinham fantasiadas e tudo, isso foi muito criticado na época, mas ele achava muito bom tudo aquilo porque eu acho que é interessante que a escola esteja aberta pra esse tipo de evento também, todos os eventos dos outros amigos, pintores, fotógrafos e escultores, eles foram se transformando no vernissage, numa grande festa, com comidas, com vinho. Usávamos a piscina, eu usava muito a piscina, nós nadávamos muito na piscina, hoje é um pouco proibido, mas nós dançávamos muito e mergulhávamos na piscina, era muito interessante naquela época. Piscina é pra se usar, era uma casa de festa, uma escola que era uma festa e foi (...)
17:25
TERCEIRA PESSOA: O Gerchman fala na inquietação que ele tinha no começo, quando chamou vocês, porque no Instituto de Belas Artes as pessoas não se encontravam nos corredores, ( ), os alunos nem os professores se encontravam, e era muito importante propiciar que as turmas se encontrassem, se divertissem. Você há pouco falou que tudo era muito divertido e em um momento em que Gerchman fala, chega a dizer o “lazer como ferramenta pra pedagógica” e é algo que aqueles professores de arte que eram mais amigos sempre (me remetem) a festa, ao encontro, a diversão, como ferramenta. Fale um pouco do que é o lazer como ferramenta pedagógica.
HELIO: O lazer/porque aquela escola, na realidade, o próprio Parque Laje já é uma grande praça, um grande jardim, mata atlântica, um pouco com espírito jardim inglês da época, ainda do Laje, da Besanzoni, do Laje. Uma casa dos anos vinte que ele fez pra uma grande cantora de ópera, portanto era uma grande artista também. Aquela casa tem uma história fabulosa, anterior a escola, depois ela se transformou no Instituto de Belas Artes, então havia pessoas que iam pra lá pintar, seus cavaletes e tudo, e há uma grande lenda de que quando Gerchman entrou, jogou os cavaletes fora, fez uma fogueira, mas não é real, porque nós usávamos os cavaletes, nenhum pintor faria isso com um cavalete que é um suporte fantástico para um quadro, até mesmo como nós usávamos, com cartaz. Eles ficaram muito chocados com essa grande liberdade proposta pelo Gerchman e exercida pelos alunos e pelos professores, então havia essa questão, o lazer, porque eu acho que o lazer e sentir-se bem na natureza é ser criativo, você consegue se transformar numa pessoa mais livre e mais criativa também, com mais disposição para criar, para exercer o seu ofício, era essa a idéia, então havia essa questão da diversão, do divertimento, da diversão, da alegria, mas era uma alegria como Allegro, da música, era musical, vamos dizer, tanto que houve espetáculos de música pop maravilhosos lá, as noites no Parque Laje, no final até dos anos setenta, todos os grandes artistas foram cantar lá e havia recital de poesia, que era muito bonito também, a poesia marginal; há filmes até, fragmentos sobre esse evento. Essa é a grandeza dessa escola que é a possibilidade de utilizar um jardim também, a sala de aula não era aquele espaço cúbico onde as pessoas estavam confinadas, sentadas numa carteira aprendendo, elas tinham a liberdade de ir e vir, de ir ao jardim, subir nas árvores. Eu dei muitas aulas ao ar livre também, no terraço e ao ar livre. No terraço inclusive com vários banhos formidáveis, com baldes e mangueiras, pessoas trabalhando e então tomavam banhos de mangueira e adoravam e tudo, na parte da manhã, e piscina, então foi um momento que pareceu uma loucura aquela época, pareceu uma grande festa de Bacco, pareceu báquico, era báquico, mas era uma escola também onde se aprendia muito, se estudava muito, mas é essa questão que eu acho. Eu acredito que a pedagogia correta do mundo contemporâneo é essa, ela tem que ser exercida com alegria, com diversão, com música, com os grandes namoros ((risos)). As pessoas namoravam, faziam/subiam na cachoeira, desciam, tomavam banho nas cachoeiras lá em cima. Eu trabalhei com Celeida Tostes, nós fomos cozinhar algumas peças, aquelas peças orgânicas que ela fazia, muito bonitas também e era a oficina dela, Oficina do Fogo, que tem um nome lindo, pluridimensional, Oficina do Fogo, CINEAVE, então era uma época de diversão, mas essa diversão, uma diversão com bastante conteúdo, a diversão que contestava um Estado arbitrário, um período arbitrário do Brasil.
22:420
TERCEIRA PESSOA: Era divertido, mas, ao mesmo tempo você provocava essas oficinas numa ( ).
22:49
PEDRO: Ajeitar isso aqui ( ) as vezes está pegando um pouquinho na pele dele. Esse aqui está ótimo, está super coberto, só pra (...).
TERCEIRA PESSOA: Deixa eu aproveitar e tossir aqui.
CLARA: Pode tossir.
HELIO: Está pegando na pele?
PEDRO: Não, quando ele chega pra um pouco frente (...)
BERNARDO: Então é porque ele ( )
HELIO: Está direito isso aí? Está uma bagunça, não?
23:13
CLARA: Helio, você pode falar um pouco do envolvimento da Lina com a oficina, isso ainda não/eu sei, claro que o convite (...)
HELIO: Todo mundo pergunta isso.
CLARA: Isso. Ela foi pedra fundamental, mas, como ela se envolveu, até que ponto ela participou também?
HELIO: A Lina, como eu falei, nós nos encontramos pra elaborar esse curso, essa Oficina do Corpo e outros cursos, as diretrizes do que seria uma escola. Ela vinha de uma experiência muito grande, do MASP, da construção do MASP, da experiência da Escola de Teatro na Bahia e do Museu de Arte Moderna na Bahia, ela foi também vítima dessa grande arbitrariedade militar na Bahia, em Salvador, quando eles apontaram os canhões para o Teatro Castro Alves, onde ela apresentava o seu projeto de Museu de Arte Moderna, vinha de São Paulo também, então ela veio pro Rio, ela ficou até com vontade de se mudar pro Rio de Janeiro nessa época, devia até ter se mudado, porque São Paulo era repressão também, imensa. No MASP ela construiu aquele museu formidável, mas não conseguiu transformar o museu num museu escola também, por conta da ditadura, então ela se encontrou comigo e com o Gerchman no meu ateliê, como eu contei, e ai começamos a criar o que poderia ser uma escola, uma escola livre, uma escola democrática, livre e um bem comum para toda a população do Rio de Janeiro, para os jovens, para as pessoas mais velhas, para os artistas, um lugar de encontro e ai fizemos esses encontros, ele abriu a escola, ela chegou a fazer conferências sobre design. Eu tenho até o cartaz ai de uma conferencia que ela fez sobre design, muito interessante, arte popular, design.
CLARA: O desenho num impasse?
HELIO: É. O desenho num impasse. Você esse texto, não é? Eu tenho esse texto dela e depois ela escreveu num catálogo, que eu fiz uma exposição chamada Espaço Lúdico, que era um pouco/meus alunos me contestavam muito na época também, diziam: mas todo espaço é lúdico. Eu falei: nem todo, nem todo espaço é lúdico. O nome da exposição era Espaço Lúdico e ela escreveu um texto pro meu catálogo que foi impresso na escola, era um envelope de papel pardo com textos mimeografados dentro, e ela participava um pouco indiretamente da escola, mas, quer dizer, estando em São Paulo e vindo ao Rio às vezes. Ela chegou a elaborar uns desenhos pra ampliar a escola dentro da mata, e se procura até hoje esses desenhos, as pessoas que escrevem sobre ela. Tem uns desenhos não identificados no Instituto da Lina Bardi e que possivelmente são desenhos de como/pareciam ocas, tabas orgânicas, dentro da mata do Parque Laje, porque ele queria ampliar a escola, criar uns ateliês dentro da floresta, o que não foi feito, o que não foi possível fazer, então é dessa forma que ela participava, mas a Lina sempre esteve presente, porque a Lina é uma personagem fabulosa da história, da cultura brasileira, italiana e brasileira, e que ensinou e influenciou muitos artistas, muitas pessoas e ai foi/eu considero uma das autoras da Escola de Artes Visuais.
27:31
BERNARDO: Como eram essas reuniões em si, porque você tem o Gerchman, que estava vindo de uma experiência em Nova York, em contato com esse conceitualismo, dessa arte conceitual americana, com o Kaprow, e você vinha da sua experiência no Leste Europeu, com toda essa bagagem construtivista da vanguarda russa, e tinha a Lina com a bagagem dela. Como eram esses encontros, quais eram os dilemas que vocês enfrentavam nos debates?
HELIO: Olha, tive em Praga uma formação muito rigorosa, metódica e maravilhosa, musical também, intuição e método, que eu acho que é um binômio importantíssimo, você/a sua intuição, confiar na/dar vazão a sua intuição, ouvir a voz da intuição, ou as vozes da intuição, mas criar o método também, pra você não se perder na coisa introspectiva e não racional, no irracional, e Lina era muito rigorosa, era uma arquitetura brutalista, uma arquitetura/que ela gostava de fazer prédios públicos, ela nunca gostou de fazer casa pra rico. Ela não fez, na realidade, ela fez duas ou três casas pra amigos, mas ela acreditava numa arquitetura para todos, nos espaços mais democráticos, e Gerchman tem uma formação muito requintada também, como um artista figurativo, muito rigoroso também, porque estudou muito e aprendeu muito, era um colorista muito importante também, um desenhista; e eu vim de Praga com essa formação Bauhaus, vanguarda russa, vanguarda russa até pouco mais, que influenciou inclusive a Bauhaus, os professores da vanguarda russa, Kandinsky, essas pessoas, e ela/mas passei por Cuba e trabalhei em Cuba, então em Cuba eu revi o mundo, o Caribe, o ritmo, as cores, eu recuperei todas as cores e fiz O Rei da Vela, era época do tropicalismo, um dos/então eu era um aluno da vanguarda russa da Bauhaus, do Svoboda, mas tropicalista, então deu certo na Escola, funcionou dentro na Escola de Artes Visuais, que é uma escola de artes visuais tropical, então não pode esquecer essa questão. Ele foi ver o Rei da Vela, nós nos reencontramos, como eu falei, em sessenta e sete, no Oficina, sessenta e seis, sessenta e seis pra sessenta e sete e eu acho que os outros professores pensavam de outra forma também, eram professores de gravura, professores de cinema, de escultura, enfim, cada um tinha o seu ofício, exercia o seu ofício. O meu, lá dentro, era o mais, digamos, era o mais, não o mais livre, mas o mais festivo, no bom sentido, não festivo/teve uma época em que festivo ficou pejorativo, mas festivo no sentido da grande festa do corpo, do corpo em movimento e da/porque eu acreditava na época, a partir da livre experiência, da dança livre, até escrevi uns artigos na época sobre isso, que a pessoa pensa melhor quando se propõe a ser um ser dançante e ser um ser vivo pleno, porque a dança envolve música, ritmo, corpo, então eu acreditava nisso, como acredito ainda, e também no método, no método também. As pessoas liam, estudavam. Meus alunos, alguns, mantiveram belos diários de aula, desenhados, com fotografias, com grafites e bem bonitos, sobre os diversos temas. A abordagem da Oficina do Corpo e depois a Oficina Pluridimensional são as vanguardas do teatro, dança e artes plásticas do século vinte.
32:36
TERCEIRA PESSOA: Conte de novo como foi sua passagem por Cuba. Interesso-me também porque era uma, o Parque Laje ( ) as escolas clássicas, como a Bauhaus, Black Mountain, ( ), se não também trazem um outro ingrediente, o aprendizado em volta da América Latina e vários latino-americanos passaram por lá também, contribuíram, como ( ), mas no caso você vem de trás. Fale um pouco da passagem por Cuba, dessas relações, e como você trás esse, digamos, esse input que, aliás, é de tão alto nível.
HELIO: Era de muito alto nível, porque eu era amigo dos poetas e escritores cubanos da minha geração e ai um pouco mais velhos como, o Virgilio Piñera é o pai de todos, e estava ( ), estava vivo em Cuba e tudo e ai, bom/porque essa relação com a América Latina e sobretudo com a literatura latino americana se deu em Praga, porque havia a Casa de La Cultura Cubana, que era uma casa de cultura, da Embaixada dos Serviços Diplomáticos Cubanos. Eu era muito amigo dos estudantes cubanos e latino-americanos que estavam fazendo a sua faculdade na União Soviética na época e na Tchecoslováquia, alguns de cinema, outros de teatro, outros de artes plásticas, então eu freqüentava a Casa de La Cultura Cubana e ai eu conheci muitos escritores que vinham fazer palestras e passavam por Praga, que é uma cidade maravilhosa, obrigatória, uma grande cidade dos alquimistas, e ai eu tive contato através das publicações livres da Casa de La Cultura Cubana, de toda literatura latino-americana que eu conhecia parcialmente, mas lia em espanhol tudo, e ai mergulhei dentro da literatura e da poesia latino americana e da música também, e ai eu fui convidado, quando voltei ao Brasil, fiquei muito pouco tempo e fui convidado pela Casa de Las Americas, a Haydée Santamaría, que era a diretora da Casa de Las Americas e também por contado Antón Arrufat e tudo, que tinha sido um grande escritor cubano e poeta, tinha sido o diretor da revista da Casa de Las Americas, então eu fui convidado pra participar de um festival latino americano de teatro, ai fui pra Cuba, aceitei, saí daqui em plena ditadura e fui pra Cuba, via Espanha, porque você podia ir via México, mas via México você era fichado, ai tinha que passar via Espanha, que era a que mantinha as relações culturais com Cuba, sempre, nunca rompeu relações. E ai fui pra Cuba e fiquei um ano trabalhando lá, com um teatro de vanguarda importante, o Teatro Studio de La Habana, que era dirigido por um grande autor cubano chamado, ator e diretor cubano, chamado, Vicente Revuelta, ai fiquei muito tempo lá trabalhando com eles e revi meus amigos todos. Nos encontrávamos na casa de um mulher extraordinária, chamada (Olga Andreu), que era da biblioteca/era bibliotecária da Casa de Las Américas. Ela tinha um salão fantástico no apartamento dela e recebia todos esses grandes poetas, e tornaram-se amigos meus, entre ele Virgílio Piñera, Antón Arrufat, Abelardo Estorino, Reinaldo Arenas, todos eles, todos. Trabalhei um ano no teatro Studio, então isso mexeu com toda a minha disciplina, eu acho que eu me latinizei novamente, dentro do ritmo cubano, que é um grande país, com um movimento literário expressivo, importantíssimo, e de pintura também, são grandes pintores os cubanos.
37:23
TERCEIRA PESSOA: Seguramente você conhece o Martínez.
HELIO: O Martínez, claro.
TERCEIRA PESSOA: O Martínez faz um trabalho lindo, muito próximo da estética do Gerchman. O Martínez foi quem introduziu o pop em Cuba.
HELIO: Isso, exatamente, e ai acho que foi isso com/e depois fiz O Rei da Vela, que é um/O Rei da Vela é tropicalismo, tropicalismo via Cuba, porque o Rei da Vela é/O Rei da Vela do José Souza Martínez, que dirigiu dentro do Oficina, que é um marco no teatro brasileiro, é um espetáculo figurativo e todo ele colorido e tropicalista, irreverente, então eu acho que eu estava preparado exatamente depois/Escola de Belas Artes, que eu exerci minha função dentro da escola ainda em liberdade e estava preparando a realidade pra mergulhar dentro desse jardim que era o Parque Laje, desse jardim das delícias terrenas, como o Bosch “El Jardín de Las Delícias Terrenales”, o “De senderos que se bifurcán”, e eu acho que essa é a grande magia, o grande sortilégio da Escola de Artes Visuais em seu tempo, em sua criação.
38:55
TERCEIRA PESSOA: E no Parque Laje também o afã trazer intelectuais da América Latina, ou também de trazer brasileiros que tinham vinculo forte com o cenário artístico latino-americano, então passou ( ), mas por exemplo Frederico Morais vinha muito (...)
HELIO: E antropólogos também, Lélia Gonzales, antropólogos, o Mário Pedrosa, a conferência do Mário Pedrosa, importantíssima. Então na realidade ali as pessoas/era a grande/a fina flor do Rio de Janeiro e latino-americana em princípio, freqüentava aquele lugar fantástico.
39:53
CLARA: Você pode falar um pouquinho mais das conferências-espetáculos, como é que isso se dava, porque é muito avant-garde, vocês estavam muito à frente do tempo.
HELIO: Olha, conferência-espetáculo foi o nome que nós encontramos para classificar aquele estado de conferência, então fazíamos em torno da piscina, na sala, aquela sala que é o auditório de mármore da Gabriella Besanzoni e fazíamos em torno da piscina também, com a iluminação com velas acesas em torno da piscina, então isso ai tinha uma fluência enorme, porque era uma espécie de um happening, mas era ensaiado, havia um ensaio e vários temas, nós trabalhamos, desde o Paul Klee, Maiakovski, ( ) e a vanguarda russa, depois Paul Klee e o ponto no caos, depois Comédia de La Arte Bumba Meu Boi, Isadora Duncan, todos de branco dançavam, mergulhavam na piscina com músicos da orquestra do Theatro Municipal, enfim, as conferências espetáculos eram isso, porque havia uma parte do conferencista, mas já era um conferencista nesse caso/às vezes, minha conferência/era um conferencista já como um personagem, era o professor transmutado, o duplo do professor como uma personagem. Fizemos os atores ( ) com Charles Chaplin, o ator dançarino ( ), enfim eram vários temas, assim que eram temas da/é um pouco a vanguarda do século vinte, Mondrian e o (Teatro da Linha), a grande vanguarda do século vinte, dentro da escola, sob a forma de conferência, mas não uma conferência maçante, bem comportada, era uma conferência mal comportada, que envolvia personagens, pintura, envolviam a persona, a máscara, e era bem interessante isso. Às vezes, por exemplo, havia conferências noturnas que as pessoas vinham vestidas, fantasiadas, que você não sabia quem era também, mas havia aquela troca de olhares, era bem fantástico para uma época. Eu acho que continua sendo a vanguarda, eu acho. É estranha essa palavra, mas continua sendo, vamos dizer, efervescente, dionisíaco.
42:47
CLARA: Vocês eram muito jovens. Você acha que vocês tinham a real noção, a dimensão, de tudo isso que vocês/foi muito inovador, muito pulsante.
HELIO: Eu acho que sim, sabíamos, porque nós éramos/a formação do Rubens e a minha formação, e Lina já era uma grande arquiteta. As pessoas tinham uma formação muito sólida, elas tinham o seu embasamento, os seus alicerces eram poderosos, e eu acho que a gente não tinha noção de que seria uma coisa/porque nós nos divertíamos também, então não era uma coisa/não se tratava tão somente de uma luta contra a ditadura, de uma luta armada, não era um aparelho, mas era uma escola quase clandestina, o que acontecia ali dentro era clandestino e ilegal, como uma canção no Manu Chao, era clandestino e ilegal mas dentro de um esquema de Secretaria de Cultura do Estado, que era ligada a pessoas de teatro e tudo. Eu estive pra sair da escola algumas vezes, por conta do Uirapuru, por conta dos banhos coletivos dos alunos. Como se pintavam muito tomavam juntos banho de chuveiro, homens e mulheres, jovens, tomavam banho desnudos pra tirar as tintas e tudo, e isso criou uma situação muito complicada, mas ele defendeu isso, ele achava muito bom. Eu acho que é isso, acho que era uma escola livre, mas que tinha uma/tudo o que nós defendíamos ali, nós sabíamos o porquê, por que aquilo estava correto para aquele momento, aquilo era a única via possível de uma escola não acadêmica.
44:58
CLARA: Inclusive ele não chamava/nesse depoimento que ele deixou, ele não chamava vocês de professores, ele não se intitulava professor, ele falava mais como um orientador e o aluno não era aluno, era o usuário.
HELIO: O usuário, exatamente, porque eles frequentavam várias oficinas, era aberto, a pessoa não se matriculava numa oficina só, ela podia orbitar dentro dessa constelação, a escola era uma espécie de uma constelação mesmo, então os alunos orbitavam em torno dos mestres, ou professores, ou orientadores, que eram os planetas, as estrelas.
45:46
TERCEIRA PESSOA: Mas para vocês todos era muito importante marcar com a nomenclatura, subverter a nomenclatura, também subverter o conceito das oficinas, usuário, Oficinema, o tempo todo, até o próprio nome da escola foi um ( ) para o Gerchman, tirar o Instituto de Belas Artes (...)
HELIO: Que era um Instituto de pintura acadêmica (...)
TERCEIRA PESSOA: Fale um pouco das suas nomenclaturas.
HELIO: As nomenclaturas? As nomenclaturas são altamente poéticas, mas também são rigorosas dentro da história da arte, elas dizem muito, essenciais, mas tem humor também. Eu acho que continua com aquela questão do humor, que é um pouco Maiakovski, é como se o Maiakovski ( ), essas pessoas fossem alunos ou professores da escola, eles teriam feito uma escola assim, os russos, na época, e era/eu acho que tinha humor, amor-humor, ensino, amor, humor, casa, corpo, cosmo, tinha essa música que envolvia as coisas, acho que é (...)
47:14
TERCEIRA PESSOA: Eu queria te perguntar, porque pra gente é difícil reconstruir alguns casos, algumas oficinas de outros, porque eram tão ( ), que é o caso que você já mencionou, da Celeida Tostes, mas eu queria mais detalhes de como acontecia. Achamos lindas fotos das oficinas que eram também um pouco performáticas, bastante performáticas e você sempre pensa que não, oficina é cerâmica, e não e não era exatamente isso, era muito a questão corporal, ela tirar vantagem, por exemplo temos o caso já no final desse período e as oficinas da Lígia Pape, não temos muita informação.
CLARA: Não temos nada de informação.
TERCEIRA PESSOA: Gostaríamos de saber um pouco.
HELIO: Olha, eu entrei e saí também, porque durante esse período da Escola de Artes Visuais, no final dos anos setenta, eu fui ao México, fiz uma viagem ao México, longa viagem ao México, e ai voltei, então algumas oficinas eu não participei, eu não/Ligia, eu me encontrava com Ligia Pape lá, ela até viu uma vez que nós fizemos um trabalho envolvendo a arquitetura da piscina com fios, com barbantes, unimos, fizemos uma grande teia imensa de barbantes e a Ligia falou: - mas isso era o trabalho que eu ia fazer. Eram as tetéias dela, no começo. Mas eu estive pouco com ela, na realidade é muito intenso o meu trabalho com o meu grupo de trabalho, então eu via os professores, cumprimentava, era mais amigo de uns e de outros, mas não/tinha mais proximidade com o próprio Rubens, que às vezes ia me visitar, ia ver minhas aulas, enfim, e com a Celeida Tostes e com o Cine ABI, com o Santeiro, então são as pessoas mais próximas de mim dentro da Escola, eram essas, eram esses professores, com quem eu trabalhei e os alunos também ficavam gravitando, os alunos também saíam de uma oficina, entravam, freqüentavam minha oficina e depois iam se exercitar com outros professores, com outros orientadores, então eu não tenho muito/eu não sei muito/não tenho essa memória assim dessas outras oficinas, a não ser nas grandes aberturas de final de ano, de final de semestre, de apresentação das obras dos alunos, que ai era uma espécie de festa que acontecia, acho que era/na realidade os professores se concentravam muito dentro das suas oficinas e eram/aquela casa é uma casa cheia de compartimentos, toda compartimentada, tinha o subterrâneo. O meu exercício que era mais exterior, voltado pro jardim, pras árvores, pro jardim, e no terraço. Nós frequentávamos muito o terraço, sobretudo durante o dia, durante as manhãs, porque ali a gente podia ter livre movimento, então como eu falei, tinha água, tinha mangueira, tinha banhos, mas eu freqüentava às vezes só nos grandes eventos, como eu disse, de apresentação e finalização de curso, algumas conferências.
51:25
TERCEIRA PESSOA: No caso da Oficina ( ) do Gerchman, você era muito próximo dele, e ai talvez possa nos dar algumas informações adicionais, queremos aprender.
HELIO: Do Gerchman?
TERCEIRA PESSOA: Da oficina dele e de como rolava essa oficina.
HELIO: A oficina do Gerchman foi mais adiante, no começo da escola de Artes Visuais ele organizava e fazia uma supervisão, era um pouco um Corifeu daquele espetáculo, daquele/depois ele começou a trabalhar verdadeiramente como/exercer a sua profissão de artista e tudo, mas eu não tenho muita memória dessa época, porque a relação, como eu falei, era/nós não nos observávamos muito, era outro tipo de/era como se fosse uma família e as pessoas se conheciam e se/era muito natural, não havia essa questão, pelo menos da minha parte, a curiosidade em relação ao trabalho de outro professor, porque era como se fosse um todo integrado, então cada um era parte de um todo, então eu não tenho/foi há muito tempo já e ai tenho essa memória que é uma memória intuitiva e de sensibilidade e de/não nostálgica, mas uma memória afetiva mesmo, que eu tenho com a Escola.
53:27
TERCEIRA PESSOA: ( ) a gestão porque para a época/hoje você/a distância ( ) fazer captação de recurso, e conseguir o material aqui e lá, ( ) naturalmente, mas na época era meio que um desafio estar trabalhando dentro da instituição pública, vinculada a Secretaria de Cultura, mas ao mesmo tempo não tinha materiais, tinha que procurar, e a criatividade também estava na maneira de fazer gestão e de colaborar entre todos para a produção de suas próprias oficinas. Como é que rolava isso?
HELIO: A Secretaria de Cultura do Estado mantinha os professores, os professores tinham um salário, tanto que se davam ao luxo de/os alunos não pagavam praticamente pelos cursos, eles entravam, os meus nunca pagaram nada, que eu saiba. Não havia inscrição, havia pessoas que se apresentavam, chegavam aos lugares e não eram nem inscritas. Algumas hoje me relataram que até dormiam no Parque Laje. Eu particularmente ficava até mais tarde, quando acabavam todas as atividades da escola, havia uns funcionários ali do estado, que eram os guardadores, os caseiros da casa, que faziam o café, faziam umas empadas, era assim. Tinha uma pequena cozinha ali/que cuidava dessa parte, do lanche, do cafezinho, e eles ficavam, moravam ali na escola, mais embaixo. Eu fiquei muitas vezes até tarde sob o luar, com a escola toda apagada, nadando na piscina. Era das coisas que eu mais gostava na madrugada, de ficar nadando naquela casa e ela, como eu falei, era uma escola mantida pelo estado, e os professores tinham os seus salários, e eram salários decentes, que dava pra pessoa, enfim, viver modestamente, mas era digno, era um salário digno, e era uma escola livre, era uma escola gratuita, praticamente, nunca vi nenhum aluno pagar coisa nenhuma, por curso nenhum, bem diferente hoje, as coisas hoje parecem até mais organizadas e limitadas nesse sentido. Aquilo era um jardim onde entravam pessoas e saiam pessoas e você às vezes não sabia quem eram essas pessoas, e ai iam ficando, era um pouco uma escola de ciganos, e eu acho que essa era a relação que os professores tinham com alguns alunos que eram assíduos nos cursos, sobretudo nos cursos técnicos, de desenho, de modelo vivo, de escultura, e que faziam gravura. Gerchman recuperou algumas pedras do Museu de Belas Artes, belas pedras pra fazer lito/mas era uma escola mantida por uma Secretaria de Cultura na época que tinha algumas pessoas muito interessantes, dentro de um Estado de repressão, mas exerciam o seu mandato ali dentro junto às escolas. Tinha o Klauss Viana na Escola Martins Pena de teatro, Gerchman na Escola de Artes Visuais, então ela era mantida, mas com discrição, pela Secretaria de Cultura do Estado, então que eu saiba ele nunca teve grandes problemas. Às vezes aparecia uma rádio patrulha que ficava na entrada da escola, na Rua Jardim Botânico, mas eles não entravam, porque eles também achavam que ali era um bando de loucos, de hippies, que eram pessoas inofensivas porque viviam com flores, enfeitadas com flores e dançavam pintadas e descalças. Então eu acho que isso aí/não só os meus alunos, como outras pessoas que estavam ali, estudantes e tudo, porque eu tenho as fotografias das pessoas deitadas no entorno da piscina, desenhando no chão. Nós desenhávamos muito no chão, no plano, não era muito em prancheta a atividade, era no chão e ai eu acho que isso também livrou a escola de uma/ao contrário de outras escolas, da Faculdade Brasileira, da Universidade Federal, livrou um pouco esse estado de ser, supostamente onírico, livrou as pessoas/ou eram chamadas de alienadas, de hippies, então livrou, só que eles não percebiam que por trás disso tudo havia o protesto e havia inclusive a nudez como protesto, a pintura corporal, a máscara, mas eu acho que ela teve aquele momento ali muito especial também, porque a repressão não chegava tão profundamente, tão violentamente dentro da escola, mas era vigiada, claro. Alguns dos alunos inclusive, freqüentadores da escola, deviam ser pessoas que deduravam ou eram observadores, observadores políticos, mas não entendiam nada eu acho, porque eu acho que é um momento na ditadura e nesses estados terríveis de exceção e arbitrários que eles não entendem, porque a ditadura é a ignorância exercida em seu mais alto poder, truculência e ai eles não entendem muito os artistas, eles acham que os artistas são pessoas não tão perigosas quanto aquele que luta, exerce sua atividade política num aparelho, na clandestinidade, embora tenha sido uma escola que parecia uma escola clandestina, mas eu acho que tem essa questão da ditadura. Claro que os artistas sofrem na ditadura, são criticados e as vezes são presos e tudo, mas são sempre considerados, eu acho, pessoas não muito perigosas.
1:00:56
TERCEIRA PESSOA: Ainda assim, o ano de setenta e nove é uma circunstância polítoca, cria uma conjuntura complexa (...)
HELIO: Complexa. Ele sai.
TERCEIRA PESSOA: Explique um pouco isso, realmente não existe uma bibliografia clara.
HELIO: Não, nem ele fala muito sobre isso, porque não foi bom para o Gerchman. A saída dele da escola/ele poderia ter continuado na escola por muito mais tempo, tanto que as pessoas que substituíram o Gerchman na escola foram os principais críticos àquele estado anterior. Os diretores seguintes não foram nada democráticos e nada generosos com toda aquela revolução que aconteceu na escola no período do Gerchman. Pelo contrário, eles foram os críticos, foram altamente reacionários, alguns deles. Eles diziam que a escola voltara a normalidade, a seriedade, não havia mais pessoas nuas e eu acho que ele teve uma mágoa. Nós todos temos, quando nosso trabalho é interrompido arbitrariamente, mesmo porque é uma escola do estado, então a conjuntura modificou e ele saiu, saiu pra continuar o trabalho dele, e a sua pintura e tudo. Ele achou melhor sair, sair da/viu que não era mais possível e tudo.
1:02:43
TERCEIRA PESSOA: Mas também durante o tempo que durou ele repete várias/e acho que isso é uma época comum no subconsciente de todos os amigos e colegas como você, que ele repete outra vez, quando Lina Bardi foi procurar ele, ele foi muito específico e – diretor que nada, que diretor. E ela falou: aceita e se não gostar, tchau. E ele falou: bom, vou entrar, mas vou pôr a (dimensão no bolso), e eu acho que isso é mais metafórico, mas é mais uma questão de atitude dos que estão voluntariamente ai e isso marcou também um espírito que era contagioso para os outros – estamos aqui pra fazer; e criava também uma liberdade entre vocês, uma cumplicidade.
HELIO: Isso, e é o momento de passagem também. Eu acho que é o momento/nós todos tínhamos consciência, por conta do Brasil daquela época, e de hoje também, e de sempre, o artista como um ser que passa, um ser fluído, um ser em movimento, um ser rio, um ser do Heráclito, um ser que está em movimento sempre, então ele tinha essa consciência, ele sabia que não ia ficar, se transformar num diretor acadêmico e constante, perene dentro de uma escola. Ele sabia que aquilo era uma passagem, mas foi uma grande passagem na realidade, mas ele tinha essa consciência, nós todos tínhamos. Sobretudo o jovem tem, porque o jovem está sempre em movimento, deve estar fluindo como um rio, então eu acho que ele tinha essa consciência. Eu mesmo saí pra fazer outras coisas, voltei a fazer teatro, cinema, porque eu fui muito proscrito nessa época da vida chamada profissional de teatro, por conta desses trabalhos experimentais do Parque Laje, dessas performances, dessas danças, algumas pessoas de teatro mais convencionais e mais caretas achavam que eu tinha enlouquecido – que ele enlouqueceu, ele pirou, como se falava na época, ele está pirado; e não me chamavam pra trabalhar. Isso aconteceu, mas eu estava felicíssimo dentro da escola, contentíssimo dentro das Belas Artes, depois saí das Belas Artes e continuei na (...)
1:05:27
TERCEIRA PESSOA: O Uirapuru foi parte dessa legenda?
HELIO: Dessa legenda, exatamente, e eu me sentia exatamente (...)
TERCEIRA PESSOA: Você foi chamado pela Secretaria de (...)
HELIO: Não, eu não fui chamado, não quiseram renovar o meu contrato no ano seguinte, ai houve uma série/umas manifestações, Anna Bella Geiger participou, dizendo que eu tinha que voltar pra escola, o Gerchman e tudo. Eles não queriam renovar o meu contrato, o estado, depois do Uirapuru - o primeiro período ele fica, depois ele sai. Todos eles, o secretário de cultura, os artistas fizeram um abaixo-assinado e eu continuei, fui readmitido na Escola e assinei novamente o contrato, se contrato havia, eu não me lembro exatamente disso, mas pelo menos ganhava o meu dinheiro pra viver, porque eu estava proscrito do mundo chamado teatral, porque nessa época, final dos anos setenta, era muito convencional, muito dentro dos moldes da ditadura, naturalmente havia aquelas pessoas que lutavam contra esse estado de coisa também, contra a censura e tudo, mas era um teatro bem comportado, e a escola era considerada uma escola mal comportada Zero de Conduite, igual ao filme do Jean Vigo, era aquela escola, comportamento zero.
1:06:56
TERCEIRA PESSOA: Você chegou ao limite em setenta e nove (...)
HELIO: Setenta e nove, e Gerchman chegou ao limite, eu saí um pouco antes.
TERCEIRA PESSOA: ( ) longuíssimo abaixo-assinado pela saída do Gerchman.
HELIO: Exatamente, houve um abaixo-assinado.
BERNARDO: Repete essa frase, a voz dele entrou junto da sua.
HELIO: Diga.
BERNARDO: A frase que você fala do seu ano de saída e do ano do Gerchman.
HELIO: É. Gerchman saiu em setenta e nove e eu saí um pouco antes. Eu fiz aquela viagem ao México, voltei, ai fiz um trabalho com aquela dançarina uruguaia maravilhosa, a coreógrafa Graciela Figueroa, que é minha amiga, que hoje tem um instituto maravilhoso no Uruguai. Ela estava fazendo um trabalho aqui, ela chegou a frequentar as minhas aulas e conversamos, criamos vários/queríamos criar espetáculos juntos, cheguei a desenhar as coisas com os alunos e tudo, mas foi o último ano. Eu saí um pouco antes e ele saiu porque era/foi coagido a sair, mas ele tinha essa consciência também, porque aquilo era um estado de/um estado que não é/exatamente, com a carta de demissão no bolso, como você falou, porque a gente sabia que aquilo não poderia perdurar naquele tempo.
1:08:14
CLARA: Helio, a gente tem algumas perguntas mais afetivas.
BERNARDO: Queria sair um pouco do compromisso histórico agora e entrar no compromisso humano.
HELIO: Afetivo está sendo o tempo todo.
ERNARDO: Mas eu queria que você me falasse um pouco da/qual é a sua versão do Rubens educador.
HELIO: A versão do Rubens educador, quer dizer, ele permitiu que seus amigos, os amigos que ele escolheu pra trabalhar com ele, criar aquela escola, naquele momento, exercessem plenamente sua liberdade, como criador, como ser humano, como aquele que pensa, como um pensador, esse é o grande legado de um grande artista, é esse, dar liberdade aos seus amigos de criar, de criar uma escola, uma escola inclusive com método, não exatamente rigoroso, nem acadêmico, mas ele deu essa liberdade e foi o momento que eu mais estive com ele, diariamente, então foi/eu tenho essa lembrança, que é uma boa lembrança, que eu pude me aproximar muito mais de um amigo que eu conheci na adolescência, e revi tempos depois da minha formação, numa estréia em São Paulo, na Bienal de São Paulo, nos anos setenta, sessenta, final de sessenta, no Rei da Vela, e ai eu tenho essa grata memória, de ter convivido diariamente com o Gerchman durante alguns anos. Isso foi formidável pra mim, marcou, é o momento da minha vida muito pleno e que eu guardo com muito cuidado, com muita afetividade, porque ele era muito afetivo também, era muito amoroso e era também um grande brasileiro, que acreditava no Brasil, que desenhava o Brasil, que via o Brasil, que pensava o Brasil, como a Lina. A grande paixão da Lina pelo Brasil, pelo Nordeste, pelo povo, pela cultura popular, pela mão do povo. Ela fez aquela exposição linda, A Mão do Povo Brasileiro. Esse A mão do povo brasileiro é a mão do Gerchman também, o grande pintor, desenhista, então é essa/eu guardo esse momento da minha vida, foi um momento muito especial, a convivência diária com um amigo é/dentro de um trabalho, não vivendo exatamente o cotidiano prosaico, não era uma escola prosaica, mas era vivendo uma grande aventura da criação, da arte, livre, então esse é o momento, eram manhãs luminosas, noites luminosas, vivíamos lá. Os meus alunos viviam, como eu falei, dormiam, até dormiam clandestinamente na escola porque não queriam sair de lá, outros subiam nas árvores e ficavam lá em cima, eu tinha que cutucar com o bambu pra descer, porque estava meditando no alto das árvores, então esse é um momento maravilhoso. Tem também uma coisa da infância, da memória afetiva da infância, porque éramos todos jovens, mas crianças e adultos também, crianças e velhos, então era essa viagem, essa/pairar sobre esse tempo é muito interessante, era como se fosse um vôo mesmo, de uma ave, é um vôo, os rasantes, os grandes vôos, as grandes alturas, os ninhos. Eu guardo com muito amor esse tempo, que é um tempo do Brasil e que se pensava o Brasil profundamente, não era um mundo globalizado. Era um mundo em que se pensava o Brasil. Procurava-se uma via pro Brasil, uma abertura pro Brasil, pensar o Brasil como um país, com uma grande cultura, literatura, pintura, dentro da América Latina, pensar nas Américas, pensar na América, tanto que depois eu comecei a fazer minhas grandes viagens ao Peru, a Bolívia e Gerchman também. Ao México. Nós saímos do Brasil pra América, pra América Latina, México, Bolívia, Peru, entramos em contato com esse tempo, com essas outras culturas, com essas outras nações, grandes países, grande cultura. E essa questão do Parque Laje, da Escola de Artes Visuais, a Escola de Artes Visuais embora se tratasse da arte em geral, da arte européia e, enfim, da vanguarda européia do começo do século vinte, a partir até do expressionismo, mas pensávamos o Brasil muito profundamente, eram temas, eram conferências, de antropologia, a questão africana, a questão toda da cultura africana. Essa questão de pensar o Brasil que eu acho importante, e o Brasil não separado, o Brasil em relação aos seus vizinhos, essa questão.
BERNARDO: Já que a gente está falando/pergunta difícil, ainda mais se falando em anos setenta, mas se for possível separar o artista do homem, o que mudou nesses quatro anos de Jardim entre o Helio que entrou e o Helio que saiu?
HELIO: Olha, dentro de um trabalho, se você está concentrado num trabalho, se o seu trabalho tem um conteúdo, o próximo está sempre contido no anterior, eu acho. Essas viagens, quando ele sai da escola, e eu também, da Escola de Artes Visuais, a gente sai do Brasil e vai fazer essas viagens pela América Latina, essas viagens profundas também, que são viagens de conhecimento, são viagens ritualísticas, porque essa questão do ritual também era muito estudada e trabalhada na escola também, os grandes rituais, as passagens. Eu acho que é isso. O futuro já estava contido naquela época, então quando eu saio e vou pro México, quando vou pras minhas viagens, pra Bolívia e pro Peru, pra estudar aquelas civilizações, isso aí já estava germinando dentro do Parque Laje, essa passagem pra outras civilizações. Nós continuamos o trabalho, ai eu comecei a fazer cinema, fui chamado pelo Joaquim Pedro de Andrade pra fazer O homem do pau-brasil, que é uma história do Oswald de Andrade, sobre o Oswald de Andrade, depois fui pra Bolívia, depois voltei, fiz outros trabalhos, fiz o Tudo Bem com o Arnaldo Jabour, então voltei a trabalhar em cinema e em teatro. Eu acho que foi isso que aconteceu. As coisas estão sempre contidas, elas estão latentes dentro de um trabalho sempre. Você sempre sabe o que vai fazer em seguida, porque já está germinando dentro de você. Acho que é essa a ideia.
BERNARDO: Qual foi a principal motivação pessoal, afetiva (...)
HELOISA: Deixa eu contar a história, pode?
BERNARDO: Pode, a vontade.
HELOISA: Essa exposição que eu fiz, O Jardim da Oposição, ela foi assim uma coisa meio/vou começar de novo. A ideia do Jardim da Oposição começou anos e anos antes. Quando o Gerchman estava vivo/eu tenho uma editora chamada Aeroplano, e o Gerchman tinha paixão pelo período dele no Parque Laje, rigorosa paixão, era uma coisa que ele gostava muito e que ele queria exatamente fixar, então ele me pediu pra fazer um livro com ele, e fazer um livro com o Rubens era maravilhoso porque ele tinha paixão também pelo livro, pelo objeto livro. Eu não sei se vocês viram, mas ele tinha livros costurados, tipo japonês etc, a gente ficou delirando, os dois. Ele era muito meu amigo desde garoto e a gente ficou bolando esse livro muito tempo. Entrei na Petrobrás, memória, edital, entrei em tudo que foi edital, porque eu tenho vício em entrar em edital e nenhum queria, não foi aprovado em edital nenhum, e a gente ia ficando triste e aumentava o projeto, porque a gente tinha mais tempo, aí ia ser costurado, aí ia ser em papel não sei o quê, ai... sabe, a gente fazia, e era um amontoado. O que ele queria fazer era uma coisa de grandes anotações, era tudo o que ele tinha de lembrança, de recorte, enfim, o material que ele tinha do Parque Laje na época, junto com uma narração que a gente ia gravar com ele e ele ia contando a cada fragmento daqueles que iam constituir o livro. Ai de edital em edital negado, acabou que ele morreu. Quando ele morreu, eu disse: -eu vou fazer isso de qualquer jeito. Eu fiquei muito triste com a morte dele. Ele era bem companheiro mesmo. Ai eu corri atrás do livro, e vi que o livro não ia rolar e então abriu um edital da Secretaria de Educação, desculpa, Secretaria de Cultura do Estado, eu entrei no edital com uma exposição, que era mais fácil de ganhar, ganhei a exposição e então o livro ficou pra trás e virou uma exposição, e foi uma exposição já com um tom muito afetivo porque ele tinha acabado de morrer e eu enfiei na cabeça que eu tinha que fazer aquele projeto de qualquer jeito, custasse o que custasse. Teve um primeiro, pequeníssimo empecilho que foi/como estava muito perto da morte dele, eu não tive acesso aos documentos que estavam na casa dele, que era o que ia fazer o livro, mas pra não cair a peteca eu fiz uma coisa viral na internet, uma mensagem viral perguntando a todo mundo que tinha o que dizer ou que tinha coisas em casa do período Parque Laje, que me enviasse. Veio um mundo de coisas. Todo mundo colaborou. Então eu fiquei com muito material pra expor e eu fiz essa exposição junto com o Hélio Eichbauer, porque o Helio, além de ser um cenógrafo nota mil, ele foi um parceiro muito constante desse período do Gerchman, ele dava aula, ele dava ideia, ele era o braço direito do Rubens no Parque Laje, ele era aquela pessoa da arte, do teatro, da cenografia, do design e os dois estavam muito setenta, os dois estavam naquele momento imbuídos, tomados pelo DNA dos anos setenta, então tem aquela coisa do “vamos em frente de qualquer jeito, vai acontecer, é o sonho” e é incrível porque o momento do Parque Laje foi um momento de anos de chumbo. Era um momento em que a faculdade não falava, nada falava, nada tinha espaço de encontro. O Gerchman assumiu o Parque Laje e o Parque Laje virou uma ilha, um jardim da oposição. Era aquele lugar onde todo mundo tinha permissão, podia se encontrar, podia falar, podia criar e podia se expressar livremente e o Rubens era danado, porreta mesmo, não deixava a polícia entrar, defendia aquilo com unhas e dentes. Fora o lado criativo, que foi esse período todo, tinha também o lado de proteção ambiental, digamos, cultural, que ele não deixava que ninguém interferisse nesse projeto, ele ficava feito um cão policial em volta daquilo e ai todo mundo se sentia muito seguro. Eu dei aula na época, eu dei aula de literatura porque naquele momento explodia a poesia marginal também, que era uma das poucas artes que podiam se reunir, falar, mobilizar, porque poesia ninguém lê, poesia não é uma arte pública. A censura estava mirando na televisão, cinema, teatro, arte pública, música, mas poesia, ia perder tempo? Militar, pra tomar conta de poesia? Não ia. Então a poesia foi um lugarzinho que conseguiu mobilizar uma porção de gente e conseguir falar e aquilo/eu comecei a estudar aquilo muito, eu assisti muito aquela geração do sufoco, geração AI5 que a gente chamava. Então essa poesia/eu dei aula dessa poesia lá com o Cacaso, que era outro poeta marginal, a gente dava cursos e era num porão, então tinha um clima muito engraçado, porque tem aquela parte do Parque Laje que é embaixo e nossas aulas eram embaixo, então se sentia duplamente transgressor, parecia um aparelho, a gente fazia/tinha essa fantasia. Não era, mas eu vivi isso intensamente como se eu estivesse transgredindo tudo e todos. Então foi uma experiência incrível, ao lado tinha o Sergio Santeiro, o cara que fazia aquele cineclube, que era um cineclube incrível. No Parque Laje acontecia tudo o que não podia acontecer na cidade. Era de uma voltagem altíssima porque todo mundo se escondia no Parque Laje, sabia que lá podia criar, podia se expressar, e o Rubens regendo aquilo. Quando ele tomou posse foi muito engraçado, porque eram belas artes e tinham aulas de belas artes, tinham coisas de arte acadêmica, tinha uma porção de senhoras fazendo cursos pra espantar o tédio e então, cozinhavam de tarde, cozinhavam na hora do almoço e iam pra lá pintar flores. O Rubens, de uma tacada, isso foi incrível, porque não fosse assim, se ele fosse negociar não ia dar certo, de uma tacada ele acabou: - não quero belas artes aqui. Acabou com os cursos todos de uma vez só e foi um desconforto total pra todo mundo, inclusive porque muitas delas eram mulheres de militares, ficou todo mundo meio com medo daquele gesto, mas como todo gesto muito radical, assim administrativo, ele incomodou durante quinze dias depois todo mundo esqueceu e ficou felicíssimo com aquele espaço, que tinha oxigênio, era o único que tinha oxigênio, e ele topava todas as ideias, então era um lugar livre, de experiência. Me lembro, por exemplo, no teatro você tinha o Living Theatre, que era mistura de vida com arte, é uma das metas dos anos setenta nas artes, na criação, era a mistura de arte e vida, e ia ficando tão perto que de repente você já não definia o que era arte e o que era vida. Isso era um projeto típico da cultura dos anos sessenta, sessenta não, desculpe, setenta, e também da contracultura, que é expressão dos anos setenta, então a coisa de você viver no Parque Laje era incrível, tinha um mendigo que morava lá, você vivia aquele período, aquele período era uma coisa bem mais do que uma experiência de arte, bem mais do que uma escola de artes visuais, aquilo na realidade era um ponto, um ponto nevrálgico da cidade, onde você podia respirar, falar, se expressar e também criar, e então virou uma coisa fantástica, que é o Jardim que a gente chamou, quem falou “o jardim da oposição” foi Luis Carlos Maciel, que escreveu um artigo com esse nome e o Rubens/eu falei: que nome a gente vai dar? Esse nome quem deu foi o Rubens e o Rubens disse: - o livro vai chamar Jardim da Oposição, que foi a melhor coisa que eu ouvi sobre Parque Laje. Então era O Jardim da Oposição. Foi muito bom fazer isso, foi muito bom e a gente conversava e ficou aquela/foi um luto lindo, um luto de vida, porque todo mundo passou por essa exposição, ou pra pegar as coisas, os materiais, todo mundo que tinha passado por lá ou só o contato de me entregar o material, ou o contato de contar história, ou o contato de se sentir pertencendo aquilo, porque tinha pertencimento, é outro dado importante do Parque Laje, é o pertencimento. O Rubens conseguiu criar um lugar onde você se sentia pertencente, era um território de cultura onde a pessoa que estava lá se sentia em seu território, isso era coisa de liberdade, uma coisa de liberdade que o Rubens carimbou ali, e fez questão/isso talvez fosse a coisa mais característica, o carimbo mais contundente do projeto educativo do Parque Laje, a liberdade, a liberdade inclusive de estar lá sem fazer nada, que é uma coisa altamente produtiva também. Você quer fazer uma pergunta?
09:52
BERNARDO: Não. ( ). Uma coisa que eu queria/fazendo a pergunta, no texto do Coutinho, lá do seu catálogo, que ele fala sobre o ensino de arte no Brasil na época, pra gente pegar esse gancho da pedagogia, ele fala que era um ensino que/ele faz uma metáfora, que o ensino de arte no Brasil é um boxeador lutando numa rinha de galo, ou seja, que essa coisa desse arcaico, desse Brasil arcaico, desse ensino arcaico de arte e a tentativa de ser moderno. Como é que você acha que o/você acha que essa preocupação do Rubens com o ensino das artes visuais, como é que você acha que ele conseguiu superar isso?
HELOÍSA: Eu acho que realmente, estudar arte como a gente/vou repetir, quando ele pegou o Parque Laje, o Parque Laje era uma escola de belas artes, era uma escola onde se ensinava a arte acadêmica e mesmo a arte moderna, mas de uma forma acadêmica, eu acho que é isso que o Coutinho quis dizer. Mesmo quando você ensina arte moderna, era um formato de criação da arte acadêmica, o tipo da relação com o professor, o tipo de ateliê montado, o tipo de coisa. O que o Rubens fez foi chegar lá e falar: - acabou, é do zero que eu vou começar. E chamou parceiros muito expressivos, tipo o Helio, por exemplo, que queria testar uma metodologia nova, porque o que se fazia lá era isso que eu falei, era misturar arte com vida e criar do zero aquilo, foi criado do zero, quer dizer, como é que eu vou falar com os alunos? Os alunos podem o quê? Podem ficar? Podem fumar maconha? Problema de época. Não podem fumar maconha? Quer dizer, tudo isso era um caldeirão, aquelas pessoas pedintes que moravam lá, essa coisa meio de residência e de troca, então as pessoas trocavam suas experiências entre si, porque quando você cria esse território muito marcado como um território de pertencimento e criação, você termina tendo uma dinâmica de troca muito marcada, então havia isso, a troca do ateliê, da Celeida, por exemplo, com o ateliê de não sei quem, com o ateliê do Helio, com a aula, então quer dizer, as pessoas circulavam ali naquele território, se enriquecendo e sem disciplinas, você não entrava lá pra fazer alguma coisa especifica, você entrava lá pra viver o Parque Laje, obviamente, isso estava claro, isso não estava dito no currículo, mas estava óbvio, você entrava lá pra experiência do Parque Laje, pra experiência que rolava ali, pra possibilidade de criação de coisas novas, e é interessante que hoje, com a internet, essa coisas, a gente vê que o conhecimento compartilhado é muito mais produtivo. Você vê isso na internet, mas naquela época não tinha internet, estava longe, faltavam vinte e três anos pra internet, pra aparecer a rede, então a coisa do conhecimento compartilhado ali já existia muito, a coisa da contracultura, quer dizer, você trocava, você trabalhava junto, você trabalhava junto com o professor, você montava, você intervinha. A ideia de intervenção no espaço, a ideia de intervenção nos cursos era muito violenta e isso era uma novidade absurda, que dava esse nervo vital do Parque Laje, essa eletricidade absurda que tinha lá, e se você lembrar que em volta disso você tinha uma censura ferrenha e você tinha uma polícia em volta, você imagina o valor desse lugar.
13:34
BERNARDO: É porque assim, me parece que tinha uma motivação maior pelo debate, nessa época. Você acha que isso era fruto da repressão?
HELOÍSA: É, porque não tinha debate, era muito difícil você ter espaços de debates e eu, por exemplo, lancei/eu fiz uma antologia chamada 26 poetas hoje, que é uma antologia de poesia marginal que deu muito barulho. O lançamento foi no Parque Laje e todos os debates sucessivos foram no Parque Laje ou na SBPC, que era um lugar também blindado, Sociedade Brasileira de Progresso da Ciência, que é um lugar que era nobilizável, digamos, onde os cientistas mandavam e era muito blindado contra a censura, mas era um ou outro, em muitos lugares você não tinha como debater, em universidade você não debatia, eu era professora da universidade, eu recebia uma lista daquilo que você podia ler e era bem ridículo porque o que eu não podia ler não era literalmente marxista nem de esquerda, era uma piração da ignorância da censura, que achava que aquele livro era comunista, mas não era, era fundamental pra fundamentos da literatura, mas eu recebia uma lista impressa, então, um lugar assim, aparece o Parque Laje, incentiva o debate, a discussão e a criação compartilhada. Foi inacreditável, era um jardim da oposição. Só tinha aquele jardim pra oposição, no resto a oposição não podia se opor.
15:17
BERNARDO: Você falou da internet e a gente vê as pessoas com quem a gente tem conversado sobre Parque Laje, dessa época, uma coisa que aconteceu naquele momento específico. Você acha que esse fenômeno, aquela troca das pessoas, você acha que, por não ter internet vocês estavam juntos, no mesmo espaço físico, hoje em dia a gente se separa com uma tela de computador. Você acha que isso é uma coisa que pertenceu aquele momento e que é uma utopia hoje em dia, uma experiência como aquela, por exemplo, ou você acha que aquela experiência pedagógica do Rubens é uma coisa (...)
HELOÍSA: Eu acho que aquela experiência pedagógica é típica dos anos sessenta, setenta, é típico da contracultura. Você vê isso nas experiências pedagógicas de teatro da época, o Teatro Oficina. É anos setenta, é muito anos setenta, é uma atividade libertária, que você hoje não tem, porque hoje você tem demais/você tem dois caminhos, eu acho. Ou você faz um saber compartilhado, não autoral, onde você cruza saberes etc, ou você profissionaliza. Porque o mercado aquela época ainda estava bom. A crise do petróleo é de setenta e dois, estava muito pertinho, você ainda vivia o milagre brasileiro, você não precisava da competência que você precisa hoje, tem isso também, tem um chão econômico confortável naquele momento, os filhos da classe média podiam ficar lá pintando, vivendo a/queimando alguma coisa, enfim, mas hoje não pode mais, hoje está brabo, hoje o mercado está apertado. Do momento em diante, acabando o milagre, com a crise do petróleo, crise internacional, o que aconteceu? Todo mundo teve que voltar pra universidade. Aquela época era o drop out, salta fora, salta fora e inventa. Hoje é drop in, entra e se vira, porque a barra está pesada. Até a universidade hoje não é uma alternativa, porque demora muito pra entrar no mercado e não prepara bem para o mercado, então você prefere MBA, especialização e manda vê, você tem que criar uma crise de emprego, a globalização precipitou muito isso. A globalização é de oitenta e dois, Consenso de /a criação do FMI, então de oitenta e dois pra frente você começa a ter outro tipo de economia em que o desemprego e a estabilidade formal, da economia formal cresce muito, então você tem que ralar, hoje você tem que saber fazer a coisa. Antigamente esse filme estaria sendo feito com uma câmera na mão, ele estaria com uma pinhole me fotografando, fazendo still. Se você fizer um filme sem som, você corrigiu esse som quantas vezes? Você não ouvia nada dos filmes da época, era outro momento. Hoje você tem que ser competente, se não esse filme não rola em lugar nenhum. Naquela época você tinha que não ser competente. Eu me lembro que eu fui fazer um pós-doutorado nos Estados Unidos e voltei em oitenta e cinco, seis, já não me lembro, e dei uma entrevista pro Zuenir no Jornal do Brasil daquela época, dizendo: é preciso ser competente. Todos os meus amigos brigaram comigo, porque competente era um palavrão, eu tinha me entregue ao imperialismo porque falei que era preciso ser competente e o Zuenir, que é um jornalista muito competente, ele botou isso de manchete, “é preciso ser competente”, era uma frasezinha que estava lá no meio. Isso deu uma briga, eu fui mortificada, caça às bruxas, defendendo a competência. Mas como vai defender a competência? É outro momento econômico, cultural, não é culpa da internet e a internet nasce/quer dizer, tem gente, eu tenho minhas duvidas, mas eu acho que eu tendo a aceitar, ela nasce muito datada da contracultura. A contracultura já é uma coisa de centralização, já é uma coisa de que a grande arte já está posta também, de que a questão dos trabalhos meio fragmentados, meio compartilhados, meio/a contracultura é bastante o momento que se assemelha, tem muita gente que escreve isso, que se assemelha a lógica da internet. Como eu acho que toda tecnologia vem de uma demanda, ela não aparece/a coisa muda depois, eu acho que ela já tinha mudado antes por isso que vem a tecnologia, a localização nos anos cinquenta, sessenta, de uma demanda intensa por uma/eu estou falando de internet, eu não estou falando do digital, internet é a rede/então a demanda pelo ambiente da rede já estava configurada culturalmente faz tempo e eu acho que esse formato Gerchman é um formato de rede, é um formato que demanda aquela tecnologia que vai vir vinte anos depois, mas eu acho que não se repete aquele momento porque a gente não tem dinheiro, porque a gente não tem censura. Censura é burrice minha dizer, porque você tem experiências internacionais fora de regimes de ditadura que tinham o mesmo in put. Living Thatre por exemplo, tudo isso/não tinha ditadura e fez essa ação bem similar ao ethos do Parque Laje, bem similar ao ethos do Rubens, e inclusive o Rubens drop out, porque se você pensar que o Rubens tinha uma carreira sólida de artista dos anos sessenta, que era reconhecido no mercado, que estava vendendo bem, ia pra Nova York, voltava de Nova York, vendia, fazia exposições, ele era um dos cavalheiros do apocalipse dos anos sessenta, reconhecido naquela época, ele drop out, ele falou: chega, vou pro Parque Laje. Ele caiu fora e fez um território vital ali vital e elétrico, muito importante, mas é muito o ethos da época. Eu acho que eu não tenho saudade daquela época porque ela não era nem tão boa assim quanto eu estou dizendo, ela era bem ruinzinha, porque você saía do Jardim da Oposição e caía ali na Rua Jardim Botânico e já tinha sujado, sujou total, então é muito pequenininho o seu espaço, hoje o seu espaço é muito maior. Eu acho hoje muito melhor, muito mais criativo, você tem muito mais gente criando, abriu, saiu aquele jugo do gênio, então você hoje abriu muito mais e eu acho que hoje o momento é melhor, mas aquele era muito (...)
21:39
BERNARDO: Em cima disso que você falou, você teve algum/tem esse ponto aqui do Coutinho que ele fala da ética dos anos setenta ( )
HELOÍSA: Eu acho que os anos setenta, eles eram sim românticos e voluntaristas, agora, eu repito, não tem como ser romântico e voluntarista numa crise econômica pavorosa. Acabou o milagre em setenta e oito, não, o milagre acabou antes, setenta e seis. Quando acaba o milagre você tem que se especializar, então a geração dos anos oitenta, que é a seguinte do Parque Laje, eu acho que ela é maravilhosa, só que ela mudou de uma experiência corporal, vital para uma experiência de pintura mesmo, de pintura, de escultura, de criação vendável, a diferença é essa, porque é uma geração maravilhosa. Não ia falar mal dela porque minha nora é Adriana Varejão, dos anos oitenta, que ganha bilhões com uma tela e então a sogra aqui não abre a boca contra a geração oitenta, mas não é por isso não, é porque é uma geração toda muito bacana, o Zerbini e tudo. É uma geração muito boa, só que ela não pôde mais vivenciar a arte, ela teve que trabalhar a arte. Eu não acho que tenha acabado um romantismo e ficado careta, não é isso, foi um chão econômico que fez com que aquela coisa da vivencia da arte, que você joga tudo pro alto/o próprio Rubens voltou a pintar, como todos os outros, como a geração oitenta toda, ele voltou pra galeria, então são momentos, nem bons nem ruins, são momentos contextuais. Eu acho que a geração oitenta pegou um momento muito bom também, que foi o momento da redemocratização. Oitenta e dois tem as eleições diretas, oitenta e cinco, né? Oitenta e dois começa o Diretas Já, quer dizer, você pega um momento muito eufórico, muito bonito, muito de volta a normalidade democrática do país, então é uma geração muito rica eu acho, muito rica de experiência, uma experiência que a de setenta não teve. Eu não concordo que acabou uma coisa e começou outra não, são contextos que são mutáveis, e obviamente que a arte que não retrata o seu contexto é uma arte alienada, então se você quisesse fazer uma coisa meio existencial, performática nos anos oitenta, você estava fora do eixo porque você estava participando de passeatas, você estava reconstruindo o país, você não estava querendo sair do país para uma sociedade melhor, que é o que os anos setenta fez, você estava querendo entrar pra dentro do país e consertar aquela droga que estava, que estavam nos anos de chumbo, uma situação horrível e essa geração dos anos oitenta foi a que reconstruiu. O PT hoje é meio que um palavrão, mas naquela época era o nascimento de um Partido dos Trabalhadores, o primeiro que o Brasil teve a experiência de ter, era um momento de uma esperança, de uma utopia gigantesca, bem maior do que dos anos setenta porque nos anos setenta a utopia acabava no seu corpo, o outro era na reconstrução de um país, você acha que/os anos setenta de drop out, você sai do sistema pra fazer uma sociedade melhor, mais criativa, mais libertária, mais tudo e com a esperança de que a outra copie você, que você vai aumentando e tudo vira aquilo, mas isso sim é romântico, isso não ia acontecer jamais, então eu acho que a sequência disso vem muito da possibilidade de ter havido o Parque Laje, a geração oitenta tem a ver sim com o período do Rubens. Se o Parque Laje não tivesse se tornado um lugar tão contemporâneo de si mesmo, os oitenta não teriam aquela vitalidade, porque a geração oitenta é do Parque Laje também, ressoou a pedagogia do Gerchman até o final dos anos noventa. Aquilo foi uma conseqüência, porque as coisas não acabam, sai o Gerchman/sai não, o lugar ficou impregnado de um projeto. As pessoas que chegaram não executaram igual o projeto, executaram diferente, mas me parece que são resultados da gestão Gerchman.
BERNARDO: Bacana.
HELOÍSA: Eu adoro o Gerchman. Queria que você pusesse isso.
BERNARDO: Eu queria te perguntar se você consegue se lembrar quando é que começa a tua relação com o Rubens.
JARDS: Eu creio que através/eu o conheci através de Helio Oiticica e também da Lygia Clark, eles tinham aquela relação ali e isso foi em mil novecentos e sessenta e sete, sessenta e oito, alguma coisa assim, e eu o conheci naquela patota ali de artes plásticas e foi empatia, porque ele era uma pessoa aberta, a conversa franca, um perguntador. Ele falava as coisas e perguntava: - não é isso ai, não é? Ele afirmava a coisa e perguntava logo depois se estava certo, se não estava e tal. Tornamos-nos amigos e um dia ele me convidou pra fazer a trilha sonora de um filme que ele estava fazendo, um curta sobre o pai dele, que era um grande artista gráfico e eu fiz a trilha, acho que o original misturado com as coisas da/algumas músicas que cabiam dentro do documentário e nossa relação foi de conversa, e conversa amiga e estética, a coisa falando da arte sempre. Até que ele fez a exposição Boa Noite/eu não me lembro exatamente/que ano foi, sabe? Setenta e poucos, setenta e dois ou mesmo setenta e um, não me lembro, e ele me convidou pra fazer a trilha sonora da exposição Boa Noite, que era um/era até uma coisa meio erótica, meio erótica não existe, era erótica, e ai eu fiz uma trilha de músicas ditas bregas naquela época, mas eram músicas de Lupicínio Rodrigues, de Ângela Maria, de Cauby Peixoto. Fiz uma seleção de músicas e ai foi tratado/Ângela Maria, Cauby, música de Lupicínio Rodrigues, das brabas, e era uma exposição linda inclusive, e tinha o banco de trás, as pessoas trepando no banco de trás e tal e era muito bonita. Música de cabaré e tal, e foi muito bonito. Em troca ele me deu dois quadros, que foram Os beijos, que eu tenho/está guardado até hoje e guardarei sempre, a não ser que eu fique duro de mais e ai eu vendo meus Rubens por milhões, trilhões de dólares e tal. Daí pra frente ele foi então diretor do Parque Laje, abriu pras várias artes, pra todas as manifestações artísticas. Antes, o Xico Xaves tem razão, em setenta e três não, em setenta e oito eu e o Xico fizemos um show no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro comemorando o vigésimo quinto aniversario da declaração das Nações Unidas e tal, dos Direitos Humanos e estavam sendo comemorados os Direitos Humanos, data dez de dezembro de setenta e três e nós fizemos isso lá no MAM e foi proibido em todo o território nacional em setenta e quatro e em setenta e oito foi liberado pela Censura e como nós tínhamos feito na moita um disco duplo, LP duplo sobre esse show, houve o registro desse show, então, como eu disse, foi proibido em setenta e três e foi liberado em setenta e oito e em setenta e três foi feito um tipo de grafismo pra capa do disco, pra todo o material do disco e eu procurei o Rubens quando foi liberado, pra fazer uma nova capa, porque já tinham se passado cinco anos e ai era como se fosse uma coisa nova, de novo, uma edição nova, então ele fez a capa e todo material, capa, contracapa. A capa de setenta e três virou encarte e a capa e contracapa dos discos foram feitas por ele, e foi fantástica, O Banquete dos Mendigos que chamava esse show, e ele botou um desses quadros antigos, a Santa Ceia e em volta ele botou várias impressões digitais misturadas, você não sabe se era ou se não era, mas o/em volta da Santa Ceia e O Banquete dos Mendigos, ele botou uma faixazinha escrito “liberado” e ai está o disco rolando, até hoje a gente não conseguiu lançar direito, forças ocultas trabalham contra os direitos humanos, mas a memória do Gerchman está ali presente e mais que presente, dessa posição política dele, posição estética, posição ética dele, está lá, registrado.
06:23
BERNARDO: Quando você conheceu pessoalmente o Gerchman, você já conhecia a obra dele, você já conhecia o artista?
ARDS: Alguma coisa, Lndonéia, lá do chamado tropicalismo, que Nara gravou, que é um quadro dele, é sobre o quadro do Gerchman e claro, vi algumas coisas e tal, eu estava ligado no trabalho do pessoal daquela época e era impressionante porque a coisa viva que ele coloca nos quadros, as figuras são vivas, são presentes, são/elas tem um movimento. Eu passei a conhecer e depois disso, eu e o Xico íamos pra Barra/era na Barra? Era Barra. Ao estúdio dele, a casa dele, e ficávamos lá conversando um papo furado, jogando conversa fora, das melhores, conversa fora de alta qualidade.
07:35
BERNARDO: O que eram esses papos?
JARDS: Papo daquele momento mesmo, das possibilidades, dos impedimentos, da vida cotidiana, o velho problema do dinheiro, como sempre ((risos)) e as coisas familiares, os problemas e tal, de cada um, aquela coisa toda.
08:03
BERNARDO: Você falou que você o conheceu através do Helio Oiticica (...)
JARDS: Helio e Lygia, mais o Helio.
BERNARDO: Você tinha uma relação viva, pelo que eu estou vendo, com as artes visuais, isso foi daquela época, também? Porque assim, minha geração não tem tanto isso, você acha que profissionalizou demais? Essa conexão, essa interdisciplinaridade que existia entre as artes em geral, por que você acha que isso existia naquela época?
JARDS: Porque naquela época eu acho que as experiências estéticas se cruzavam, as artes plásticas se cruzavam com a música, a dança cruzava com as artes plásticas e música, enfim, poesia, tudo isso, porque eram grandes poetas na realidade. Artes plásticas é poesia. E ai as coisas se interconectavam. Naquele momento eu acho que/mas todo trabalho/e o trabalho de invenção/então a experiência daquele grupo de artistas, que é o Rubens, a Lygia, o Helio e tal, mais Roberto Magalhães e alguns outros, eles estavam também ligados a música, ligados as outras manifestações artísticas, então isso ficava mais/as conexões ficavam mais/todos ficavam mais presentes em todos os circuitos de artes e tal, das manifestações artísticas, então nessa, por exemplo, o Helio Oiticica amava música, era passista da Mangueira também, então ele tinha essa conexão com o samba, com a música em geral, com o rock, com o pop e coisa e tal. O Rubens é pop, foi tido como pop naquela época e ele vinha nesse caminho também do/não era só pintura, como eu disse, era uma coisa em movimento mesmo e ele colocou cores e o próprio pensamento dele passava pelo Helio também, que tinha essa coisa do pop também, e todos, brasilicamente falando, eram profundamente brasileiros nesse sentido, que vieram pela história da arte brasileira e rompiam com aquela estética, saiam do quadro. O Rubens ficou mais no quadro, mas ele fez figuras que saltavam do quadro, e eu acho que foi isso, todos estavam em todas e cada um na sua particularidade, cada um na sua aventura estética, mas todos estavam com todos. Isso foi uma possibilidade daquele tempo, libertário, que estava uma coisa libertária, uma luta pela liberdade de expressão principalmente, não só artística como liberdade de expressão geral. Isso foi um tempo e ai encaretou tudo ((risos)).
BERNARDO: Por quê?
JARDS: E eu que sei? O Xico é quem sabe. Porque os hippies viraram yuppies e entraram pra Wall Street, ai quebrou uma corrente anticapitalista que era o projeto daquele momento.
12:03
BERNARDO: Você sabe que o pop tem uma discussão muito grande, até que ponto eles eram ou não eram pops.
JARDS: É, por pop quero dizer popular.
BERNARDO: É, porque o pop puramente americano exaltava o consumo e aquela sociedade industrial muito forte e muito viva e com muita cor, enquanto aqui no Brasil eles eram muito/ era o popular, era um olhar crítico pro cotidiano.
JARDS: Pro cotidiano e um olhar crítico contra o pop, o alto consumismo, o alto capital. Nós somos pobres. O Brasil é um país pobre apesar de ser rico, mas ele é pobre no sentido mundial, de economia mundial, e isso faz com que a crítica seja contra a opressão econômica, mas é que eu acho que o rompimento com isso, da Lygia/tudo foi em nome da invenção, além da ruptura com essa idéia de ultra capital, super capital, eles fizeram uma coisa nacional, popular nacional eu diria e não ganharam tanto dinheiro assim, inclusive. Romperam e permaneceram pobres como o Brasil era, como o Brasil é, aliás.
13:39
BERNARDO: Voltando nessa questão da tua contribuição com o Gerchman, qual é a diferença pra você, como músico, trabalhar com a sua obra, sua produção pessoal e a produção em colaboração, em parceria com um artista visual?
JARDS: A mesma coisa, porque, por exemplo, Helio Oiticica dizia/perguntaram a ele: - o que você faz, esses Parangolés, o que é? Ai ele respondeu: - o que eu faço é música. Gerchman também amava música, ouvia o erudito, o popular, não tinha diferença entre erudito e popular, é música, e a nossa relação foi através da música, no sentido de que o trabalho dele também era música, e eu sou músico, ai aprendi com eles a pintar a minha música também, a procurar pintar nas relações de dinâmica, de cores, porque a música tem cor, então está tudo certo, é pintura, fotografia, ele também era um grande fotógrafo, fotografava tudo, a Super 8 dele funcionava a beça. Ele, no caso, fazia cinema também, além das artes plásticas, além da coisa da pintura, que eu não posso chamar de pintura mais, essa coisa de pintura, não sei, eu posso dizer que o Gerchman é um grade pintor no sentido lá de trás, dessa palavra pintor, mas a palavra pintor já não cabe pra ele, por exemplo, era um grande artista.
15:29
BERNARDO: O Walter Carvalho, só pra aproveitar essa deixa, o Walter Carvalho, na entrevista ele definiu a obra do Gerchman como sinfônica.
JARDS: É, era uma peça sinfônica, popular, brasileira, ele tinha a grandiosidade dessa coisa, de uma peça sinfônica, uma grade orquestra e tal, ele colocava tudo ali.
15:56
XICO: Então, até que enfim aqui no Parque Laje, de novo, que lembra aquela música sua.
JARDS E XICO: ((cantando)) “No meio do mato sentado, no meio do mato, cantando, falando, no meio do mato”.
XICO: Então é isso, a escola de artes visuais, ela é(...)
JARDS: Que possibilitou naquela época grandes shows quando abriu para todas as experiências. Fizemos grandes shows aqui.
XICO: Exatamente.
JARDS: Roberto Guima. Lembro-me bem de um show aqui com o Roberto Guima, aquele músico extraordinário que morreu menino. Ele entrou ali, eu estava fazendo um show, ele entrou ali, começou a tocar aquele clarinete, foi uma coisa maravilhosa.
XICO: Foi a nota de solo de clarinete mais longa que eu vi na história, parecia que não acabava, era uma nota só. E teve você de braço quebrado, de gesso, depois sem gesso, então tinha uma circulação.
JARDS: Tinha uma circulação.
XICO: Vinha todo mudo, vinha Macalé, vinha Caetano, vinha Gil, freqüentava Milton Nascimento, a rapaziada toda da música brasileira, as experimentações se cruzavam e a escola no meio do mato. Inclusive lembrando essa relação da escola com o meio ambiente, ela é daquele período, quer dizer, anterior porque afinal isso já existia.
JARDS: Mas concentrou.
XICO: Mas ali as artes visuais entraram na natureza, ainda tem isso, que na outra entrevista eu não falei, essa relação das artes visuais, da música e da arte em geral, com a natureza e o Gerchman era um frequentador da floresta, ele era um índio urbano, ele se enfiava ai, ia ver se o laguinho lá em cima estava funcionando, ia ver se a água estava descendo pra alimentar a piscina com aqueles esguichos que tinham ainda. Criava caso aqui e falava: - olha vocês não estão limpando direito.
JARDS: Foram os velhos que criaram caso pra limpar aquela política doida que tirou ele/que ele mesmo não agüentou e, quer saber , (...)
XICO: É, porque ali na hora que avançou, como todo projeto libertário avança é que/totalmente democrático experimentava, as pessoas chegam e de uma certa maneira tem um grupo sempre ou uma oligarquia ou uma corporação que se incomoda com isso (...)
JARDS: E interfere. E começou a (...)
XICO: A saída dele se deve muito a isso, mas enquanto esteve (...)
JARDS: Foi uma maravilha.
XICO: Foi um caldeirão. Eu me lembro, por exemplo, você se lembra que/o pessoal chamava de circo de cabeça pra baixo. Por quê? Porque tinha uma lona, um paraquedas desse ( ) e quando chovia era colocado no meio, ali ele formava um funil ai a água impermeabilizava o tecido e caía dentro da piscina, ai dizem que, aquele pessoal todo daquela época, nasceu o circo voador, porque quando o ar entrava pela porta e não tinha chuva, ele ficava respirando, ficava como se fosse um balão, o ar entrava e levantava o paraquedas e ali acontecia os shows. Às vezes o cara estava cantando e descia a lona num vento desses, passava na frente dele ((risos)). Era esse improviso.
JARDS: O improviso da própria natureza.
XICO: É. Não tinha geração também.
JARDS: Não, era todo mundo.
XICO: Essa coisa de geração, não é a minha geração, não existia isso, ali tinham várias gerações.
JARDS: Várias gerações que formavam uma geração só, nesse sentido.
XICO: Um gerador.
JARDS: É, um gerador só, e era ele administrando aquela loucura.
XICO: É. Ele ali no meio participava, entregava também, ia pro o ateliê pra pintar, também não ficava dirigindo a coisa, era uma “desdireção”. Ai ele: - Xico, você que é mais novo, toca esse negócio ai que eu vou embora. Ai eu pegava outro mais novo: - Pernambuco da Silva, você que é mais novo, toca esse negócio ai ((risos)). Ou então era um grupo que assumia um determinado dia também, tinha uma programação feita (...)
JARDS: Tinha uma programação feita, bacana pra gente, pra gerar essa coisa toda.
XICO: É, de forma que as coisas se integrassem. Não existia uma curadoria. Então a música não era porque à musica era necessária se integrar a ela, ela já era (...)
JARDS: Ela já era integrada, já fazia parte daquilo tudo, daquela manifestação toda.
XICO: Eu até me lembro, porque não tem muita fotografia da época, eu andei pensando, eu acho que foi o/não sei quem foi, foi um de vocês ai que chamou atenção, estou achando que foi você. Foi, né? Foi, foi. É que, era o seguinte, não fotografava, primeiro porque não tinha equipamento, era todo mundo pobre, quando tinha, estava destinado a outra questão mais ligada a sobrevivência, então pouca documentação fotográfica.
JARDS: Agora, a fotografia, o cinema era o que estava acontecendo ali.
XICO: Era, o próprio cinema vivo.
JARDS: Não era registro.
XICO: E tinha outro problema, porque às vezes aparecia um cara pra fotografar que não era conhecido, ai o pessoal achava que era da polícia ((risos)), então não tinha nenhum registro. Chegava: - o que você está fazendo aqui? Porque tinha toda uma ditadura ali.
JARDS: Era uma paranóia concreta, não era (...). E o Rubens tinha essa coisa dessa fiscalização, porque havia concretamente isso, porque ali era uma experiência/eu falo muito libertária porque era uma experiência de exercer liberdade, entre todos os grupos.
XICO: Em todos os sentidos. Eu não me lembro de nenhum momento daquele em que alguém chegou pro outro e falou assim: isso aqui não pode ser feito.
JARDS: Não. Tudo podia ser feito.
XICO: Inclusive colocava a escola numa situação de risco permanentemente porque todo mundo convergiu pra cá, não foi só o Rio de janeiro.
JARDS: É verdade.
XIXO: O Brasil inteiro. Se você pegar, você tinha a possibilidade de encontrar na cantina o Zé Ramalho conversando contigo, era genial ai de repente chega o outro artista plástico, ai conversa com o Helio Oiticica lá num canto escorado numa coluna, ai um artista que chegou agora de São Paulo.
JARDS: Abidoral Jamacaru vivia aqui.
XICO: Abidoral Jamacaru. Pessoas históricas daquele momento que desapareceram. Muitos deles, não é que desapareceram, é que não tiveram (...)
JARDS: Aliás você sabe que eu encontrei na internet vários registros do Abidoral, puxa, Abidoral Jamacaru.
XICO: Ele está lá no Crato.
JARDS: Eu sei, mas tem registro de Youtube e essas coisas, que eu peguei alguns, e ele está lá ativo a pampa. Parece que ele não existe, mas existe a beça.
XICO: Abidoral, a gente está falando dele porque ele é um dos exemplos de artistas que chegavam ao Rio (...)
JARDS: Com aquele ( ) nordestino, aquela sandália enorme (...)
XICO: E procurava o Parque Laje. Eu me lembro que ele chegou lá em casa, apertou a campainha, em Santa Teresa. Eu abri a portinha e tinha um cara barbudo ai ele falou assim:
- Você que é o Xico Xaves? Eu falei: - É. – Me mandaram vir aqui falar com você. – De onde? Eu falei. – Do Ceará. ((risos))- Vamos entrar. Ele entrou e era um cara enorme, barbão preto, ai com um violãozinho ele sentou num sofazinho e eu perguntei: - como é que você chama? E ele falou: Abidoral Jamacaru. Ai eu escrevi no rodapé o nome dele, pra não esquecer. Ai eu falei: e ai? E ele falou: eu vim pra mostrar o meu trabalho no Rio de Janeiro. Eu falei: - então canta logo agora.JARDS: Aquela canção fantástica.
XICO: Como é que era? Era a letra mais curta que eu tinha ouvido. Não, eu já ouvi coisa mais curta, mas essa era das mais curtas.
JARDS: A mais curta é minha, Coração! Ah! Coração!
XICO: Mas tinha uma nota musical que era a mais longa que eu ouvi na música brasileira.
XICO E JARDS ((cantando)): “Era uma vez uma canção que não nasceu, pois a assassinaram nas cordas de um violão”.
JARDS: Inacreditável aquela música. Fantástica.
XICO: Então essa coisa chegava aqui, pena que muita coisa não foi (...)
JARDS: Não foi não só registrada, muita coisa não vingou.
XICO: É.
JARDS: Também pelo exterior, não por aqui, pelo interior.
XICO: E nos anos oitenta também houve essa ruptura, essa coisa que você colocou do (...)
JARDS: Não é nem ruptura, foi um desmanche.
XICO: Chegar o yuppie e transformar a coisa em produto e tal, o que pode ser positivo por um lado, mas por outro também a experimentação já era. Experimentação que voltou a partir dos anos noventa, dois mil então, que ela está, agora sim, mas não tem aquela relação interpessoal do músico com o artista plástico, tem muito pouca, tem mais em termos de linguagem, incorporar a música, incorporar a sonoridade, tudo até em grandes dimensões, a imagem e a tecnologia, mas aquele momento ali (...)
JARDS: A relação interpessoal não tem mais. Eu acho que não tem. Pra algumas poucas pessoas talvez.
XICO: Eu acho que você levantou um aspecto importante, que foi essa convivência. Seria até legal que você falasse um pouco mais disso, porque acho que isso tinha que, de certa maneira, voltar a praticar. Será que é possível?
JARDS: Não sei, talvez seja, mas agora essa convivência é intermediada pelo próprio mecanismo tecnológico, que é a internet e coisa e tal, mas é totalmente solitária, não tem aquela troca, olho no olho, dente no dente, não tem mais essa troca. É outro patamar de comunicação.
XICO: Mas você falou uma coisa do Gerchman também interessante. Falou o seguinte, ele era um cara/o Gerchman perguntava muito.
JARDS: Era um perguntador. Perguntava a si próprio, ele vivia pensando, ai colocava o pensamento dele e tal, afirmativamente, digamos assim, mas perguntava depois. Mas não é?
((Helicóptero))BERNARDO: Congela ai que o papo estava bom.
CLARA: Era legal vocês falarem também se vocês tinha noção do que/dessa relevância toda, tudo isso que/vocês eram muito jovens.
JARDS: Acaba acontecendo. Tinha uma coisa de certas ( )
BERNARDO: Deixa ele continuar de onde ele estava, depois ele entra nisso, só pra não perder o fio.
JARDS: Perguntador.
BERNARDO: Estavam falando do Gerchman perguntador, o pensamento dele.
XICO: É, o Gerchman perguntador. Então ele ouvia, o Gerchman ouvia, ele perguntava. – O Que você está achando desse negócio? O que você está achando que pode ser? Eu acho que ele conseguia constituir uma (...)
JARDS: E ele perguntava a si mesmo, ele colocava o pensamento e de repente, positivamente, do positivo, e de repente perguntava: - será que é isso mesmo? O que você acha? Então você estava sempre procurando saber dos outros, o que achavam desse pensamento, mas esse pensamento já saía positivo, digamos assim, já saía no afirmativo.
XICO: Não tinha uma certeza absoluta, porque também tinha outra coisa. Era naquele momento ali, o artista queria apresentar o seu trabalho inédito, a experimentação dele como músico vinha pra apresentar uma composição que ele fez naquele mesmo dia ou recentemente. É diferente do cara apresentar o que é sucesso. Hoje o cara apresenta o que é sucesso, já tem o público. Praticamente tudo o que se apresentava ali era inédito, era novo.
JARDS: Eu mesmo experimentei ali coisa de violão, voz, dentro dessa coisa de experimentação, não era coisa fechada, porque eu desenvolvi depois também dentro dessas (...)
XICO: Meu eu mesmo, na pintura, quando comecei a trabalhar com a pintura com minerais e tudo de fato, foi aqui, que eu vinha pro galpão, começava a esticar umas telas ali, ai trazia os minerais, pigmentos, era uma experiência ainda, não tinha definido aquilo. Eu achava que naquela época ali era tudo junto mesmo, como eu acho até hoje, simultâneo.
JARDS: Simultaneidade das linguagens.
BERNARDO: Mas essas coisas que vocês estavam falando, é interessante voltar ao pensamento do Gerchman, eu queria insistir nisso porque tem muito da obra do Gerchman, do pensamento da pintura, da caixa de morar, do cotidiano, dessa realidade da cidade, dentro do próprio Parque Laje, o Parque Laje como uma caixa de morar, o Parque Laje como o lugar da pesquisa do cotidiano, do aprendizado (...)
CLARA: A oficina dele chamava cotidiano.
BERBARDO: É, a oficina dele chamava cotidiano.
JARDS: Mas isso que a gente falou, ou eu falei anteriormente, da criação dele, é que era coisa do/a coisa do futebol, por exemplo, ele retratava de uma forma fantástica, o próprio movimento das figuras. Você vê aquilo ali, você vê o movimento das figuras, e ele arrancava coisas do cotidiano, a própria Lindonéia e tantos outros temas, O Beijo e vários temas que ele lidava, que ele coletava do cotidiano e transportava pro trabalho dele.
XICO: E outra coisa, que é o seguinte, ele trabalhou numa linguagem poética também, que de certa maneira ele, Helio Oiticica, Lygia, toda aquela turma, aquele grupo (...)
JARDS: Roberto Magalhães, que era mais místico.
XICO: Ele trabalhou muito com a poética da instalação também, ele é pioneiro nisso, junto com outras pessoas, assim como o ( ), o ( ) era super amigo dele. ( ) é uma pessoa que também precisa ser resgatada nesse sentido, então tinha, por exemplo, as instalações do Gerchman na Amazônia, na praia, a escultura dele, que na verdade é um poema, Lute, que é tridimensional, são palavras, ou seja, tem uma/é porque uma coisa é você usar a palavra como artes visuais, outra coisa é a poética da palavra, é a poesia estar dinamizando com a linguagem de artes visuais, que é o que ele fazia, ou seja, ele tinha/ele era poeta.
JARDS: Eu filmei dentro da Lute, onde estava, lá no Museu de Arte Moderna, no jardim do Museu, uma coisa assim, ai teve um documentário que fizeram comigo, que começa uma parte saindo de dentro do Lute e eu batucava no T do Lute, sentado no U, batucando no T, e ele achava isso fantástico, maravilhoso, batucando.
XICO: É, porque depois que virou museológico, você não pode mais sentar nela, não pode sentar nela, não pode sentar na Lute.
JARDS: Mais isso é sacanagem, você não pode lutar na Lute.
XICO: ((risos)) Tiveram vários trabalhos dele que eu acho que até o Parque Laje, de certa maneira, interagiu ele com o Parque Laje que, não sei se, por exemplo, aqueles jacás dele da Amazônia, que as pessoas entram nele, ficam caminhando dentro de um balaio, eu acho até que tem que fazer uma exposição do Gerchman só com esse recorte.
JARDS: Dessas ocupações.
XICO: E eu gostaria de participar.
JARDS: Eu também, batucando (...)
XICO: Onde a relação dele com a poesia mesmo, com a música, com o cinema, o Super 8, que você lembrou que ele vivia com aquela camerazinha.
33:32
BERNARDO: O Parque Laje era uma obra de arte dele?
JARDS: Era , de certa forma era. Ele somente exerceu essa coisa da/essa liberdade interior que ele tinha, ele colocou num espaço pra que essa experimentação dele pessoal/ele colocou pra fora, deixou que experimentasse, quer dizer, liberou, fez um espaço, criou um espaço em que a liberdade era a essência do Lute, da luta.
34:09
BERNARDO: Especificamente sobre o Verão a Mil, vocês lembram alguma passagem de vocês juntos, aqui?
JARDS: O Verão a Mil era (...)
XICO: O Verão a mil foi o verão que durou mais tempo na história, foi até oitenta (...)
JARDS: Era experimentação.
XICO: Começou em setenta e seis e foi embora, então a gente várias vezes aqui, o Macalé apresentou com a ( ), apresentou sozinho, apresentou em grupo, ( ). Algumas coisas eu escrevi aqui no Parque Laje, naquele período. Um livro inteiro às vezes. Eu ia com a prancheta e escrevia o livro, desenhos que eu tenho guardado e nunca mostrei, gente que se reunia lá na sala pra afinar instrumento e acabava saindo uma música, então era uma dinâmica contínua.
JARDS: Agora eu queria lhe perguntar uma coisa que eu nunca entendi direito, quer dizer, entendi assim, como ele saiu dessa história?
XICO: O Gerchman?
JARDS: É.
XICO: Olha, eu não sei.
JARDS: Você estava mais ligado aqui dentro do que eu.
XICO: É, mas na saída dele eu (...)
JARDS: Foi uma coisa pessoal também.
XICO: Quando ele saiu,ele chegou pra mim e falou assim, Xico, vocês continuam isso ai, então eu nunca parei com ele pra conversar exatamente (...)
JARDS: Porque ele tomou essa decisão do sair.
XICO: Mas tem uma carta. A Clara tem essa carta, onde ele deixa praticamente claro a saída dele, mas eu acho que foi essa pressão externa que tinha, um misto de pressão política e medo da efervescência que isso causou num momento de transição do Brasil, onde várias pessoas certamente ficaram com medo de assumir, que era/isso era importante para essa transição, então acho que ali ele foi cerceado de alguma maneira no processo de (...)
ARDS: No processo de criação dele, dessa ocupação (...)
XICO: E da própria escola (...)
JARDS: Da própria escola, e dava um trabalho desgraçado.
XICO: Ai teve uma freada, então ali, depois dessa freada ali eu acho que a escola de artes visuais explode a partir dali, desse núcleo, pra todos os campos futuramente. Todas as outras gestões que vieram depois explodiram a partir daí, mas houve uma parada, houve uma/parar pra pensar, sabe quando chega o/vamos parar pra pensar porque a coisa está complicando, estão pressionando a gente aqui, é isso que acontece.
JARDS: Sempre. Ruim pra eles, que pressionam.
36:59
BERNARDO: Dois poetas aqui. Eu sei que vocês não se prepararam pra isso, mas você lembra alguma poesia que você pudesse falar aqui?
XICO: Lembro de uma que eu fiz aqui, que falei algumas vezes ai. Uma foi quando eu botei fogo na piscina, tirei a roupa e mergulhei dentro das labaredas, saí do outro lado. Eu falei:
Poeta é louco Põe fogo na água e mergulha nas labaredasE a outra era uma que eu lembrava sempre, a poesia/porque tem o vento que entra pela porta:A poesia é uma ventaniaQue entra comigo pela porta E sai comigo pela janelaE outras mais assim de/aqui era o espaço, era o laboratório, um laboratório de experimentação.JARDS: ((cantando)) Eu penso muito no meio do mato, sentado, no meio do mato, transando, sentado, na beira do rio. O rio era o Rio de Janeiro, claro. E os rios que passam por aqui também. No meio do mato, sentado, no meio do rio sentado, pensando, no meio do mato sentando, olhando, pensando. Alguma coisa assim. Foi um prazer.
XICO: Foi um prazer encontrá-lo aqui no meio do mato, na moita, na beira do rio.
ARDS: Na moita, sempre na moita.
JOÃO: Porque a nossa dificuldade de fazer documentário aqui era o peso da/a Reflex fazia barulho, então você tinha que fazer com uma teleobjetiva. Depois eu improvisei blimps com cobertores , mas até que surgiram as primeiras Eclair, mas muito tempo depois/mas eu sei que o cinema veio a ter/foi uma das inspirações do Cinema Novo, porque permitiu, embora quando veio o primeiro Nagra e a primeira Reflex, em que foram todas os filmes do Cinema Novo, era na Reflex. Foi usada e abusada e só tinha uma Moviola, que tinha vindo pro Sucksdorff dar um curso. Teve um curso do Sucksdorff que era um cineasta sueco famosíssimo e que foi feito na casa do Barreto, em Botafogo. Todo mundo fez, eu não porque eu ainda era jovem, mas o Saldanha, o Escorel, Dib, o pessoal todo fez o curso e o Sucksdorff fez o filme com esse pessoal do curso, que eu nunca vi, mas era uma coisa sobre pivete. Depois o Sucksdorff enlouqueceu, foi lá pro Mato Grosso, onde está até hoje, não sei se morreu. Virou um urso. Eu encontrei com ele na floresta, há trinta, quarenta anos atrás, encontrei ele lá, mas quando eu o encontrei ele já era um urso, quer dizer, não sei se morreu, deve ter morrido, porque ele era contemporâneo do Bergman. O Sucksdorff era tão importante na Suécia quanto o Bergman, era o Bergman que fazia teatro e cinema de ficção e o Sucksdorff era o grande documentarista.
02:30
BERNARDO: Eu não conheço o trabalho dele.
JOÃO: Os filmes, parecem, são incríveis. Eu também não.
BERNARDO: Não?
02:36
JOÃO: Não. Isso tudo ficou. Parece que tem coisas incríveis. Mas eu acho que ele está vivo ainda, e continua na mata até hoje, não saiu. Eu sei que o fato é que esse núcleo que foi formado na casa do Barreto, em Botafogo, na Dezenove de Fevereiro, ali então se começou a organizar um núcleo pra fazer o que seria um cinema verdade, então o Joaquim Pedro, que era filho do Rodrigo, do Patrimônio, e o Davi, que tinha ligações com o Carrilho, do Itamaraty, conseguiram importar um Nagra, uma Reflex 2C e uma Moviola. Essa Moviola montou Vidas Secas, Deus e o Diabo, todos os filmes iniciais do Cinema Novo e todos os documentários, O Circo, enfim, na época eram feitos, A Integração Racial, do Leon, não, a maioria absoluta do Leon, a Integração Racial é do Sarraceni, foram feitos/isso depois de 5x favela, e 5x favela já tinha feito sucesso. E tinha os filmes do Joaquim, Couro de Gato, tinha os filmes do Cacá, tinha os filmes do Marcos Farias, ou não, Miguel Borges. Eram cinco, esqueci agora, me falha a memória de um deles, mas eram filmes amadores feito em dezesseis. Quando chegou essa câmera, o Jabor fez logo O Circo, e deu uma zebra monumental, porque na época o Lacerda tinha fundado um órgão de incentivo ao cinema que chamava CAIC, Comissão de Auxílio a Indústria Cinematográfica, e pra sacanear o Glauber, que tinha lançado Deus e o Diabo, ele deu o primeiro prêmio pro Circo, do Jabor, então o Jabor ficou desesperado porque começou a ser perseguido. O filme era bonito, mas não dava pra comparar com deus e o Diabo, mas foi uma dessas sacanagens, e ai havia briga – o Jabor é um babaca; essas coisas. Eu sei que a partir daí se formou um núcleo, que era comandado por Oscar Barreto, ai que surgiu Vidas Secas e começou a se discutir e o que caracterizava essa geração é que eram pessoas que faziam cinema, ou seja, eram operárias da cinematografia, e ao mesmo tempo tinham, ou pretendiam ter um nível de reflexão, eram críticos também, quer dizer, o Glauber era um crítico, o Davi era um crítico, o Jabor era um crítico, o Leon era um crítico, todos refletiam e faziam. Bom, então o que acontecia, a Europa, que está sempre atrás do Terceiro Mundo, ou não sei o que é tanto. O negócio da África era importante porque na Itália tinha sido fundada a primeira ONG de que se tem notícia, chamava Colombiano, nos anos cinqüenta. Era um padre do Vaticano, chamado Padre (Harpa), que fundou junto com o que seria o Museu do Homem, com o Jean Rouch, eles fundaram esse Colombiano, que era um filme que tinha a idéia de levar, coisa que se faz hoje muito, levar câmeras pra África, pra dar voz aos africanos, então faziam filmes documentários com os próprios africanos contribuindo, ( ), tiveram vários filmes famosos feitos pelo Jean Rouch, que se baseavam no Museu do Homem, em Paris. Isso criou uma espécie de estilo e ajudou, evidentemente, a soltura das linguagens de documentário. Os documentários eram muito caretas. Você pega os documentários do Cavalcante, os documentários clássicos, são todos feitos como se fossem filme de ficção, não tinha nem meios técnicos de fazer um cinema solto, quando surgiu a Eclair, surgiu o som direto, que na época era com fio, pra você ter sincronismo com Nagra, você tinha que ligar um fio, então tinha cenas incríveis, eu lá, Pixinguinha, com Joaquim Pedro, Joaquim fazendo o som e de repente eu dando a volta numa mesa atrás do Pixinguinha e ele se escondendo embaixo da mesa, e ai de repente o negócio dava um nó e tinha que parar.
CLARA: Era um balé, um balé técnico.
JOÃO: Era fio, depois inventaram Pilotone, era o que dava o sinal, depois inventou-se imediatamente o sincronismo da câmera, pra poder fazer o cinema, mas isso tudo eu estou contando um pouco a guisa, lembrando o clima, e tudo era feito assim. O Eduardo Escorel/o Luis Carlos Saldanha foi um cara importante. O Luis Carlos Saldanha que era cunhado do Escorel, casado com a irmã do Escorel. Ele era dessa turma lá do Sucksdorff e ele acabou sendo representante do Kudelski, que era o fabricante do Nagra, era uma espécie de demonstrador do Nagra, ele ia pela Europa mostrando, porque a invenção do Nagra também foi um coisa importante, que ganhou um Oscar. O Kudelski ganhou um Oscar pela invenção do Nagra. Nagra foi uma coisa que revolucionou. A invenção das câmeras blimpadas e a invenção do Nagra foram saltos enormes, porque antigamente se filmava/quando a Vera Cruz fazia aqueles filmes de indústria, era tudo em som direto, só que eles montavam um estúdio inteiro com fita de sessenta milímetros, fita de som perfurada, entendeu? Era uma loucura, então era uma parafernália fantástica, mas pra filmar reportagem não podia. Depois inventaram um filme que tinha uma trilha ótica, foi uma desgraça, uma época desgraçada de televisão, começaram a aparecer coisas híbridas, mas o Nagra e a Eclair foram importantíssimos. Eu era muito garoto e eu sempre fui muito bom, muito esperto em coisa mecânica, eu peguei logo o macete e comecei a fazer assistência de câmera dos fotógrafos, então eu trabalhei literalmente com todos os fotógrafos do Cinema Novo, como assistente, e o pessoal gostava de me levar porque se alguma coisa desse errado, quebrasse uma câmera, eu desmontava a câmera, montava e consertava , isso fazia até com a Mitchell, pegava uma Mitchell e desmontava, montava etc. Bom, ai o negócio mais ou menos se firmou através da propaganda feita na Europa pelo Gustavo, pelo Carrilho, pelo Davi e pelo ( ), ficou apaixonado pelo Cinama Novo, e o Cinema Novo começou a ter penetração nos festivais e começou a ganhar prêmio, e prêmio no Brasil conta muito. Ganhou prêmio em ( ), ganhou prêmio em Veneza, e isso criou então uma série de incentivos, a CAIC, que foi o primeiro, Cláudio Lacerda etc. Não havia Embrafilme, havia o INCE, Instituto Nacional de Cinema, onde trabalhava o Humberto Mauro. Eu participei como assistente de câmera de setenta e tantos filmes dessa época, e passava o ano inteiro viajando, ia pro Nordeste, ia pra Amazônia, ai tem uma quantidade gigantesca de aventuras inacreditáveis, que se eu contar vai levar oito horas.
12:39
BERNARDO: Como é que você foi parar no Triunfo Hermético, do Gerchman?
JOÃO: Não, Triunfo não foi o primeiro.
BERNARDO: Eu sei (...)
JOÃO: Não, ai quando eu fui na/quando houve a galeria G4, a famosa exposição, eu fui lá, ai conheci assim de vista o Rubens, conhecia o Antônio Dias porque eu tinha ido com o Afonso Beato/o Antônio morava num cubículo ali na Barata Ribeiro, tinha até que pendurar umas salsichas e salaminhos no teto por causa dos ratos, então ele/tinha um espaço, um quarto disso aqui e eu e o Afonso fizemos reproduções das obras dele. Eu sei que teve uma hora que o Davi/que o Antônio Carlos Fontoura, que era interessado em arte, resolveu fazer um filme sobre a arte que estava surgindo, a arte moderna ali. Escolheu quatro artistas, era o Rubens, o Antônio Dias, o Vergara, que depois saiu e o Roberto Magalhães e ai tinha surgido no Rio o David ( ), tinha aparecido fazendo foto de reportagem. O David ( ) tinha sido um sujeito importante nos Estados Unido, ele foi o cara que fez a campanha do McGovern contra o Nixon, era uma espécie de/feito esses marketeiros. Eu sei que de repente o McGovern perdeu, ele veio pro Brasil, saltou de um barco ali no Iate Clube, não sei o porquê, e estava passando um bonde, era Carnaval, ele viu aquele bloco e entrou. Era bem coisa do David, que era uma figura ótima, e nunca mais saiu, e ele foi um sujeito muito importante pra todo mundo, pra mim, porque ensinou uma série de técnicas de fotografias que a gente não sabia, era tudo meio ( ) e ajudou a estabelecer um padrão de respeito pelos fotógrafos nas revistas da imprensa, porque o fotógrafo até então era considerado um cara de segunda. Em jornalismo, principalmente, fotógrafo era o peão, não tinha direito a nada, tanto que o Zé Medeiros, que era um grande fotógrafo, escondia os negativos dele, porque se não ele/Luis Carlos Barreto, que era do Cruzeiro, mas eles não tinham o direito de estabelecer nada, de diagramação nem nada, e o David, quando foi trabalhar pra editora Abril, que não era a Veja, era antes, ele fazia ensaios, mas exigia fazer diagramação, então houve uma melhora nesse ponto, o David foi um sujeito importante, ao mesmo tempo criou uma série de irritações, porque o Glauber imediatamente disse que ele era da CIA, que era um agente da CIA, porque ele gostava muito de fotografar o nascer do sol - o cara que acorda às cinco da manhã pra fotografar de madrugada só pode ser um agente da CIA ((risos)). Então as coisas que se faziam, e quase morre o David, coitado, ele não tinha nada de CIA, era uma figuraça. Ai o David sistematicamente começou a fazer foto pro pessoal de cinema, de teatro, de música, ele tem um acervo inacreditável, e ficou. Depois ele foi pra São Paulo, mas o Antônio Carlos Fontoura tinha ficado amigo do David e queria então usar a competência pictórica da fotografia do David no filme, acontece que o David não sabia mexer com câmera, então me chamaram pra ser o câmera e pra ensinar o David a fotografar, a usar a câmera, então na realidade eu fui o câmera em parte, e fui o cara que possibilitou o David a usar a Reflex e nós fizemos juntos Ver e Ouvir, e o filme fez um sucesso imediato, porque era realmente muito original, era uma coisa nova, ninguém conhecia a arte moderna e continua não conhecendo, porque é também um público que/isso não passava em cinema, era tudo meio assim. Eu sei que com isso/bom, ai a gente fez o Ver e Ouvir, que deu muito certo, ganhou vários prêmios, e ai ficamos amigos e Helô, minha mulher, também escreveu algumas coisas sobre o Rubens, e havia naquela época, você ia aqui na/tinha o circuito Leblon, era Antônio, Álvaro, Degrau, Fiorentino, não Fiorentino era de teatro, esses bares, o Jangadeiro, o Velho, e esse que foi o melhor de todos, que era o alemão, o Zeppelin, então eu pegava um bonde duro às oito horas da noite na Real Grandeza, soltava na frente do Zeppelin, ficava esperando, quando chegava o pessoal de cinema, sempre tinha uma mesa, que você entrava ali e ficava, então tinha essa coisa, e eu descolava emprego em filme nesses lugares, porque o cara dizia: -estou saindo para não sei onde, quer ir? Então aquilo era uma maneira de ganhar dinheiro, e comecei a ganhar muito dinheiro, fui morar sozinho em Santa Teresa, e foi um momento muito engraçado, porque era tudo feito nas coxas mesmo. Se tivesse luz tinha luz, se não tivesse luz não tinha luz, se o barulho da câmera tivesse que entrar, entrava e ninguém ligava muito. Mas ai a gente fez o Ver e Ouvir, continuou amigo, rodando nos bares, até que ele resolveu fazer o Triunfo Hermético. O Triunfo Hermético era complicado porque ele queria animações, você só faz animação quadro a quadro, não existia cinema digital, então você não podia fazer animação digital, tinha que fazer na hora, então o trabalho que dava aquilo, levar aquilo pra cima da Pedra da Gávea, ai eu tinha que filmar quadro a quadro com a Mitchell, a Mitchell é uma câmera do tamanho daquela cadeira, ela sozinha, e foi uma dificuldade fazer aquele filme, e ele ainda se orgulhava de que ele tinha provocado a destruição de um cinema em Niterói, porque eles pegavam esses filmes e botavam os documentários escolhidos precedendo filmes longa-metragem, as vezes dava certo a combinação, o curta, em geral o público uivava quando aparecia o anúncio do documentário, o público já uivava de horror, porque só tinha filme chatíssimo, O Pescador, enfim. O cara fazia um lixo e botava ali pra ganhar dois mil reais, mas o filme do Rubens, o Triunfo Hermético, botaram em Niterói junto com um filme de kung fu, aquele chinês, aquele, como chama, o famoso (...)
BERNARDO: Bruce Lee.
22:43
JOÃO: Bruce Lee. Então só tinha troglodita e lutador. Quando começou o Triunfo Hermético eles quebraram o cinema ((risos)) e o Rubens adorava aquilo: -quebrei um cinema em Niterói! Triunfo Hermético não foi todo mundo que viu. Eu nem me lembro direito, lembro das animações que a gente conseguiu fazer mais ou menos, era uma cosia meio mal feita, depois disso a gente fez/não, teve uma hora que apareceu/o Rubens me ligou e disse: -olha, as inscrições pro festival JB, que era um festival conceituado, era uma quinta feira, ele falou assim: -segunda feira é o último prazo pra inscrever, vamos fazer? E era casado com a Silvia. A Silvia estava há um ano fazendo um filme pra entrar no festival JB e os dois já não estavam bem, já era final de casamento, e o Rubens falou: -tem algum resto (...) Eu guardava resto de filme, trinta metros, ai eu fiz vários filmes e cada plano tinha que mudar o chassi, rodava, ai pára tudo e bota. Aí o Rubens falou: -vamos fazer um filme pra botar no festival JB. Mas só que você tinha que filmar, ir à São Paulo, revelar em São Paulo, trazer o copião, entrar numa Moviola, montar o filme, fazer o som, ir a São Paulo pra mixar, levar pro laboratório, eles tinham que montar o negativo e tirar cópia, e isso levava no mínimo quinze dias, ai eu disse: -não, vamos fazer. Ai eu fiz tudo. Eu fazia o som, a câmera, montagem, a filmagem etc, e ai a gente fez o Mira, o emigrante, que eu acho um filme que é uma gracinha, um filme sobre o pai dele.
BERNARDO: Mas o Mira é bem depois do Triunfo, não é?
JOÃO: É bem depois, mas a gente fez. Eu consegui tirar o primeiro take do Mira, ir a São Paulo, filmamos a noite toda, no dia seguinte de manhã, sem dormir eu fui a São Paulo, revelei, esperei, trouxe o copião, montei, botei o som, voltei a São Paulo, eu sei que na segunda feira, na hora que estava fechando eu entreguei o filme. Pior que o filme foi selecionado e o da Silvia não foi, ai que o casamento foi pro brejo.
26:07
CLARA: Eu queria perguntar, no Triunfo vocês usaram um barco em determinado momento para aquelas cenas aquáticas?
JOÃO: Eu não estou lembrado do Triunfo Hermético.
CLARA: Ele tinha letras, eu não sei como é que elas flutuavam, parecia (...)
JOÃO: Não, aquilo é efeito especial de quadro a quadro.
CLARA: Porque no Paisagem, que são as letras metálicas, a gente vai vendo o reflexo, a letrinha cai, a gente vê que é um efeito especial, mas nas letras que estão boiando e que tem uns planos longos, me parece até um movimento de um barco.
JOÃO: Pode ser, mas eu não me lembro do Triunfo Hermético. Eu me lembro na dificuldade extrema que era fazer aquele negócio.
CLARA: E nem quanto tempo demorou, por exemplo, se vocês fizeram isso de uma vez só.
JOÃO: Não. Nós ficamos juntos um mês ou dois meses fazendo, só eu e ele, não tinha ninguém ajudando, tanto Mira quanto esse, não tinha nem assistente, e uma Mitchell pesa cinquenta quilos no mínimo, é uma câmera gigantesca. Eu era capaz de fazer coisas inacreditáveis, eu fiz outros filmes sozinho, com Blimp. Blimp era uma capa de aço que você botava que pesava setenta quilos. Eu fiz um filme com um cara, que o cara morreu, o Aroldo, coitado, era um bêbado, que chamava uma Lição de moral, que era um papo de dois bêbados no botequim, e eu fui filmar na Baixada Fluminense sozinho, não tinha nem assistente, eu dirigia o carro, eu fazia o som e a fotografia, e saiu Uma Lição de moral, era um cara dizendo: -você é um bêbado e tal; dava uma lição. Eu não me lembro como aconteceu, eu fiz umas coisas loucas, só eu mesmo conseguia fazer, entendeu? E as pessoas foram lá naturalmente abusando de mim, eu tive de repente uma carreira em longa metragem, eu fiz alguns, mas eu fui perdendo prestígio porque eu achava mais importante conseguir fazer o que o cara queria, o que o diretor queria, o cara está desesperado querendo filmar, se não tinha luz, eu dizia: vamos filmar sem luz. Eu joguei pro alto qualquer tipo de exigência, como fotógrafo, pra ajudar/eu me sentia parte daquilo, entendeu? Então eu fiz um monte de porcaria, porque o cara queria uma porcaria, então eu disse: está bem, vai sair ruim, é assim mesmo? É. Ai tinha uns ( ) que apareceram, fotógrafo suicida, me chamavam de fotógrafo suicida. O cara desesperado pra fazer a arte dele, não dá pra dizer não. Enquanto os meus amigos, Sergio, Laurindo, Escorel, Dib, diziam: pára tudo, vai arranjar luz. Eu não dizia não, eu ia, mas se você somar, eu me diverti mais e contribui mais, provavelmente, pro nosso cinema de porcaria do que esses outros que fizeram exigências enormes e acabaram pasteurizando de uma forma incrível, porque depois que passou a primeira fase de Cinema Novo, que teve importância e que foi uma coisa instigante, virou uma disputa por dinheiro na Embrafilme, quer dizer, os filmes deixaram de interessar minimamente, como é hoje e como eu acho que é até hoje. O cinema brasileiro não tem importância alguma e não tem nenhum tipo de/como é que se chama/outro dia o Escorel foi dizer isso e quase mataram ele, mas ele tem toda razão, não tem importância alguma, o que se faz de cinema no Brasil é uma porcaria, salve raras exceções, de repente pega um filme e escapa, mas isso não tem nada a ver, é só uma opinião, você corta depois pra não me/eu abandonei o cinema há trinta anos, não quero ter problemas. Agora, a justificativa era sempre política, não, politicamente (...)
CLARA: Você tem uma copia do Mira, não?
JOÃO: Não. Você já viu no CTAv se tem?
CLARA: Já fiz uma pesquisa na Cinemateca do MAM, Cinemateca de São Paulo e CTAv.
JOÃO: Não tinha?
31:33
BERNARDO: E como era o Rubens fazendo cinema? Ele entendia alguma coisa de cinema ou era uma coisa muito livre?
JOÃO: O Rubens? Não, ele não estava muito interessado em entender cinema não, ele estava focado na parte plástica mesmo, o cinema ali pra ele era um uso, era um suporte, ele não tinha o menor interesse em cinema e, tem essa turma da Bel Air, lá do Rogério Sganzerla, Julio Bressane, meus amigos todos, que pretendiam fazer arte cinematográfica pura, o que seria equivalente a uma pop arte dentro do cinema, coisa que nunca deu certo, porque as duas coisas são antagônicas, cinema, ou é um cinema industrial, ou não é, ou não existe, a não ser no início, Buñuel ( ) aqueles pioneiros, ( ), Dziga Vertov, que eram pesquisas de linguagem, mas o Rubens não/eu acho que o Triunfo Hermético, ele chega a misturar um pouco, mas ele não via aquilo como/ele não via e não tinha uma coisa cinematográfica, eu não sentia nele um interesse cinematográfico em fazer alguma coisa em cinema que fosse/a matéria dele não era cinematográfica, a matéria dele eram as pessoas, e os objetos e as coisas dentro do universo que era de artes plásticas, não era de cinema. Ele jamais faria um filme, o filme foi por acaso, porque era uma maneira de você/ele era muito mais um artista gráfico, ele tinha mais ligação com essa parte e era incontrolável você tentar fazer isso, talvez se ele tivesse pegado/hoje você pega esse cara, Carlos Saldanha que faz não sei o quê na neve, pinguim e não sei o quê, se você bota os recursos áudio visuais do nível que a gente tem hoje na mão do Rubens, ele dava um show, inclusive o que eu admirava muito no Rubens é porque ele era um artesão e a história do Mira foi muito legal, dele estar seguindo a tradição do pai que era um desenhista de anúncios etc. Poucos artistas, a não ser o Roberto Magalhães, talvez, tinham a habilidade do desenho do Rubens, sabiam desenhar. Muito artista não desenha, nem precisa, também acho que não precisa. Se precisasse, metade não existia, mas ele tinha know how, ele tinha prazer daquilo, ele tinha a mão do desenhista, do pintor, isso transparece na coisa, então essa incursão dele em cinema foi um pouco, sei lá, acho que ele queria se divertir um pouco.
35:37
BERNARDO: A gente encontrou uma carta, até trouxe a cartinha aqui, que é do Gerchman, é de novembro de setenta e nove, e ele está escrevendo pra alguém, a gente não sabe quem é o destinatário, que ele considera um “prezado amigo” e ele faz duas ou três referências a você nessa carta, ele está escrevendo para um amigo e ele fala que nesse momento (...)
JOÃO: ((lendo a carta em voz baixa)) Esse negócio a gente ia fazer, eu me lembro.
CLARA: Dos rótulos?
JOÃO: É.
BERNARDO: O que aconteceu, você lembra?
JOÃO: Eu me lembro que teve/porque tinha um acervo gigantesco de rótulo, produtos e embalagens em Brasília, no Pró-Memória, isso foi época do Aloísio Magalhães lá, então a gente andou olhando , o Antônio Grosso também, que era um impressor, ele tinha muitas pedras de/antigamente tudo era feito, lata de manteiga, qualquer coisa era feito em lito, e era muito engraçada porque tinha coisa que/os rótulos de cachaça eram impagáveis porque o cara fazia pinga Santinha, então tinha/você via que o cara tinha usado a mesma pedra, então ele não mudava, ele só mudava algumas coisas, então tinha uma pinga que era um bêbado em cima de uma ponte, depois eles tiravam a ponte e botavam Nossa Senhora Aparecida subindo, então tinha umas coisas engraçadinhas, lata de manteiga. Houve uma época que eu entrei nessa pesquisa e vi coisas incríveis, cheguei a comprar, porque era também de impulso ai eu fui a descobrir em, foi Diamantina não, foi uma cidade de Minas, no interior, uma prensa de litogravura antiguíssima e com oitenta pedras enormes. Comprei e trouxe, só que era um negócio tão gigantesco que era a mesma coisa que comprar uma impressora de jornal e botar na sua casa, então acabei vendendo a preço de banana porque teve uma hora que eu parei de fazer filme. A minha carreira cinematográfica é pequena, embora tenha feito setenta filmes, durou dez anos só, porque quando eu tinha vinte e nove anos eu comecei a ter dores na perna e fui paralisando, ai isso durou/eu fui perdendo peso, já não conseguia mais ficar em pé. O último filme que eu fiz foi o Iaô, que era um filme sobre filha de santo lá em Cachoeira, na Bahia, mas eu ficava deitado, iluminava, na hora de filmar eu ficava em pé e filmava. Eu cinco anos aleijado, com dores e sem dormir, até que um médico pediu pra eu tirar uma radiografia, eu estava com o fêmur quebrado, essas coisas, ai eu operei, entrei numa fase de trinta anos no hospital, durante trinta anos eu não saía do hospital. Operava, entrava, ai entrava em álcool, droga, isso durou realmente dos trinta aos cinquenta, vinte anos, eu fiquei vinte anos louco e perdi tudo, quer dizer, perdi meu trabalho. Quando eu/depois da quarta quase morte e morte mesmo, cheguei a ter parada cardíaca, convulsões, internações, eu já era mais conhecido no circuito psiquiátrico dos hospícios do que no meio cinematográfico. Eu conhecia todo mundo, os malucos de fora e os malucos de dentro.
41:17
BERNARDO: E esses filmes que você fez com a Heloísa, no final dos anos setenta. O que eram esses filmes?
JOÃO: Isso eram as porralouquices da Heloisa, que sempre quis fazer qualquer coisa, ai ela fazia. Agora eu estou lembrando vagamente do que era. Eram uns negócios que ela fazia/ bom, primeiro a gente fez m filme careta sobre ( ), depois ela começou a fazer um programa de televisão em que eu tinha meio que participação, e o problema é que como a Helô sempre trabalhou na Universidade, você tinha o peso horrível da universidade, porque tudo o que você faz na universidade e sai do normal, você é imediatamente sabotado e sacaneado, por isso que a experiência da Escola de Artes Visuais foi nova, porque era uma renovação. Quando o Darcy entrou, Darcy era muito amigo da gente, eu inclusive participei do programa de fundação daqueles Brizolões, eu fazia levantamento de campo, ia pras favelas, subia o Pavão Pavãozinho.
42:42
BERNARDO: Mas esses filmes que você fez com a Heloísa eram ficções ou documentários?
JOÃO: Não era uma coisa nem outra. Tinha um programa de rádio, Café com Letras, e tinha alguns programas que eram pra TVE eu acho.
42:57
BERNARDO: Esse material desse filme que vocês tentaram fazer pras indústrias de setenta e nove, esse filme (...)
JOÃO: Tudo isso era uma burocracia danada, você tinha que entrar numa comissão na/não era Embrafilme/era Departamento do Filme Cultural da Embrafilme. Você tinha que entrar numa comissão, fazer um projeto, era como hoje, ai tinha um júri, você tinha que fazer uma politicagem, ai tinha um revezamento - mas você já ganhou esse ano, ano que vem não dá! Era impossível, literalmente, fazer filme independente. Hoje você pode, com câmera de vídeo, você pode fazer alguma coisa. Naquela época era filme 35mm, um filme custava cem mil dólares, um curtazinho desse era cinquenta mil dólares, e era pra nada, porque não passava, literalmente, então o cinema era uma coisa cara pra isso. Pra experimentação não dá.
44:22
CLARA: Eu achei no acervo agora nesses anos que eu estou lá catalogando, duas pinturas do meu pai que eu nunca entendi, porque são duas pinturas baseadas em rótulos de cachaças. Uma chama-se Aguardente ( ) e agora você acaba de me esclarecer.
JOÃO: É porque a gente começou a mexer, a olhar muito esse negócio. Ia dar um projeto lindo, provavelmente, mas a gente fazia muito projeto. O Rubens mesmo, eu me lembro de ter pensado em várias coisas e que não/a gente ia desistindo, a vida era dura, havia menos dinheiro do que hoje, então tudo era muito sofrido, o Rubens aguentou uns soltos ali naquele Parque Laje, situações horrorosas porque quem ia pra lá eram os malucos, inclusive ele saiu zangado mesmo, porque, depois de você fazer/e era amante divertido porque ele era muito/o Gerchman tinha um humor enorme realmente, ele era muito engraçado, eu gostava muito dele, já os outros eram mais chatos. Antônio Dias virou um caretão, o monstro sagrado, depois o Roberto Magalhães era inviável, ficava lá com os budistas e o/qual era o quarto?
46:16
BERNARDO: Vergara.
JOÃO: Não, o Vergara é maravilhoso. É uma pena que o Vergara tenha/não, eram três.
CLARA: Tem a ( ) também.
ERNARDO: E no filme, o Pedro.
JOÃO: No Ver e ouvir não, no Ver e ouvir só tem três.
CLARA: Não, então na G4.
JOÃO: Eu sei que outro dia, outro dia não, eu estou velho então quando eu falo outro dia eu estou falando de coisas de trinta anos atrás, é verdade, você vai perdendo a dimensão do tempo. Outro dia, há uns quinze anos atrás eu fui ao Paço pra ver uma exposição que teve sobre esse período, que a gente chamava pop arte, chamava nova figuração, enfim, eu não me lembro qual era o título da exposição, mas era pintura, e de repente era um negócio tão bonito, mas tão bonito. Foi a mesma sensação que eu tive há dez anos quando eu fui ao Guggenheim, que estava em obra (...)
47:30
BERNARDO OU PEDRO: O que eu acho incrível quando a gente vai encontrar pessoas que estavam vivendo a efervescência dessa época é assim, o que aconteceu nesse momento histórico das artes pra que a coisa, não sei, ali foi um momento muito ( )
JOÃO: Você junta Bob Dylan, você junta Caetano, são momentos extraordinários, são momentos realmente/por exemplo, outro dia eu estava vendo uma entrevista do Antônio Candido falando sobre literatura, falando sobre Guimarães Rosa e ele diz assim: na minha época o que a gente tinha era Drummond, era Guimarães Rosa, só tinham grandes escritores, Graciliano Ramos. Épocas curiosas. E nessa época só tinha literatura, não tinha teatro, não tinha nada, então são momentos curiosos, datados, em que surge uma tendência qualquer que/eu tive a sorte de viver e de conhecer, quer dizer, a minha vida aventurosa de/a melhor coisa de fazer documentário foi ter conhecido certas pessoas. Eu conheci muita gente boa. Eu fui amigo das pessoas mais inteligentes do Brasil, tipo o Glauber, Darcy, é incomparável você conversar com o Glauber, porque o Glauber era muito mistificador, muito palhaço e muito metido, então/mas quando ele caía e ficava, ele era muito doente, doente fisicamente. Ele tinha dores de barriga, se dobrava assim. Ai às vezes eu dizia, vamos conversar sério, pára com essas bobagens, ai tinha umas conversas mais assim, chegando mais perto, então tinha gente muito inteligente e gente que você achava que prometia e não deu em nada, entendeu? Tinha o Jabor, que eu adoro, é meu amigo, mas... sabe? E tinha pessoas especialíssimas, eu conheci gente de primeira, inclusive gente de fora, Murilo Mendes. Fui a Cannes no último grande festival, que foi o ano de Morte em Veneza, era o vigésimo quinto aniversário do festival, lá estava Antonioni, Buñuel, Fellini, Visconti, Bertolucci, Susan Sontag, os Beatles, Rolling Stone, tudo junto, Bresson, e eu garoto, com vinte e poucos anos, circulando entre Cannes e Roma e conhecendo o Alberto ( ) e não sei o quê, é muito louco, entende? Eu não troco isso por nada, porque é experiência de vida, você fica/e realmente, afinidades antigas, tem algumas pessoas que você se dá bem imediatamente e outras você não se dá, então algumas vezes/fora coisas engraçadas e ridículas e perigosíssimas que você se mete. Eu fui lá, morri, vi o túnel, estive do lado de lá e tudo, mas descobri que a luz e tal que eu vi é a volta, claro. Quem vai mesmo não volta, então não pode contar que viu a luz. Meu coração parou, eu morri. Quando me ressuscitaram, o sangue volta a circular e você começa a ver fora de sincronismo, volta a visão, volta a audição, o túnel é esse lado do paraíso, não é o lado de lá, mas morrer é como desmaiar, sempre digo isso, então não tem grande problema.
BERNARDO: Como eu te falei, é conversa, a gente não vai perguntar nada, só memória mesmo, não é sobre a questão da arte em si, é uma questão mais ampla, da memória do Rubens. Primeiro assim, começar por perguntas mais simples, triviais. Queria saber como você chegou ao Parque Laje, quantos anos você tinha, quais eram as suas expectativas, em que ano foi que você apareceu aqui pela primeira vez.
LUIZ Ernesto: Eu vim pra cá em setenta e cinco, logo que a escola estava começando, final de setenta e cinco e eu tinha vinte anos naquela época e eu já tinha feito alguns cursos particulares de desenho e pintura, mas eu fazia na verdade faculdade de Engenharia, então eu acabei me dividindo muito, porque eu fazia aulas aqui e ao mesmo tempo fazia a faculdade. Acabei me formando, mas fiz a opção por arte, então entrei aqui bem no inicio da escola e na época a escola tinha muitos cursos e havia um curso básico, então eu entrei por esse curso básico. Era um curso que tinham vários professores, e era uma espécie de introdução, e eu fiz esse curso, fiz outros cursos, fiz gravura, litografia com o Antônio Grosso, que foi também uma figura muito importante na época, tinha uma quantidade de alunos muito grande, e só mais tarde, porque era um curso mais avançado, eu fui aluno do Gerchman, que dava uma oficina que chamava Cotidiano e Expressão, mas não era um curso básico, era um curso que você já tinha que ter passado por outros cursos, havia uma lista de espera pra entrar no curso, ele tinha uma conversa antes, com o aluno, pra saber se já estava no momento dele entrar, e ai eu entrei no curso do Gerchman e era um curso muito rico de opções, porque ele não tinha um tema específico, não era um curso de desenho, um curso de pintura. Era um curso que podia acontecer tudo. Eu lembro que era um curso que começava uma hora da tarde, duas horas, e não tinha hora pra acabar, às vezes acabava dez da noite, e cada dia era uma coisa diferente, você não sabia o que ia acontecer, eu acho que nem o Gerchman mesmo sabia, a coisa acontecia. Então às vezes era uma leitura de um texto, as vezes era uma discussão sobre um tema, uma questão qualquer de arte, as vezes uma aula de modelo vivo, havia um rapaz que fazia dança e teatro, que era o Marco, que era o modelo da escola e esse cara posava de vez em quando. Eu me lembro do Gerchman levando um livro de desenhos do Rodin, que eram aquarelas, com figuras e a gente fez uma aula inteira, mais ou menos baseado na maneira como o Rodin fazia esses desenhos, e a análise do trabalho dos alunos também acontecia, então era um curso muito amplo, que na verdade essa idéia do cotidiano era exatamente prestar atenção no que está em volta, não é buscar referências longínquas, mas as coisas estão ai, estão em torno, então as vezes uma notícia de um jornal, um anúncio de uma coisa, tudo podia virar matéria pra aula e eu acho que essa liberdade que ele tinha no curso meio que se refletiu no espírito geral da escola, porque você imagina, setenta e cinco era época de ditadura militar, era governo Geizel, então a existência dessa escola num momento de ditadura era uma anomalia, era uma coisa absolutamente imprevisível, porque essa escola era uma espécie de ilha de liberdade, cercada de repressão, da porta pra fora você tinha uma ditadura, e aqui dentro você tinha uma escola que tudo podia acontecer, então a idéia de escola livre não era só no sentido de que qualquer um podia entrar, não havia vestibular, não havia seleção, qualquer pessoa, qualquer idade podia estar aqui, mas era livre também no sentido de manifestação, de criação, porque era um período de repressão, de censura. Na saída da escola havia sempre um carro da polícia, da PM. Ficava ai vinte e quatro horas por dia e as vezes revistava alunos, então isso aqui era um lugar completamente inusitado nesse ambiente de repressão e de censura política.
05:12
BERNARDO: Você acha essa situação, ou seja, lá fora a censura e aqui a liberdade, isso colaborava para que os alunos ficassem (...)
PEDRO: Só um instante, só ajeitar aqui, um segundo.
BERNARDO: Essa situação, repressão e liberdade. Isso era um agente que colaborava para que os alunos ficassem, se quisessem ficar mais tempo dentro da escola, ou seja, que a vida fosse mais vivida aqui dentro?
LUIZ Ernesto: Sem dúvida, porque aqui era uma espécie de refúgio, porque não eram só artes plásticas, aqui era um lugar que poetas, pessoas da poesia marginal, me lembro de Tavinho Paes por exemplo, imprimi os livrinhos que depois vendia nos bares, numa pequena máquina de Off Set que tinha aqui embaixo. Filmes que eram proibidos, eu vi Limite, do Mário Peixoto aqui. Filmes que não podiam acontecer em lugar nenhum, tinha dança, música e isso fazia com que houvesse uma espécie de comunidade, porque mesmo em dias que eu não dia aula, por exemplo, eu ficava aqui, porque você encontrava pessoas, você trocava idéia, as vezes você assistia uma aula que não era o curso habitual que você fazia, as vezes tinha um artista visitando, palestra, então aqui era um lugar que quem lidava com meios de expressão de uma forma geral, vinha pra cá, inclusive como a escola fechava muito tarde, algumas pessoas chegavam a dormir aqui porque no dia seguinte começava tudo de novo, então isso aqui era um lugar realmente inusitado e pessoas realmente ficavam aqui o tempo todo. Tinha gente que chegava de manhã e ficava o dia todo aqui. Essa aula mesmo, do Gerchman, me lembro de sair daqui dez e tanto da noite, uma aula que começava uma da tarde.
07:12
BERNARDO: Então como era o Gerchman como professor, como educador, pedagogo?
LUIZ Ernesto: O Gerchman tinha um temperamento muito inusitado, porque as vezes ele estava meio estourado, meio esquentado, as vezes dava umas broncas, ele era bem rigoroso nas posturas dele, nas opiniões, mas ele era uma pessoa com uma bagagem muito rica de referências e as análises, as discussões sobre trabalhos de cada um, eram muito ricas, e quer dizer, pessoalmente, pra mim foi um curso essencial, talvez tenha sido o curso mais importante que eu fiz, porque todo o meu trabalho, a partir dessa data, na época eu estava começando profissionalmente, uma coisa ainda muito inicial, mas todo o meu trabalho foi marcado por isso, é uma maneira de olhar o cotidiano que surgiu nessa turma, nesse grupo do Gerchman do Cotidiano e Expressão.
08:18
BERNARDO: E você freqüentou quais outros cursos, você lembra?
LUIZ Ernesto: Eu fiz muita coisa, esse básico, que era um curso muito amplo, de vários professores, normalmente você começava por ele, mas eu fiz litografia, com o Antônio Grosso, durante muito tempo, e eu comecei inclusive a dar aula na escola nessa oficina, de lito, e fiz um outro curso também, que foi muito marcante, que foi o Roberto Magalhães, que dava um curso de desenho, então era interessante porque eram duas visões de mundo muito diferentes, o Roberto tinha uma visão meio esotérica, mística, fantástica, meio surreal, e o Gerchman, essa visão mais cotidiana, mais urbana, mais jornal, e os dois de uma certa maneira, eram dois lados de uma moeda. Uma visão onírica do mundo, e uma visão mais politizada, mais crítica, então eram duas abordagens bastante diferentes e foram dois cursos muito marcantes pra mim.
09:25
BERNARDO: Você, como hoje em dia você é professor e educador também, de certa forma, além de artista, como é que você via essa coisa dessa transformação, porque o que a gente estuda é que o Brasil sempre teve uma dificuldade muito grande de ser moderno do ponto de vista da educação de arte. Claro que você teve momentos que/nos anos cinqüenta, uma certa ( ) professores na Escola de Belas Artes, mas como você vê essa vontade do Gerchman de não negar o acadêmico mas ao mesmo tempo transformar tudo isso, trazer a contemporaneidade a tona. Você acha que isso foi uma primeira semente do que a gente pode chamar de pensamento de criação de uma contemporaneidade no Brasil?
LUIZ Ernesto: Eu acho que sim, porque aqui, antes da escola de artes visuais existia o Instituto de Belas Artes, o IBA, que era uma escola bastante acadêmica, bastante tradicional. Eu acho que a principal diferença é a experimentação. A escola acadêmica é uma repetição, você aprende ma coisa que já tem uma tradição e você fica lidando com essa tradição e o que o Gerchman implantou é a experiência, experimentar, quer dizer, eu acho que uma coisa que foi muito importante na escola é que ela, pelo que eu me lembre, ela não partiu de um projeto fechado. Não havia um projeto de escola, de artes visuais com começo, meio e fim, previamente definido, ela foi se fazendo, muito em função da diferença entre os artistas que davam aula e que freqüentavam a escola, ela não é um projeto acabado e eu acho que esse (speed) se manteve, quer dizer, ela passou por diversas direções, diversos momentos, e ela está sempre aberta pra reformular as suas propostas, as suas proposições, as suas áreas, os seus núcleos, o convite a artistas. Então eu acho que o grande mérito dessa escola foi o processo contínuo de reconstrução e de recriação e inclusive eu acho que o fato de ser nesse prédio, a forma arquitetônica do prédio favoreceu um tipo de escola. Imagina se essa escola fosse na Presidente Vargas, num prédio, ela teria sido uma escola completamente diferente, entã/esse pátio interno, que era o lugar do encontro, as pessoas de todos os cursos se encontravam ali, sentavam na beira da piscina, sentavam na cantina, ali era o lugar que as idéias eram trocadas. Alguns eventos coletivos, performances, filmes, aconteciam nesse pátio, então a arquitetura do prédio, eu acho que foi importante na maneira como a escola evoluiu, então eu acho que o grande mérito foi esse (speed) não acabado, essa coisa que até hoje é uma escola que está se fazendo, e ela se modifica, que é m pouco aquele espírito do cotidiano, cada dia é um dia.
12:48
BERNARDO: Você como artista e estudante, você, a sua experiência e o que você vi dos seus parceiros em volta, vocês eram preocupados com o resultado do trabalho de vocês ou vocês eram mais preocupados em realmente viver essa experiência?
LUIZ Ernesto: Essa época era muito diferente de hoje, em termos de sistema de arte, mercado de arte. Era uma época de ditadura, os períodos dos anos setenta eram muito marcados pela arte conceitual, que era uma arte mais complexa de ser entendida, nem sempre havia o objeto vendido, muito pouca galeria e na verdade eu me lembro, havia uma espécie de crítica ao artista que vendesse, então é uma coisa completamente oposta de hoje, hoje o mercado tem um poder enorme, você tem as feiras de arte, você tem uma quantidade enorme de galerias e é quase como uma meta do artista inserir o seu trabalho no mercado, e na época não, era uma espécie de resistência ao sistema, você não estar vinculado a uma venda imediata do trabalho. Eu me lembro, até nas discussões nas aulas, de surgirem críticas a um determinado artista porque tinha vendido, a exposição tinha vendido, isso era uma coisa horrível, o cara estava vendido ao sistema. E então havia também uma/essa idéia, o Gerchman chamava a escola de espaço de resistência, de vez em quando ele pregava umas etiquetas ai pelas paredes falando desse espaço, da resistência, então tinha um lado de um momento político especifico que meio que fazia com que os artistas tivessem certa postura em relação a isso e havia também esse romantismo, de você estar fazendo arte, e o importante era fazer arte, o que acontecia com o trabalho era quase que uma conseqüência, podia acontecer de você expor numa galeria ou não, mas o importante era esse processo, de você estar envolvido no meio desse processo de transformação, de criação, de invenção, quer dizer, era muito diferente, hoje você tem um lado muito pragmático da arte, vejo artistas aqui, alunos que ficam seis meses no curso e já querem fazer um Book, levar nas galerias. Naquela época nem se pensava nisso, tinham algumas galerias importantes, como a ( ), mas a gente ia nas vernissages, nas inaugurações, mas pensa em participar de uma galeria dessa era uma coisa longínqua, uma coisa que a gente imaginava – talvez aconteça lá na frente, porque eram galerias com nomes, Anna Bella Geiger, alguns nomes marcantes, você ia lá meio que com uma reverência as pessoas, então era muito diferente o ambiente e o momento de sistema de arte, o momento político, e tudo isso.
15:56
BERNARDO: Você está fazendo/vai (...)
PEDRO: Como vocês não faziam a produção de vocês pensando na galeria, o interlocutor que você estava pensava quando esta fazendo o seu trabalho era quem? Eram os seus próprios parceiros, colegas, amigos, o seu entorno?
BERNARDO: Era muito isso, era muito o entorno de um grupo, porque de certa maneira você tem certo público de arte, até hoje, de certa forma, você vai a diversas galerias, você encontra pessoas que freqüentam vários espaços, então você tem certo público mesmo, mais especifico, e na época era um pouco isso, havia exposições de alunos aqui, exposições coletivas, então lidar com a instituição era uma forma de você mostrar o trabalho e não estar exatamente dentro de uma galeria, ter um mercado envolvido, então você tinha alguns espaços, como o Museu de Arte Moderna, então tinha esse lado institucional também.
17:01
BERNARDO: Fazendo um pequeno esforço de imaginação, você me parece que chegou aqui, como falou, muito cru ainda, como artista. Você acha que teria sido diferente se você já tivesse uma formação anterior, mais acadêmica, como era a formação que existia na época para o que realmente foi, ou seja, você chegar cru aqui, ter o primeiro contato mais longínquo com educação em arte ter sido essa coisa tão experimental?
LUIZ Ernesto: Eu acho que sim, porque havia a Escola de Belas Artes, algumas pessoas faziam o ensino tradicional, acadêmico, que é uma escola que se modificou muito também com os anos, e havia uma separação muito grande entre a universidade e a escola de artes visuais, mas a minha formação não passou pela universidade em termos de arte, me formei em engenharia, então eu tinha feito cursos pontuais, cursos particulares em alguns ateliês, mas eu era muito novo, então uma coisa meio/eram cursos meio que pra adolescentes, e quando começo mesmo pra mim eu já tinha uns vinte e poucos anos, mas foi uma surpresa porque eu fazia uma faculdade de engenharia, que é uma coisa absolutamente pragmática, matemática, cálculo, aquela coisa toda, e chegava aqui e era completamente diferente, sempre acontecia uma coisa, nunca sabia exatamente o que ia acontecer, era sempre uma surpresa aqui dentro, então era uma posição, uma quase esquizofrenia muito grande, mas eu acho que/eu não sei como seria se eu tivesse tido uma outra formação, mas o impacto que eu tive foi dessa postura de vida que não vai em linha reta, que é meio sinuosa, que é meio invenção, cada dia pode acontecer uma coisa e você lidar com esse encontrar das coisas, você não está procurando, você esbarra com elas e a partir disso pode acontecer alguma coisa.
19:12
BERNARDO: Eu pergunto isso porque você de certa forma, a gente pode te chamar de a primeira geração dessa idéia de uma educação de arte mais contemporânea, mais artes visuais e menos belas artes.
LUIZ Ernesto: E é engraçado como na verdade ao longo do tempo a escola foi reafirmando um lugar dentro do ensino de arte que hoje em dia a gente tem muitos alunos aqui na escola que vem do mestrado e doutorado, quer dizer, pessoas que tem uma formação acadêmica, uma formação às vezes mais teórica, porque mesmo quando o artista tem o seu trabalho como assunto da tese, escrever uma tese não é exatamente fazer o trabalho, então aqui é um lugar do fazer, da experimentação, da discussão, a partir de um fazer, ou junto de um fazer, e a tese é você escrever sobre uma coisa que está sendo feita, o que é um pouco diferente, e muita gente que tem essa formação acadêmica hoje vem pra cá como uma complementação, então a escola meio que ao longo do tempo foi assumindo um espaço que na verdade não existia, porque era acadêmico de um lado e experimental do outro, hoje as duas coisas não são necessariamente opostas, elas podem se complementar, porque é importante que o artista tenha também uma formação mais teórica, uma bagagem mais densa, que a universidade pode dar, mas ao mesmo tempo manter esse espírito de experimentação, de ateliê, que é muito característico aqui do Parque Laje.
20:55
Bernardo: E tem uma característica/o Wilson Coutinho, no texto do Jardim da Oposição ele fala de uma/ele faz uma metáfora sobre esse ensino de arte no Brasil, que o ensino de arte tentando ser moderno no Brasil é como um lutador de boxe numa rinha de galo, de galinha, é a coisa do arcaico e ele tentando brigar nesse lugar do arcaico, interessante o Parque Laje ser esse lugar, não o arcaico ( ) meio colonial, de outro tempo, tem essa característica que se tentava buscar, enfim, foi só uma divagação minha, não foi nem uma pergunta pra você. Mas, voltando a essa época, você ficou aqui os quatro anos do período do Gerchman.
LUIZ Ernesto: Foi.
21:42
BERNARDO: Você consegue dizer se entre a tua chegada e a tua saída a vida na escola ela se transformava todo dia, você falou, mas do ponto de vista dessa questão política, se havia ou não pressões, se havia ou não mal estar, houve uma transformação, você sentia isso?
LUIZ Ernesto: Eu acho que cada diretor que veio, de certa maneira, representava um período e algum tipo de transformação. Eu não me lembro da escola ter tido nenhuma atitude ou projeto ou evento especificamente político, relacionado a ditadura militar, quer dizer, eu acho que a resistência que a escola mostrava era artista, a arte é política em essência, então o que acontecia aqui era uma resistência pela arte, pela liberdade, pela criação, pelas coisas que aconteciam aqui, mas não eram (...) ((barulho)). Deve ser o trator atrás do seu carro, estão procurando o seu carro.
23:10
BERNARDO: Então voltando, você estava falando dessa resistência, que a arte é ( )
LUIZ Ernesto: É, eu acho que a resistência que a escola propunha era uma resistência artística, e não fazer movimentos contra ditadura, vamos pra rua, fazer passeata, talvez o evento, que não era uma questão só política, foi na época do incêndio do MAM, ai realmente houve uma manifestação enorme, os alunos foram todos pra lá com faixas, a gente passou uma tarde aqui escrevendo as faixas, preparando os cartazes, ai foi realmente uma manifestação, mas era sempre no sentido da arte, então a resistência aqui eu acho que era no sentido da liberdade de criação, e isso se opunha a todo um ambiente político que havia, sem necessariamente, explicitamente fazer uma campanha contra/- vamos fazer manifestação política na rua. Era meio diferente, então nesse sentido, aqui dentro também funcionava meio como uma bolha, também não havia muita pressão, o que acontecia as vezes, eventualmente, quando acontecia alguma coisa aqui que era censurada fora e de vez em quando havia o DOPS na época, o Gerchman e alguns professores tinham que ir lá explicar porque o filme tal passou, porque tal evento aconteceu, eram coisas pontuais, mas que não chegavam a ser realmente uma repressão a escola, ou uma invasão a escola. Isso realmente não aconteceu.
224:51
BERNARDO: Você lembra de alguma história dessas?
LUIZ Ernesto: Não era nem uma/eram coisas pontuais que na verdade não tinham a ver exatamente com uma situação política. Aqui, como eu falei antes, era um refúgio, e tinham pessoas até que dormiam aqui, e eu me lembro de um rapaz chamado Valdo, era uma pessoa com problemas mentais, ele não falava coisa com coisa, era uma coisa meio incoerente, mas as pessoas davam uma ajuda, traziam comida, pagavam almoço, traziam roupa, e ele ia ficando ai, uma pessoa inofensiva, e como todos os desgarrados, os alternativos, as pessoas que não tinham muito lugar, vinham pra cá, aqui era o lugar disso, ele ficava ai, como outros também, e eu me lembro um dia que uma moça meio que se assustou com ele por alguma razão, não sei se ele falou alguma coisa, ou alguma coisa que ele fez, mas ele era inofensivo, mas ela se assustou e esses PMs que estavam aqui fora, que ficavam aqui, souberam que tinha um maluco aqui dentro, quer dizer, mais um, porque maluco eram vários, e ai a PM entrou aqui atrás do cara e ai foi uma briga geral aqui, todo mundo impedindo a PM de entrar, não podia entrar aqui, é uma escola, e ai na porta o Gerchman e vários outros professores, eu me lembro da Celeida, ( ) que eram os professores da época, peitando os PMs, uma discussão enorme, e havia um rapaz também que era um modelo aqui da escola, o Chicão, ai ele xingou um PM, o PM correu atrás dele, ai ele subiu lá pro terraço, o PM foi lá, ele de uma volta, trancou o PM no terraço, o PM dizia que ia dar um tiro no cadeado, ai ficou uma discussão danada, foi todo mundo pra delegacia e o Valdo desapareceu nessa, mas horas depois estava todo mundo de volta, foi uma coisa pontual, uma coisa muito específica, mas de vem em quando tinha esses atritos. Como eu falei, de vez em quando os alunos eram revistados por esses PMs, então isso era fruto de um ambiente político, estava sempre pairando em torno, mas não chegava a realmente entrar aqui na escola.
27:22
BERNARDO: Tinha essa coisa também da questão moral, que – ah, porque lá se fuma maconha, lá tem gente pelada (...)
LUIZ Ernesto: E tinha tudo, aqui era/a idéia da liberdade é isso, rola tudo, não tem limite.
27:37 CLARA: Ele falava muito que quando chegou ao MAM depois do incêndio, evidentemente, você olhar aquele museu cinza, tudo cinza, o choque, esse impacto, e ele tinha uma obra lá na coleção de lá do museu nessa época, que era a obra Lute, e essa obra pegou fogo, e além dela ter pego fogo, como ela era uma escultura, ela ficou impressa na parede, o Lute, queria saber se você tem essa memória, por acaso.
LUIZ Ernesto: Não, eu não lembro. Bonita essa história.
CLARA: É. muito linda. Podia ser, vocês podiam ter se deparado com essa (...)
LUIZ Ernesto: Mas eu não me lembro. Realmente não me lembro.
28:25
BERNARDO: Você foi a passeata?
LUIZ Ernesto: Fui, fiz faixas.
BERNARDO: Como era esse dia da passeata?
LUIZ Ernesto: A escola se juntou a outros grupos, não era só a escola, porque praticamente toda a classe artística de modo geral estava lá, porque foi uma tragédia, aquele cheiro de queimado, aquele destruição toda, então um visual, uma situação horrível, mas e me lembro do Gerchman organizando o pessoal todo, mobilizando os alunos, pra gente fazer esses cartazes, essas faixas, e ai fomos todos lá, marcamos uma hora e fomos todos pra lá, e gritos, palavras de ordem, aquela coisa toda pra chamar atenção para tragédia que tinha acontecido. Só o que se perdeu de obras ali é incalculável.
29:16
BERNARDO: Naquela época, parece que havia, não sei, eu não vivi a época, mas me parece que havia entre vocês, sejam alunos e professores, uma preocupação muito grande com o debate, porque isso aqui não era uma comunidade hippie, isso aqui era uma escola de gente preparadíssima também, então, por que você acha que tinha naquela época esse espírito, você acha que realmente tinha mais debate?
LUIZ Ernesto: Não, eu acho que/não sei, na época tinham pessoas muito marcantes, com personalidades, eu lembro, por exemplo, a Lélia Gonzalez, era uma figura fortíssima, dava antropologia da arte, eu fui aluno dela aqui e ela às vezes falava sobre Lacan, imagina, um garoto de vinte anos, e ela discutindo questões, lógico, num nível que a gente pudesse pensar, mas era um figura muito forte, uma outra pessoa, que dava sociologia da arte, era o Avatar Moraes, um grande escultor, uma pessoa seríssima. Eu acho que era uma época muito em cima desses nomes, o que o Gerchman talvez tenha marcado muito a gestão dele foi a personalidade de cada professor, cada um era um universo. Você tinha um Dionízio ( ) que era um ícone, uma pessoa que todo mundo reverenciava, então eu acho que essa discussão era muito fruto também das personalidades, então você assistir essas aulas era quase um evento. A aula da Lélia Gonzalez era uma aula lotada, era no auditório, lotado de gente, então não é que fosse exatamente o momento propício pra discussão, a discussão sempre esteve na escola, teve aulas teóricas como tem até hoje, mas essas pessoas eram muito marcantes, então as pessoas vinham também pra ouvir essas pessoas falando. Eu acho que isso tem um peso forte na época.
31:23
CLARA: O Gerchman evidentemente pensou muito, entendeu, estudou e pensou na Bauhaus, na Black Mountain, enfim, ele sabia dessas escolas e evidentemente pensou nelas, mas você acha que isso chegava, que vocês chegavam, os alunos, quer dizer, estruturou-se o pensamento da Escola de Artes Visuais do Parque Laje, isso transparecia ( ) experiências de escolas no mundo?
LUIZ Ernesto: Eu não sei avaliar se isso realmente transparecia de uma forma assim muito óbvia, mas/como a arte é essencialmente histórica, eu me lembro/o fato do Gerchman trazer pras aulas textos teóricos e debater certas questões, havia realmente uma questão histórica, você não pode soltar um momento de um contexto, de um passado, de toda uma herança cultural e artística que cada época recebe. Eu acho que a transformação e a invenção, ela não é aleatória, ela vem a partir de experiências vividas, a partir de momentos vividos, mas adaptando a situações locais e do momento, então eu acho que certamente o Gerchman sabia dessas coisas, mas você imagina, enquanto nos anos setenta você tem pop arte, você tem uma certa exaltação de um mundo consumista nos Estados Unidos, aqui você tem uma ditadura. Mesmo a idéia de pop no Gerchman, visualmente a gente percebe uma coisa, um víeis pop. Mas não é pop, porque é um trabalho mais político, um trabalho crítico, enquanto a pop era uma exaltação do consumo, então você tem uma diferença grande. Eu acho que isso é a bagagem, você não fecha o olho pra historia, não fecha o olho para um ambiente que ultrapassa questões pessoais, são questões que pertencem à história, mas ao mesmo tempo você também está ligado a questões locais e do momento. Eu acho que desse encontro é que a arte pode ser produzida, e acho que nesse sentido ele certamente trouxe essa bagagem pra cá.
33:59
BERNARDO: Voltando aqui, havia repercussão fora da cidade do que acontecia aqui dentro? Nas famílias, nas casas, nos outros espaços de pintura, como era a repercussão da vida de vocês aqui dentro, pra fora daqui?
LUIZ Ernesto: Eu não sei avaliar como um todo, é lógico que a gente está falando de uma época sem internet, sem computador, sem celular, a velocidade da coisa não era como hoje, que tudo acontece no mesmo momento, então isso também favorecia certa lentidão, comparado com hoje, como a informação circulava, mas havia também um olhar muito preconceituoso em relação a escola, aqui era o lugar da maconha, era o lugar da loucura, só tem maluco no Parque Laje, e durante muitos anos, até depois da gestão do Gerchman essa imagem meio que grudou na escola. Eu me lembro de, anos depois da gestão do Gerchman, eu já era professor daqui e pais vindo com filhos aqui porque ficavam com medo de matricular o garoto aqui, então vinham ver como era essa loucura aqui pra ver se podiam deixar o filho freqüentar essa escola ou não, porque aqui era um lugar de maluco, então a repercussão no publico em geral era muito dúbia, pessoas que tinham alguma ligação com cultura, com arte, isso aqui era “o lugar”, mas para uma grande maioria das pessoas isso era um lugar pra ficar com o pé atrás, porque só tinha maluco, então a repercussão é meio dúbia, meio ambígua.
35:46
BERNARDO: Você lembra do/você chegou a assistir, provavelmente você veio aqui no Verão a Mil, nesses shows, você veio aqui espetáculo, nas performances do Helio Eichbauer, como elas eram, as performances, o Verão a Mil, você consegue descrever mais ou menos um pouco dessas situações?
LUIZ Ernesto: Eu me lembro mais de algumas performances do Helio, porque ele dava uma oficina chamada Pluridimensional e era muito interessante porque de certa forma, você imagina, já nos anos setenta ele já antecipa um hibridismo na arte que marca muito a produção atual, você tem muitos artistas/de certa forma o trabalho que eu faço lida um pouco com isso, que mistura meios, meio pintura, às vezes lida com impressões e objetos, as coisas não se encaixam em categorias muito definidas e eu me lembro de performances e intervenções no espaço, me lembro de uma intervenção com fios, não me lembro se era lã, mas eram fios coloridos aqui no pátio, que vinham lá do terraço, vinham aqui embaixo e havia toda uma movimentação, o grupo do Helio fazia uma espécie de dança, de performance, havia um tablado na piscina, isso era feito ali no pátio, todo mundo assistia, inclusive pessoas de outro curso, então eram eventos muito fortes, muito marcantes. E é engraçado, o que eu mencionei antes, as aulas de modelo vivo que às vezes aconteciam no Gerchman e esse ambiente, esse tipo de postura, eu me lembro que às vezes o modelo da aula se mexia como uma dança, quer dizer, era um modelo vivo mesmo. Era até interessante a gente tentar desenhar um cara que estava dançando. Eu acho que isso é fruto desse ambiente de corpo, de sensações, que esse tipo de proposta coletiva propunha, acontecia.
38:06
CLARA: Você contou que nessa sala teve uma intervenção linda com as folhas, você pode contar um pouco (...)
LUIZ Ernesto: Isso também era o inicio, eu acho que era início de ano, eu não me lembro exatamente o período, mas era uma espécie de aula inaugural, uma performance, um show, que era o início do curso do Gerchman, então já tinha um grupo que ele já tinha conversado, que meio que formava a turma de ele, e ele fez um evento aqui nesse salão. O salão era todo coberto de folhas, folhas secas, foram catadas ai no jardim, então tinha um tapete de folhas aqui, todo mundo sentado, mas lotado de gente, e o Gerchman fazia todo um movimento com uma tela branca e ele tinha amarrado uns elásticos na tela, grudado no elástico tinha uns pigmentos, e ele esticava o elástico, batia na tela e criava umas linhas, e ia formando umas linhas na tela com esse elástico. Tinha toda uma coisa de corpo, de movimento, então era um evento assim, era uma coisa coletiva, não era restrito a alunos dele, tinham convidados, artistas que vinham pra assistir e era mais um evento coletivo, todo mundo participava do momento, as luzes eram mais escuras, isso criava toda uma atmosfera mais silenciosa, meio de reflexão, e foi um evento muito bonita na verdade, plasticamente até.
39:39
BERNARDO: Você descrevendo essa cena vem muito essa questão do meio, do meio de produção, porque me parece que a época era época de precariedade, mas sem ser pejorativa a idéia de precariedade, e também de ter muita dificuldade, e porque era caro também, porque o meio de produção sempre foi uma coisa cara, de certa forma. Você acha que essa necessidade de superar era uma característica que incentivava as pessoas?
LUIZ Ernesto: Eu acho que sim. Eu acho que tem várias razões. Quer dizer, a escola durante praticamente a história dela inteira, ela foi muito precária em termos de estrutura, de dinheiro, de verba, hoje ela está muito diferente, então havia um improviso muito grande, você tinha que superar as dificuldades. Eu fui diretor muitos anos depois e eu senti na pele como era isso. Você tinha que de repente conseguir uma infra-estrutura para algum artista convidado fazer uma palestra, e até pra conseguir uma extensão de fio elétrico, muitas vezes você tinha que pagar, você vai lá e compra, então esse improviso era uma característica da escola, a escola tinha que se reinventar a cada dia. E além disso, eu acho que tem, se a gente comparar com o que acontece nos anos oitenta, depois do Gerchman, anos setenta ainda há uma influencia grande do que acontecia no momento da ditadura, que era uma certa ênfase na arte conceitual, nos anos oitenta você vê um ressurgimento da pintura, então é o momento que você começa a ter/aparece com mais evidencia um certo meio, enquanto que a arte conceitual não era um meio, não era uma técnica, eram procedimentos dos mais variados, então mesmo quem pintava, que é o caso do Gerchman, fazia outras coisas também. O Gerchman pintava, mas tinha escultura, tinha objetos, tinha o Lute, então isso acontecia com a maioria dos artistas, então eu me lembro que a partir dos anos oitenta a escola foi muito marcada pela geração oitenta, uma escola de pintura. Nessa época não tinham muitos cursos de pintura, porque o curso do Gerchman mesmo, que era um curso muito forte na escola, era de tudo, não era um curso especifico – vou fazer desenho ou vou fazer pintura, era um curso um pouco de tudo, e isso era uma característica da escola, as pessoas faziam gravura, mas também faziam fotografia, então não havia essa característica que a partir dos anos oitenta a arte vai ter, de privilegiar um certo meio, até por influencia de mercado, mas nessa época não, então acho que tem esses dois aspectos.
42:48
CLARA: Ele foi “saído” em março de setenta e nove e a gente vê que o próximo diretor, o Breitman, ele assume no final do ano, apenas. Como é que foi, porque havia já uma programação pensada, estruturada pra esse ano letivo de setenta e nove, e isso não está claro, houve esse ano? Como foi?
LUIZ Ernesto: Eu me lembro o seguinte/porque geralmente o diretor aqui, ele segue o Governo do Estado, então ele tem um período de gestão, ele é nomeado, é um cargo de confiança, durante um período de governo. Quando termina o período de governo, em princípio um novo diretor é nomeado, pode acontecer do mesmo diretor ser renomeado e ai ele continua. Eu lembro que inicialmente o Gerchman sabia que ia sair, porque era isso que era, era assim que era, mas eu me lembro que muita gente também queria que ele ficasse, me lembro dos alunos todos, foram falar – poxa, vai interromper o curso, vai acabar esse espírito. Ninguém sabia quem vinha, o Rubem Breitman ninguém conhecia, então havia um momento muito de certeza - e agora, o que acontece com essa escola? E começou a ter muita gente procurando o Gerchman, pedindo pra ele ficar, e eu acho que num certo momento o Gerchman sabia que ia sair, mas ele achou que poderia ficar, eu acho que ele até gostaria de ter ficado mais, mas ai são questões políticas, a gente nunca sabe o que realmente está por trás das coisas, e ai o Rubem Breitman entrou no final de setenta e nove, mas ouve um gap, porque muitos artistas que davam aula aqui estavam aqui por causa do Gerchman, eram amigos dele, eram pessoas que gostavam dele, e muitas pessoas se sentiram solidárias a ele e saíram, então esse ano de setenta e nove foi muito complicado porque a escola ficou vazia, não tinha curso, não tinha professor, não tinha praticamente aluno, porque as pessoas tinham saído, os cursos tinham acabado, os nomes importantes da escola tinham ido embora com o Gerchman, então houve um gap muito grande, então levou um tempo pra escola se reestruturar, o Breitman mesmo levou um tempo pra entender o que essa escola foi. Me lembro, na época ele chamou o ( ) que era diretor de teatro e ai a escola começou novamante a tentar se rearrumar, convidar pessoas pra substituir os professores, ai começaram a entrar alguns pintores, Luís Áquila, o Charles Watson, que eram essencialmente professores de pintura, ai começou uma semente que vai futuramente interferir na geração oitenta, que foi basicamente de pintores, mas o ano de setenta e nove foi muito complicado, porque eram incertezas, ninguém sabia, o Gerchman tinha ido embora, ele era a cabeça, o coração da escola, e ai, o que acontece? Quem é a pessoa que vem?
46:13
CLARA: Você ficou?
LUIZ Ernesto: Eu era aluno até setenta e nove e ai eu fiquei meio sem saber, eu estava me formando na faculdade, engenharia, e falei: - e agora? Será que eu vou fazer estágio? Vou ser engenheiro? Mas eu não queria, eu queria ficar aqui, e ai por acidente, por uma sorte, o Antônio Grosso, porque alguns professores eram do Estado, não eram simplesmente convidados, o Antônio Grosso, Celeida Tostes, ( ), eram pessoas do Estado, então elas não podiam sair, porque eram funcionários, então esse grupo ficou aqui, como professores, porque eram pessoas do Estado, e eu era aluno do Antônio Grosso, e eu me lembro, na época uma professora de lito, era até uma professora americana, Susan, ela estava saindo da escola, e o Grosso, eu me lembro, perguntou: - você quer pegar essa turma? Porque tem um horário vago, você fica orientando um grupo, meio que nesse espaço que ela está deixando. E ai eu comecei meio que como assistente dele, dando aula de lito, até que quando eu conheci o Breitman, o ( ), estava naquele período de reestruturação, isso já oitenta, oitenta e um, por ai, eu resolvi apresentar um projeto de curso de desenho. Eu já dava aula de lito, e ai o Breitman aceitou o projeto, ai que eu comecei realmente a dar aula pra valer, e ai fiquei até hoje, quase quarenta anos.
48:00
BERNARDO: A gente vê no filme da época que foi feito aqui dentro, dentro da oficina de cinema, O morto do exílio, sobre o Frei Tito, teu nome aparece nos créditos.Você foi ator do filme?
LUIZ Ernesto: A gente fez umas figurações, tinha algumas cenas que foram gravadas aqui embaixo, que era um bar, se não me engano, e agente ficava numas mesas ali fazendo a figuração, eu era figurante do filme, eu aparecia assim, meio/e eu lembro também de uma coisa engraçada, eu não lembro que cena que era do filme, mas a produção tinha que gravar barulho de passos, pessoas correndo, e ai eles chamaram uma galera da escola pra correr aqui no pátio, e quando eles gravavam o som/e eu me lembro de fazer várias vezes a cena, me lembro de Celeida correndo pra gravar o som, pra inserir lá no filme, fazer a parte sonora do filme, mas a minha participação foi de figurante.
49:12
BERNARDO: Que outras iniciativas artísticas além da pintura, do desenho e dessa figuração, você andou fazendo na época, você lembra?
LUIZ Ernesto: Não me lembro assim de tudo, porque tinham essas coisas coletivas que às vezes eram efêmeras. Eu me lembro, por exemplo, que fui numa aula muito bonita que o Gerchman fez, a gente fazia um desenho gigantesco, uma bobina de papel craft enorme que ele abria sobre esse tablado aqui em cima da piscina e a havia um modelo que, geralmente era esse Marco, ele dançava, era um cara muito forte, do teatro, e a gente usava um bambu, uma madeira com um giz, um lápis amarrado na ponta, e a idéia era fazer desenhos enormes, segurando esse bastão, então tinha toda uma coisa de movimento, você desenhava com o corpo inteiro, você vai fazer uma cabeça enorme, você tem que se mexer, não é um pulso, não é um braço que está desenhando, é o teu corpo, e isso foi feito em grupo, era um trabalho coletivo, cada um ficava ao lado do outro, uma fileira de pessoas desenhando, o cara dançando ali na frente e a gente desenhando com esse bastão e esse lápis amarrado na ponta, então acontecia umas coisas assim, que começava e acabava. Não era assim: ah vamos expor, não, não tinha nada o que expor, isso era um momento, era aquele instante. Hoje vai rolar isso, então vamos lá, e a gente fazia.
50:56
BERNARDO: Você não ficou se perguntando, será que eu viro cineasta, será que eu vou trabalhar com cenografia, será que eu vou fazer outras coisas, ou você sempre ficou ali, você sempre esteve mais focado ali na coisa da pintura e do desenho mesmo?
LUIZ Ernesto: Inicialmente eu era muito desenhista, meu inicio foi no desenho, e eu era aluno também do Roberto Magalhães, que era mais focado no desenho, embora não exatamente numa técnica de desenho, desenho de um modo gera, e eu gostava muito de desenhar, eu fazia lito, que é basicamente desenhar sobre a pedra, então durante muito tempo a minha atuação era realmente com desenho, era um meio que eu tinha facilidade e gostava de fazer, então nesse momento eu realmente não pensava em fazer outra coisa, eu achei que eu ia realmente trabalhar só com desenho, mas você nunca sabe pra onde o trabalho vai te levar e depois veio a pintura, veio trabalho com fibra de vidro, resina, fotografia, que é o que eu faço hoje, e quando eu olho em retrospecto é como se o que eu faço hoje fosse uma síntese de tudo o que eu fiz antes, e de repente as coisas se juntam. Eu usava a fotografia como base pra desenhar, pra copiar, e de repente eu uso a própria foto, e um dia cai a ficha: por que eu estou copiando a foto e não uso a própria foto? Ai um dia as coisas se encontram, se juntam, mas elas vem dali, vem dessa semente, desse período.
52:28
CLARA: Você fez a oficina do ( ) de fiberglass?
LUIZ Ernesto: Não, o ( ) mandava essa oficina, me lembro de coisas que ele fazia aqui no terraço, moldava coisas com terra e areia, mas eu não fiz essa oficina, fui trabalhar com fibra de vidro muitos anos depois, depois dos anos oitenta, e eu fui aprender com um engenheiro que dava cursos técnicos, não tinha nada a ver com arte, mas nessa época eu não cheguei a fazer o curso do ( ).
52:57
CLARA: Você sabe, por acaso, quem fez a logo da EAV, aquela logo original, sabe qual é? São as listrinhas.
LUIZ Ernesto: Olha, eu não tenho certeza de quem fez a logo, mas ( ) era uma professora de desenho, ela dava modelo vivo, acho que é até uma professora interessante pra se conversar, e ela fazia todos os cartazes da escola, fazia uns cartazes lindos, por que ela fazia uma espécie de recorte vazado em cartolina preta e branca, era uma espécie de colagem, todos feitos a mão, eram quase que peças únicas, e ela fazia cartazes pros cursos, ela fazia cartazes pros eventos, ela fazia os cartazes das exposições, então esses cartazes eram quase que peças únicas, eram geralmente cartolinas pretas em que ela recortava formas e palavra, aquelas letras de forma, ela ia cortando e sobre um papel branco, as vezes entrava uma cor pontual, então eu não sei, pode ser que ela tenha tido alguma participação, mas eu não tenho certeza.
54:16
BERNARDO: A gente tem uma discussão, voltando também a esse tema dessa arte conceitual, essa arte sem objeto, a gente tem uma discussão que, o primeiro contato que você tem com a historia do Parque Laje, do Gerchman, você olha e fala: o Gerchman parou de ser artista pra ser educador. Você é artista e educador também, você tem o seu trabalho de arte e seu trabalho como professor também. A gente estava discutindo isso outro dia, pra esse período ser um período onde a forma e o objeto de arte não era a coisa mais importante, se você acha que existe essa separação, entre esse artista e esse educador e se vocês acha que talvez o Parque Laje em si não era uma obra de arte pro próprio Gerchman, ele funcionava como um trabalho de arte. Eu queria que você comentasse isso.
LUIZ Ernesto: Eu nunca pensei no Gerchman e nos outros artistas como tendo parado de ser artista pra ser professor, eu acho que isso é uma característica inclusive de hoje também, isso é uma semente que ele plantou, mas que na verdade é uma característica da escola. No meu caso, por exemplo, eu só sou professor porque sou artista, não tenho formação como professor, e eu acho que é o caso do Gerchman também, quer dizer, ele não tinha uma formação – vou fazer um curso universitário de pedagogia. Ele é um artista, por isso ele fez o que ele fez. Eu me lembro inclusive de aulas de modelo, estou falando dessas aulas porque ele fazia junto, ele desenhava junto, então ele não era aquele professor que ia na sala e explica tudo e os alunos recebem aquela explicação e vão fazer, ele estava ali fazendo, errava também, as vezes embolava, jogava fora, as vezes irritava, as vezes estava legal, ele fazia junto, então eu acho que eu a característica dessa escola, é que todos os professores, inclusive os professores teóricos, que não são artistas, mas são críticos e curadores, eles tem uma atuação na arte como um todo, não são professores de arte, não são professores da escola, eles são professores porque eles tem essa atuação, e principalmente da parte prática, eu acho que isso é uma característica, todos os professores da parte prática são artistas e tem uma atividade como artista, uma carreira como artista, e isso que dá respaldo para o que eles fazem como professor.
56:39
BERNARDO: Por mim eu estou achando tudo maravilhoso, poderia ficar conversando com você quarenta horas, mas eu queria te fazer uma pergunta até meio conclusiva. Eu sei que é um tema difícil, polêmico. Será que é possível separar o homem do artista, a gente separando, tentando separar, pro homem Luiz Ernesto, o que é que ficou desse momento, desses quatro anos?
LUIZ Ernesto: Eu acho que minha vida como artista e pessoalmente também, porque as coisas não se separaram, eu acho que foi definitivo pra mim. Eu estou há quarenta anos aqui, é um lugar que eu entrei e não saí mais, continua sendo o meu mundo. Eu tenho uma carreira que sempre foi vinculada a escola, eu fui aluno, sou professor, fui coordenador de ensino, trabalhei com outros diretores, fui diretor durante cinco anos, então eu passei por todas as situações, todos os cargos, então para mim o Parque Laje é um extensão da minha vida, minha casa, é o lugar que foi absolutamente definitivo, lugar que eu encontrei amigos, eu tinha uma interlocução com pessoas, até hoje, pra amigos dessa época, que eu ainda encontro de vez em quando, então essa semente que foi plantada pelo Gerchman na verdade foi a semente da minha vida, o que aconteceu depois foi fruto do que acontece aqui. Essa separação do professor e do artista pra mim nunca existiu, até hoje ela vem junto, nunca houve essa separação, eu não me imagino fazendo só uma coisa ou outra.
((barulho))
BERNARDO: Voltamos a ter esse pequeno probleminha.
CLARA: É o trator.
BERNARDO: É o trator, né? ( ) não botou ele em outro lugar perigoso não, né?
LUIZ Ernesto: Eu acho que ele está procurando o seu carro.
58:49
BERNARDO: Voltando então, se você puder tentar repetir essa idéia da semente, só porque a gente (...)
LUIZ Ernesto: Eu acho que essa semente da verdade marcou toda minha carreira, toda minha vida, começou ai, porque eu nunca pensei na minha atividade como artista, separá-la da minha atividade como professor. As duas coisas vieram juntas, uma justifica a outra, e eu só me imagino atuando em arte dessa maneira. Eu tenho uma interlocução que sai do meu ateliê, que é a possibilidade de você estar lidando com trabalhos que não são seus, que apontam para caminhos completamente diferentes do que você faria pra você, e isso é uma forma de você se alimentar, há um vai e vem, eu posso dar alguma coisa como professor, mas eu recebo também, eu levo também, então de uma certa formar isso alimenta o meu trabalho como artista, então essa separação pra mim nunca houve, eu acho isso uma característica aqui da escola, e a semente disse estava lá no Gerchman.
59:56
BERNARDO: Eu acho que a gente concluiu coisas importantes ou pode concluir, mas agora eu quero que você me fale uma coisa que não tem importância, que não vai deslegitimar, fingir que vai desligar a câmera. Me conta o que era o lado B.
LUIZ Ernesto: O lado B, porque havia eventos aqui muito loucos, os shows, os shows de música, era uma época/um resquício meio hippie, todo mundo cabeludão, amor livre, então rolava muita transa, nesse terraço o que tinha de sexo, sexualidade, aquela coisa, rolava muito, transas, todo mundo subia no terraço pra fumar seu baseado, professores e alunos, então tinha um lado de transgressão que era muito da época também, e isso é feito como resistência, tudo o que não pode é a favor, se o sistema não deixa, então é ai que a gente vai fazer, então isso faz parte daquela época do momento, mas tinha essas loucuras aqui, dormir aqui, você dormindo dentro de um prédio público, dentro uma escola, ai tinha transas, dentro das oficinas, tinha tudo ((risos)).
1:01:18
BERNARDO: Mas, sem citar nome, tem alguma história que você lembre? Que fale assim: - caraça, essa cena foi forte. ((risos))
LUIZ Ernesto: Tem cenas muito engraçadas. Eu falei desse maluco, que a PM entrou. Quando liberaram os professores/esse é o restante da história que não contei. Quando liberaram os professores, porque em uma ou duas horas depois estava todo mundo de volta, mas o Gerchman ficou preocupado porque poderia haver uma blitz na escola, porque os PMs tinham ficado irritados, ninguém ficou preso, e era sempre esses PMs que estavam aqui, então ficou um clima, e o Gerchman ficou preocupado que houvesse uma invasão de fato, como acostumava acontecer em outros lugares, e houvesse uma blitz aqui dentro, e tinha fumo, na época tinha ácido, anos setenta, coisa de ácido, e eu me lembro que o Gerchman reuniu aqui no final da a tarde, já escurecendo, a galera que era mais assídua, alunos dele, pessoas que ficavam aqui o dia inteiro, que vinham de manhã e ficavam até de noite, havia um grupo que praticamente vivia aqui dentro, e fez uma reunião pra gente limpar os armários de todas as drogas, os fumos, os baseados, os ácidos, porque a polícia podia invadir e se encontrasse isso prendia todo mundo e fechava a escola, e eu me lembro que o problema/ai todo mundo trouxe os seus acessórios, pra botar dentro de um saco, pra se livrar, mas como é que ia sair, o PM estava ali fora, quem ia levar pra fora? Aluno podia ser revistado, professor também, já estava esse clima, ai resolvemos chamar um funcionário da manutenção, muito antigo, que inclusive na juventude havia sido jardineiro da Besanzone, que se chamava Ladislau, era um cara grandão, gago, e eles não revistavam funcionários, eram os únicos que passavam, entravam, saíam, e eles não davam a mínima, então chamou-se o Ladislau porque ele é que era encarregado de sair com aquela bagulheira toda, e foi assim que foi feito, quer dizer, ele foi o cara que saiu, passou, ninguém revistou e a gente deu uma limpada na escola. Não houve a invasão, mas houve esse momento engraçado, todo mundo ali tentando – o que a gente faz agora? Então são essas histórias.
01:04:08
BERNARDO: Posso fazer mais uma perguntinha agora, fiquei curiso.
PEDRO: Eu tenho uma. Onde é que foi parar a sacola?
LUIZ Ernesto: Eu não sei.
((todos falando ao mesmo tempo))
BERNARDO: Só vou fazer mais uma perguntinha rápida, mas é um tema polêmico, e se você não quiser responder, achar que a pergunta não tem nada a ver. Como era essa coisa droga na época, havia uma romantização de que a droga fazia parte do processo criativo?
LUIZ Ernesto: Havia, havia uma coisa romântica sim, porque hoje você tem outro tipo de droga, ecstasy, crack, na época a coisa do ácido tinha todo um lado meio místico, de ter visões, e aquele Castañeda, que você tinha revelações, então tinha um lado romântico sim nisso, de que a droga não era só uma coisa de fuga, era uma coisa que podia propiciar inspirações ou contatos com certas dimensões, então tinha sim uma coisa romântica nisso.
BERNARDO: Você consegue dizer se ela realmente, de alguma forma, trabalhou pro bem ou pro mal no processo criativo?
LUIZ Ernesto: Eu acho que isso depende muito de cada um, não tem uma forma geral, eu acho que algumas pessoas acabaram se dando mal, também não é achar que foi tudo legal, não foi. Teve tempos aqui, posteriores ao Gerchman, nesses shows, por exemplo, caiu um cara lá de cima e o cara morreu porque estava doidaço, então teve o lado ruim também, esse rapaz que eu falei, o Valdo, ele tinha problemas mentais, mas era muito por causa de droga também. Tinha o lado romântico sim, mas tinha o lado de pessoas que se perderam nisso, que foi mal.
CLARA: Foi ótimo, obrigada.
LUIZ Ernesto: Ainda bem que eu lembrei de (...)
BERNARDO: Você lembra de mais alguma coisa, quer fazer alguma (...)
LUIZ Ernesto: Não, eu acho que é isso, lembrei de coisas que eu não pensava há tanto tempo.
BERNARDO: Então estamos fechados.
LUIZ Ernesto: Agora, procura o Seu Omero, estava falando pra ele, o eletricista aqui na escola hoje ainda, ele era o eletricista na época do Gerchman, ele fez o show, ele fez a iluminação.
LUIZ Ernesto: O Xico Xaves falou o nome dele.
LUIZ Ernesto: O Xico Xaves era o produtor e ele era técnico e até hoje ele é o eletricista na escola e ele sabe de milhões de histórias do lado B. Ele é o cara dos bastidores.
BERNARDO: Ele está aqui agora?
LUIZ Ernesto: Deve estar, tem que perguntar ali pra/pergunta pra Ana, a segurança, se o Seu Omero está ai. Ele é um cara (...)
BERNARDO: Me conta como você entrou no enredo no Parque Lage, dentro daquela floresta?
ROSA MAGALHÃES: Eu entrei no enredo pra lá? Não, eu entrei da seguinte forma... fui convidada para dar aula lá e aceitei. E aí fui dar aula de Desenho, eu acho. Depois dei aula de Cor, depois dei aula de Indumentária. Cada hora eu dava aula... Pedia, eu dizia, “eu mudo”. Porque lá no Fundão você ficava como xadrez cada hora você ia pra um... eu era do Departamento de Artes Aplicadas. E o Parque Lage era uma maravilha, porque você chegava lá você se desliga de tudo. Era um oásis, e era uma época em que os cursos eram grátis. Então, você tinha uma frequência muito grande, às vezes tinha que fechar, dizer “olha, não cabe mais gente”. Foram mudando essa política, não sei por quê, qual foi a... porque eu acho que quanto mais curso de Arte, melhor. E o que eu acho que o Gerchman tinha de mais avançado dessa parte da didática, que eu acho que era um pouco intuitiva, é que ele não tinha prejulgamento. Então, se tem uma pessoa ensinando a desenhar só caneca e xícara, é porque deve ter um público que quer aprender a desenhar caneca e xícara. Então, eu até disse para uma amiga minha, eu acho que se chegar alguém aqui dizendo que decora bolo, ele vai achar interessante. Porque vai ter um público interessado nisso. Eu acho que é você ter a cabeça aberta, sem estabelecer critérios de julgamento. Você não julga. E teve uma aula que foi muito engraçada que é o que hoje se faz em alguns lugares, assim, que é todo mundo junto com as atividades mais diferentes, um desenha, o outro pinta, e o outro recorta, e o outro cola e etc. tudo junto, dando aula junto. Foi assim uma coisa muito engraçada. Porque ele disse hoje em vez de eu ficar dando essa aula era todo mundo para o lado de fora na piscina. E foi, era aniversário do Parque Lage. Então, foi uma aula assim muito de um interagir no outro, é muito enlouquecedora essa aula, é uma boa confusão no fim das contas, porque você acaba indo olhar o que o outro está fazendo também. Mas eu acho que isso é um conceito novo também. Então, eu acho que ele estava um pouco além do tempo dele, e as pessoas não retrucavam. Ninguém ficava questionando, “mas o que é isso? Todo mundo junto? Vai ser legal, vamos embora” E tinha muito happening também, e eram momentos assim que passavam. Então, isso também fazia parte do dia a dia, desse questionamento, dessa procura. Eu acho que era mais viva. Talvez pela posição política, as pessoas eram pouco, ao mesmo tempo que assustadas, curiosas. É uma posição um pouco dúbia, e tudo que era novo era interessante, eu acho que tinha essa coisa boa de ser aberto. Porque não tinha rótulo, não era taxado como bom ou ruim, mais ou menos, isso é antigo, isso é moderno. Não tinha esse palavreado de etiqueta. E você não sabe quem vai se revelar, quem não vai, você não pode julgar essas pessoas.
BERNARDO: E como era para você essa experiência? E quando você continuou, você já dava aulas na Universidade como você falou. Como é que era para você como professora aplicar um método dentro de um estágio onde você já tinha um currículo em Metodologia Linear.
ROSA MAGALHÃES: Não, mas a gente também podia mudar um pouco as coisas. A Universidade, ela é uma espécie de um empurrão para a vida. O que você aprende, você aprende alguma coisa. Naturalmente. Não sai de lá como idiota. Mas ela não te dar tudo porque é impossível você dar tudo. Mas você dar um... também tem esses sacodes, pelo menos tinha, não sei como que está agora. Mais de você dar uma mexida é tanto que tinha aula que tinha quatro professores ao mesmo tempo. Quatro professores são quatro cabeças, quatro pensamentos diferentes. Você tem que julgar como você acha que vai se adequar ao que você está fazendo. E tinha professores, tinha um professor muito velhinho e ele dava Arquitetura Analítica. Você tinha que desenhar telha por telha em escala, era um negócio dificílimo. Eu disse, “professor, esse negócio é muito difícil”, “minha filha, nada é difícil”. Depois, eu tinha que levar um templo bizantino visto de frente na escala e ele não dava as medidas não, ele dava assim, o templo Grego é uma maravilha, o degrau, eu nunca esqueci isso, é 1/16 avos da base da coluna. Então você ficava o dia inteiro fazendo conta, para ver quanto que media o degrau. Ele disse assim, “Rosa sabe o que vai ficar muito bom aqui, é um homem com umas plumas na cabeça”. Eu não questionei, eu disse, “meu Deus, eu acho que vai melhorar a nota”, botei lá o homem com uma pluma na cabeça. E era tudo aquarela 1 por 1, porque a gente sentia esse rigor de fazer todas as caneluras da coluna com a sombra a 45 graus você tem que aprender. Se você vai usar os 45º depois na sua vida, não importa, mas você teve aquele aprendizado de fazer esse desenho perfeito. E outro professor trabalhava com o Niemeyer, então ele disse, “não é assim, faça à mão livre”. Era um pesadelo. Quer dizer, tem as dificuldades, você imagina que tem aulas que eu nunca pensei que eu ia ter. O primeiro dia que eu cheguei na aula de Geometria era um professor do pré-vestibular e ele fez um círculo e disse, “eu vou tomar um cafezinho e você ache o centro”. Eu fui, eu botei na luz assim, eu vi um furinho pintei de preto, quando ele chegou estava lá. Ele disse “como que você viu?” Eu disse, “eu botei na luz e vi o furinho”. Ele disse, “você não sabe achar o centro?” Eu digo, “eu não sei”. Então, você ver eu já tinha estudado o colégio inteiro e não sabia como era o centro do círculo, não sabia fazer um círculo na verdade. E agora depois você vai amarra com barbante, vai corta e risca círculos enormes e isso vai crescendo. Eu fiz uma decoração com a Alice que a gente não tinha computador. Não digitalizava nada. Porque a gente tinha que ampliar um desenho de 8 metros. Era no chão, eu tenho foto assim do desenho de quadrado a gente no chão com hidrocor, riscando assim. É uma loucura isso e depois subia no outro andar para ver como estava o desenho. Que é uma técnica como se usa em cenário até hoje tem essa... Então, são coisas que você exercita com os alunos que eu notei a gente vai vendo, quando eu peguei uma turma de principiante eles não tinham essa... sobretudo os homens, eles não tinham essa coisa de pegar pequena, que é mais de mulher. Eu digo “não pode, vocês não vão desenhar, porque não sabem nem segurar o lápis”. Então, tinham uns exercícios de dar nó em barbante, com uma mão só, sabe são umas coisinhas que... Então, isso tudo faz parte de você ir vendo com seu aluno quê o que está faltando é o dedo. Porque é um instrumento que você precisa.
BERNARDO: Mas você adaptava essa... minha pergunta eu acho que eu não fui muito claro.
ROSA MAGALHÃES: Adaptava um pouco.
BERNARDO: Para esse trabalho tão técnico que que tinha nas aulas da faculdade....
ROSA MAGALHÃES: Tem um pouco, adaptava...
BERNARDO: Você adaptava no Parque Lage?
ROSA MAGALHÃES: ...adaptava no Parque Lage, eu tirava punha e etc. Uma vez eu resolvi dar uma aula que eu tinha comprado um livro maravilhoso eu tava dando aula de Figurino. Eu resolvi dar uma aula do traje das 3 coisas mais importantes supostamente da vida mulher que é o nascimento, o casamento e o enterro. Foi uma confusão, foram pedir para eu não dar essa aula. Porque tinha coisas hilárias, por exemplo, as mulheres iam com os filhos para botar flor para o marido e os outros que queriam se casar, iam ver para quem era bom partido. Quem tinha filha, empregada não sei o quê, era um bom partido porque tinha dinheiro e já começavam a fazer corte à viúva. Tinha essas coisas. Fazer o colar, joias com o cabelo do marido que tinha morrido. Eles não queriam saber disso são coisas, você imagina que enterro tinha menu. O cortejo vai passar, por exemplo, na Cinelândia, vai parar para um chope no Amarelinho, depois ele continua. Quando ele chegar no Flamengo, tem um croquete, depois continua até não sei aonde e antes de... assim quer dizer, com o menu e com as paradas do cortejo fúnebre. Então, isso você ler, porque eu não sei se eles iriam querer saber disso. Mas eu achei tão interessante que para você ter ideia de como é que essas coisas se transporta mais essa aula não teve sucesso não.
BERNARDO: Essa aula foi na Faculdade?
ROSA MAGALHÃES: Não, essa foi no Parque Lage.
BERNARDO: Ah, é? E o pessoal não curtiu?
ROSA MAGALHÃES: Não. Essa eles não gostaram não.
BERNARDO: Você já conhecia Gerchman, antes do Parque Lage?
ROSA MAGALHÃES: Não, eu conhecia de jornal, de exposição, de ir à exposição no MAM, e várias deles, Vergara, é um grupo grande. Mas, assim, pessoalmente de conversar com ele não, eu fui conhecer no Parque Lage. Sabia quem era.
BERNARDO: E como foi esse encontro entre vocês no Parque Lage. O que você se lembra desse encontro?
ROSA MAGALHÃES: Olha, eu acho que foi ótimo, porque ele tinha uma visão muito abrangente então ele não estava lá para julgar ninguém. Tinha uns velhinhos também que davam aulas, ele achava formidável. Não tinha essa ... é isso que eu digo, você não compartimentava as coisas. Tinha alguns professores que eram mais amigos dele, naturalmente, e outros que eram menos, mas sempre tratou todos com muita deferência com carinho. Nunca houve choque, nem de gerações, nem de gosto artístico. Eu acho isso muito interessante, porque não tem... ainda mais numa escola você tinha uma clientela também mais ou menos já estabelecida com determinados parâmetros e vontades de uma determinada coisa, então tinha umas senhoras que iam para lá desenhar etc. E elas não eram obrigadas a ter uma visão contemporânea da Arte. Acho que nem queriam porque umas tem naturalmente e outras não queriam. E tinha a garotada. Então, você podia fazer experimentos, não precisava seguir ali um programa sem poder sair daquela linha ali, você podia ter algumas vertentes que você achasse interessante.
PEDRO: Como era a sua relação assim com os demais professores essa coisa interdisciplinar que tinha lá que o Gerchman promovia bastante assim, tinha você encontrava com ele, e estudava, era assim prático?
ROSA MAGALHÃES: Não. E tem o seu grupo de amigos, que são seu grupo de amigos. O Hélio tinha chegado da Tchecoslováquia e eu era aluna ainda. Ele foi lá procurar assistente para ele, porque ele estava com uma tonelada de trabalhos para fazer. E eu queria, eu disse a ele, “poxa, você não me chama. Que coisa”. Um dia ele chegou e disse, “você quer fazer uma pesquisa para mim?” Eu disse, “eu faço, faço a pesquisa”. Ele disse, “eu quero isso aqui, isso aqui, você vai lá em casa que eu vou te dizer tudo”, eu disse, “está bom”. Anotei tudo. “Me dá um tempo aí”, e fui catar o que ele queria. Fui à Biblioteca Nacional, ele queria o traje na época de Maurício de Nassau, 1600 e lá vai, e a bandeira como era, o muro como era, a roupa do escravo, como era a roupa do soldado como era não sei o que. E eu fui fazendo consegui ver o Barleus, que é um livro desenhado todo à mão, é um negócio de maluco. E depois que eu fiz aquilo tudo, eu achei que as minhas anotações estavam uma vergonha. Esse cara chegando aqui e vou acabar mostrando esse rabisco aqui, não pode. Aí aquarelei tudo e liguei para ele e disse, “olhe está aqui o desenho já, fiz a pesquisa”. Ele foi lá para pegar a pesquisa, olhou, olhou e disse olha o soldado olha a bandeira, olha não sei o quê, olha a mulher, olha o homem, esse aqui é o homem do povo. Ele disse, “você não fez a pesquisa”. Menino, quando ele falou aquilo, eu gelei na espinha e disse, “o que esse homem quer?” Ele disse, “não, você já fez o figurino da peça toda”. E eu fui promovida a corneteira. Eu saí de pesquisadora e já virei figurinista. Foi assim, fiquei trabalhando com ele muito tempo. Então, convidei ele para ir lá no Fundão. Antes de dar aula no Parque Lage, ele foi dar aula no Fundão. E depois ele quis sair, eu disse, “não, saia não, pede uma licença”. Quer fazer coisa diferente, pede uma licença por 2 anos, depois você volta. Ele não quis, não, porque sabe daquelas coisas que dá e você resolve sair e quis sair. Depois foi para o Parque Lage, depois parou de dar aulas. De vez em quando ele dar umas aulas pontuais mais nunca é um tempo longo, porque realmente é cansativo, tem férias, e você tem que organizar a sua vida em relação as férias.
BERNARDO: O quê você lembra dele no Parque Lage?
ROSA MAGALHÃES: Dele quem?
BERNARDO: Do Hélio.
ROSA MAGALHÃES: Do Hélio? Não, o meu horário é um pouco diferente do dele, mas de vez em quando eu encontrava com ele. Mas a gente trabalhou bastante junto. Então, eu conhecia ele de trás para a frente. Lá no Fundão, ele já fazia uns cenários coletivos, todo mundo desenhava e tinha alguma coisa esotérica também. E depois ele começou a fazer dança e eu não via porque estava na minha aula, eu soube do negócio quando já tinha rolado a confusão da aula dos pelados.
BERNARDO: Qual foi essa confusão?
ROSA MAGALHÃES: Eu não sei, porque eu não estava vendo. Eu sei que o povo estava pelado e os passantes reclamaram. Mas era uma época também, e você leva em conta, que faz muito tempo isso. Agora, quando eu entrei para a escola, para a Faculdade o professor tinha que ter paletó e gravata. Agora é calça jeans e blusa pólo, essas coisas são normais. Uma vez teve um professor que foi lá para o Fundão de bermuda. O diretor olhou e disse, “olha, se fosse uma moça com umas pernas bonitas, mas as suas pernas são horrendas”. Porque você tem que ter um limite também do professor para o aluno. Então tem essa... ele não tinha as pernas bonitas, não.
BERNARDO: Mas no Parque Lage podia ir de bermuda e de jeans.
ROSA MAGALHÃES: Lá podia, porque era outro conceito, era uma escola livre, não era uma coisa muito hierárquica, porque tem o Reitor, o sub Reitor, era uma escola mais aberta em um pátio, em um campo, em um jardim lindo.
CLARA GERCHMAN: Porque a gente escuta muito falar que foi um verdadeiro oásis. Tanto pelo momento político...
ROSA MAGALHÃES: O momento político, e os professores se doavam muito. Eu lembro da Celeida, a Celeida fazia trabalhos lindos lá. Depois, a gente foi trabalhar em um trabalho com o hippie, porque juntava todo mundo, de repente entrava o hippie, saía o hippie, entrava o Hélio, tudo muito interligado.
CLARA GERCHMAN: Mas vocês tinham uma noção assim dessa relevância?
ROSA MAGALHÃES: Não tinha, não. A gente queria dar uma respirada. É um lugar eu vou respirar agora. Eu acho que não tinha muita noção, não. Eu acho que nem seu pai tinha noção da importância dele, o que é muito bom porque senão ia ficar muito cheio de si, e as pessoas cheias de si são muito chatas. Então, eu acho que tinha... um mostrava para o outro o que estava fazendo. Eu acho isso muito interessante. Agora cada um em seu canto fica meio parado.
BERNARDO: Como era a tua aula? Você dava aula de quê exatamente, tinha 2 cursos?
ROSA MAGALHÃES: Cada hora eu mudava eu dei aula de Cor, dei aula de Desenho, dei aula lá em cima. Era muito aluno e não tinha espaço, aí construíram umas casas assim.
CLARA GERCHMAN: Lá em cima, no terraço?
ROSA MAGALHÃES: No terraço. Dava aula lá em cima tinha, uns galpões assim, hoje seria uma espécie de container, lá em cima, e eu me lembro que tinha uma frenética, que foi minha aluna na época de ser frenética. O Osmar Prado. O Osmar Prado foi meu aluno também lá de desenho. Tinha muita gente. Então, juntava Teatro e tinha um pessoal que ia filmar, que ia ver locação, era uma misturada.
CLARA GERCHMAN: O meu pai falava muito da importância do lazer também nessa escola. Era um conceito de que tinha teoria de que tinha prática, mas que tinha um espaço chamado lazer. Você lembra de usufruir dessa escola nesse sentido também?
ROSA MAGALHÃES: Só você chegar lá já era uma maravilha. Tinha as historias da Bezansone, um contar um para o outro. Eu me lembro que a sala do Diretor era um dos quartos que tinha um banheiro. E a banheira era fantástica tinha dois andares e ela era redonda, toda de mármore vermelho. Depois você ver o filme de Macunaíma você diz assim, olha lá onde que eu dei aula. Tem essa coisa de te remeter a lugares... tinha peça de Teatro a noite era muito variado.
CLARA GERCHMAN: Muito vivo.
ROSA MAGALHÃES: É. E é isso que é bom, de repente, passa um filme.
BERNARDO: Tem uma noção também que é interessante, que eu queria saber tua visão. Você já tinha Carnaval, nessa época, como tema?
ROSA MAGALHÃES: Já.
CLARA GERCHMAN: Passárgada foi 75 ou 79?
ROSA MAGALHÃES: Já. Eu fiz uma exposição lá...
CLARA GERCHMAN: Avoantes?
ROSA MAGALHÃES: Não. Não sei como é que chamava. Porque as esculturas já eram umas coisas absurdas. Então, tinha uma onça enorme, eu botei no isopor, com um negócio, ela ficou solta na piscina. Aquela onçona. Mas bombou a festa. Inundou de gente. Isso é legal de você vê. O pintor que pintou estava lá, o escultor estava lá. O povo que foi lá só para se divertir, estava lá também. A coisa podia ficar do lado de fora, porque era de resina, não tinha problema de pegar sol. Dá uma desbotadinha, mas isso é o de menos. Íamos jogar fora aquilo tudo, então pegamos tudo e pusemos no Parque Lage. Então, tinha isso. Eu podia fazer a exposição sem ser prejulgada, “ah, isso é de Carnaval. Isso é uma porcaria”. Não era bem assim, porque ali você tinha a escultura do Fulano, você tinha pintura do outro, você tinha a decoração, então tinha um significado aquilo.
BERNARDO: Eu também tinha um ponto que é assim: o Carnaval, para essa coisa do enredo, muitas vezes vocês estão trabalhando com temas históricos e, muitas vezes, têm a ver com a própria História do Brasil.
ROSA MAGALHÃES: É. Eu agora estava lendo um – deixa eu só contar essa musiquinha que eu adoro, eu até aprendi o versinho. Daí ele continua, mas eu acho que é tão propício esse versinho, que é de 1808, quando Dom João chegou aqui, que deu o bota para fora o povo. Eles comiam 33 mil frangos por ano. Você imagina? Tinha uns cozinheiros que vendiam frango no câmbio negro, porque não sobrava para a população. Mas o versinho é assim, e tinha um departamento da Coroa que se chamava Mordomia-mor. Eu acho que esse é o melhor de todos. Eu estou me divertindo tanto com esse livro... e o versinho é assim, “quem rouba pouco é ladrão, quem rouba muito é barão, quem rouba e esconde, vai de barão a visconde”. Olha, não é uma maravilha isso? Eu achei uma beleza.
BERNARDO: Qualquer semelhança...
ROSA MAGALHÃES: É mera coincidência, não é? Mas esse da Mordomia-mor, então, eu achei fantástico, não é? Já tinha, menina, olha.
BERNARDO: Muito bem, mas a minha pergunta era no sentido assim...
ROSA MAGALHÃES: Não, perdi a pergunta.
BERNARDO: Não, porque eu também não fiz. Me parece que havia muito mais uma vontade, um desejo mesmo, de entender e pensar e construir o Brasil. Eu vejo o Carnaval, como um lugar que procura entender o Brasil. Você consegue fazer essa analogia, entre esse período do Parque Lage, que você buscava esse conhecimento de Brasil também?
ROSA MAGALHÃES: Também. Eu fiz muito enredo de Brasil. Continuo até hoje, mas esse ano eu estou fazendo uma história diferente, que era um professor meu, que o nome do enredo é assim, “um homem que só tinha medo da Matita Pereira, da tocandira, e da onça pé de boi”. Então, era a vida dele no Acre que tinha essas coisas, superstições etc. Ele vem para cá, e começa a fazer a história dos negros, que ninguém falava de negro, só falava de Batalha do Tuiuti, o Dia do Soldado, o dia que a Lei Áurea foi assinada. Essas coisas assim. Não tinha Proclamação da República, Viva Deodoro. Então, era um questionamento, que hoje já tem o retrato de Zumbi. Ninguém sabia quem era Zumbi. Esse ano vai ser esse enredo.
BERNARDO: Mas, nessa época, assim, você acha que tinha essa preocupação, você via esse lugar, de procurar um Brasil, dentro do Parque Lage?
ROSA MAGALHÃES: Aquilo ali era um caldeirão fervendo. Cada hora tinha uma novidade, um questionamento, você via o que o outro estava fazendo. Gostasse ou não gostasse também não tinha a menor importância, ninguém estava te perguntando nada. Eu acho que era um respiro, um alívio. Você chegou em um lugar que você pode. É claro que ninguém é louco de extrapolar, mas tinha uma certa brisa de felicidade ali.
CLARA GERCHMAN: E como era, por exemplo, a aula de cor? Porque eu sei que havia uma precariedade de materiais, de recursos materiais, como é que você fazia?
ROSA MAGALHÃES: Não, usava papel, 3 cores básicas. Eu vi outro dia um livro de 1930, um filme... Não, um livro que eu achei, que eu ganhei. Em 1930 já estava lá com toda a teoria que custou a chegar aqui, que a Teoria da Cor, como ela é hoje, ela veio com a televisão colorida, foi muito difícil de as pessoas entenderem. Como é esse negócio, que verde é a cor primária, que não sei o quê. Que hoje qualquer um sabe, porque tem.... e a televisão antigamente, que era aquela de tubo, ela tinha 3 bolotinhas assim. Eu cheguei a mexer atrás, depois destrambelhei a televisão inteira, fui chamar um técnico. Porque eu queria ver. “Vou tirar essa para ver o que acontece, agora vou botar aquela de lá muito”. E com um espelho na frente, para ver o que está acontecendo. Então, era uma coisa mais nova, de você explicar que a cor é uma coisa na luz e a química é outra. Então, são duas visões. Hoje, o pessoal que usa computador está cansado de saber disso. Mas era uma coisa difícil você entender. Porque sair do vermelho, do amarelo e do azul. Era azul.
BERNADO: Ciano.
ROSA MAGALHÃES: Não, isso não existia antigamente.
BERNARDO: Você diz as cores primárias? Vermelho, verde...
ROSA MAGALHÃES: É. Eram 7, que eram 6 primárias e não sei o quê. Aí, como você recorta. Mas era você também criar umas gradações, para você ir acostumando o seu olho a perceber as diferenças. Em preto, em branco, em cor, em mistura de cor, uma cor com a outra. Ou então colar um pedaço do recorte da revista, e “faz essa cor aí para vê”. O que leva aqui? O que é isso? Que cor é essa?
BERNARDO: Lembra de, nas suas aulas, haver existido um input, alguma influência de outro professor não? Alguma participação? Você recorda?
ROSA MAGALHÃES: Não. Isso eu não me lembro. Eu botava projeção, e tirava luz, botava luz. É para você entender como é esse negócio, o que o olho da gente é. Depois que você entende, não tem mistério nenhum. Mas, se você quer ser iluminador, você tem que entender isso. E depois é a luz batendo numa coisa opaca, o que vira? Então, isso tudo é você vê. Só de você sair lá no parque e você olhar, você tem a mudança atmosférica da cor da mesma coisa. Porque a atmosfera já vai mudando. Na distância a cor muda completamente. Então, são coisas assim...
CLARA GERCHMAN: Você lembra alguma história, algum causo?
ROSA MAGALHÃES: De aula, assim?
BERNARDO: De festa, de amores.
ROSA MAGALHÃES: Tem uma história que a mãe de um amigo meu contou que a Bezansone tinha um vestido, que eu fiquei fascinada com essa história. Que o vestido tinha uma cauda assim, e no final do vestido tinha um ratinho todo de canutilho, assim, fechando aquele biquinho, e quando ela ia subindo a escada, o ratinho ia subindo junto. Eu achei isso o máximo. Mas eu imagino... Aí, diz assim, “não, mas nas festas, sai umas ninfas aqui do bosque”. Eu já ficava imaginando aquele bosque cheio de ninfa pulando ali. Era um pouco o que o Hélio fazia. Eu acho que ele ouviu essa história também, dessas ninfas, porque as histórias de festas fantásticas que aconteciam lá e tudo, e o próprio casamento dela, que ela só aceitou dois anos depois. Quando ela perdeu a voz, aí ela mandou, “aceito”, dois anos depois. Aí casou. E diz que os pés eram lindíssimos. Não sei, porque a cara eu não achei muito bonita não. Os pés, ela tinha um diamante para cada dia. Tu andavas de sandália com os diamantes, todos aqui no dedo do pé. Também achei muito chique isso. Tinha umas histórias assim.
BERNARDO: Você ficou lá uns 4 anos?
ROSA MAGALHÃES: Não, eu fiquei mais. Eu me aposentei lá.
BERNARDO: Não, mas nesse período, você ficou 4 anos.
ROSA MAGALHÃES: Fiquei, fiquei. Fiquei uns 4 anos.
BERNARDO: E como era o Gerchman lá? Como era esse Gerchman, diretor da escola?
ROSA MAGALHÃES: Não criava o menor problema. Então, tudo estava bom. E ele dava aula também, que ele dava aula de Pintura do Cotidiano, se eu não me engano.
CLARA GERCHMAN: Oficina.
ROSA MAGALHÃES: Oficina, era tudo oficina. Não era aula de não-sei-o-quê, era Oficina da Cor, Oficina da Forma, oficina de não-sei-o-quê. E era toda aberta, você podia entrar no meio, sair depois, não tinha...
BERNARDO: E o que você se lembra dessa oficina dele? Chegou a conversar com ele?
ROSA MAGALHÃES: Não, porque você fica muito no seu, não pode ficar... Me lembro dos trabalhos lá, pendurados na parede, tinha bastante alunos lá. E era uma garotada que ia também, eu não sei onde é que eles estão estudando desenho agora, onde é que eles estão se encontrando. Mas deve ter algum lugar, naturalmente. Mas é muita garotada. E tinha visita de colégio, para ver como era aprender arte.
CLARA GERCHMAN: Antes de a gente começar aqui, você falou, “ah, mudou muito a escola”.
ROSA MAGALHÃES: É porque era grátis, era mais aberta, eu acho. No momento, você tem que pagar, eu não sabia, uma amiga minha me disse que tinha um curso lá que saía por 2 mil reais. Eu disse “o que é isso?”. Eu tomei um susto. É isso mesmo? É muito caro isso. E se você quer dar aula para a garotada, você não pode...
BERNARDO: Mas, para a gente terminar aqui, como é na sua memória o temperamento do Gerchman? Como era o homem?
ROSA MAGALHÃES: Muito bom. Estava sempre sorridente. Se dava droga lá, não tinha, não passava para ninguém, estava tudo sempre bom, tudo bem, ótimo, ah, que maravilha, sua aula está ótima, aqui está muito bom também, sabe? Sempre uma coisa para cima, não tinha essa coisa, “temos que cobrar dos alunos”. Não temos que cobrar nada, eles vão fazer naturalmente. Se eles estão gostando, se a aula flui, se é interessante, ele vai está lá presente.
BERNARDO: Você acha que ele ficou triste com a saída dele, você lembra da saída dele, quando foi?
ROSA MAGALHÃES: O governo que muda. É um fato, que às vezes muda para um bom, às vezes muda para um ruim. Mas foi isso. Eu acho que ele ficou os 4 anos. Eu não lembro mais quem era o governador. Lá é governador, não é?
BERNARDO: É, do Estado.
ROSA MAGALHÃES: É do Estado. Mudou. Quem era o governador na época?
BERNARDO: Era o tal do Floriano Peixoto. Tinha o mesmo nome do antigo Floriano Peixoto. Aí depois trocou para o Chagas Freitas. Eu acho que era Floriano Peixoto de Faria Lima. Um nome desse tipo.
ROSA MAGALHÃES: Faria Lima.
CLARA GERCHMAN: E tinha o Paulo Afonso Grisolli na Cultura, na Secretaria de Cultura.
BERNARDO: E você continuou lá, depois que ele saiu?
ROSA MAGALHÃES: Continuei.
BERNARDO: E por que você acha que a escola mudou?
ROSA MAGALHÃES: Depois um diretor – que eu não direi o nome, disse que não queria dar aula. Aí eu fiquei surpresa, disse, “mas eu quero dar aula”. “Não, você vai para o Meier”. Eu disse, “não, eu não quero ir para o Meier, seu diretor de nabo. Eu quero dar aula aqui. Duas vezes por semana, feliz e contente”. “Não, mas você não vai aqui não”. Aí eu virei antigo. Fui banida pra Feiolândia. E aí eu disse, “ah, então eu não quero”. Eu não queria ser diretora. Porque eu estava dando aula lá, dando aula no SENAI, concurso, estava implantando um curso de Estilismo, que agora é direto da faculdade, que eu estava adorando fazer esse trabalho de começar um curso novo, que não existia. E eu tinha ido à Áustria, tinha visto umas escolas. Então, era uma coisa que estava... sabe? Isso, eu tenho o prazer, porque você tem que ter o prazer. Aí, fazer roupa de caixa, papelão, sabe umas coisas assim, inusitadas, porque tem que despertar essa visão. E aí eu disse, “não, vou pedir licença”. Pedi licença e me aposentei. Acho que quando você não é bem-vindo, é melhor você sair.
CLARA GERCHMAN: Você por acaso sabe, uma coisa que eu estou tentando desvendar. Quem fez a logomarca da Escola de Artes Visuais, aquelas que são como se fossem uns triangulozinhos?
ROSA MAGALHÃES: Não me lembro.
CLARA GERCHMAN: Mas, por acaso sabe, coisa assim... “Ah, eu vi Fulano diagramando, vi quando nasceu”.
ROSA MAGALHÃES: Não, não vi. Porque lá se chamava Instituto de Belas Artes, depois mudou para Escola de Artes Visuais. Aí virou EAV. Aí vai encolhendo.
PEDRO: Para finalizar, a gente tem percebido, pelo que eu tenho conversado com as pessoas, conversamos com o Daniel Senise, que depois do Gerchman foi aluno lá da Geração 80, e tal. Que aquela geração de Gerchman...
ROSA MAGALHÃES: Era muito legal.
PEDRO: Era uma turma que eles quase funcionavam como um microcosmo mesmo, todo mundo se consumia internamente.
ROSA MAGALHÃES: E todo mundo se frequentava, também, uns mais, outros menos. Mas se davam.
PEDRO: E aí a geração posterior já jogou mais com o mercado, e tudo o mais.
ROSA MAGALHÃES: É. Eu acho que essa visão é que atrapalha um pouco a coisa. Eu acho que também era um pouco romântico. Tem essa coisa. E eu acho que um admira o outro. Você diz, “puxa, que trabalho legal aquele lá, é formidável”. Você tem essa admiração pelo outro. Eu acho que não é concorrência. E isso é que dá essa harmonia, essa coisa. Depois eu fui trabalhar com a Celeida, fomos fazer um filme de Cacá Diegues, eu disse, “Celeida, pelo amor de Deus, se me mandarem fazer um zabipa ou tirar árvore, você vai acabar dando 5 mil”. Mas Rapadura disse, “manda comprar rapadura”. Era uma coisa de ter que fazer tudo. E era um filme louquíssimo, não sei o que deu na cabeça do Cacá, a gente morava no mato, era muito maluco. Eu não pude ficar no filme até o final, porque fazia 4 graus e eu trabalhava com as panelas, fazendo estamparia, e essa coisa, e meu olho começou a inchar, inchar, inchar.... Aí eu digo, “não posso, eu preciso dos meus olhinhos”. Aí tive que sair, mas era muito louco. Você imagina todo mundo junto. O homem que fazia armadura, com o homem que fazia arma, um índio que fazia a flecha, com a costureira, com o outro que pintava cenário, tudo morando assim meio como cigano, naquela colônia de férias.
PEDRO: Qual que é esse? Ganga Zumba?
ROSA MAGALHÃES: Não. Zumbi.
PEDRO: Zumbi. O Duran, um amigo nosso foi assistente, eu acho.
ROSA MAGALHÃES: Era muito louco. Um frio... Um frio fenomenal.
CLARA GERCHMAN: Você acha que pode falar alguma coisinha a mais da Celeida, que a gente não tem...
ROSA MAGALHÃES: A Celeida era uma pessoa que amava o que fazia. Começa daí. Eu acho que ela achava que a terra era a coisa mais maravilhosa do mundo. E ela era pequenininha, e fazia coisas enormes. Eu disse, “Celeida, isso é enorme”. Ela, “vai ficar pronto”. Não sei nem como ela cozinhava aquelas peças tão grandes. E depois ela passou a fazer peças pequenas. Eu disse, “ou é 8 ou 80. Média não tem”. E ela quis fazer esse filme lá com o Gerchman, porque ele tinha essa coisa do natural. O bambu era bambu. O pano era um pano que ele ganhou, só tinha aquele. Então, tinha que transformar os panos todos, então, tinha uma equipe que transformava. Eu ficava pintando, eu fazia todas as tribos africanas, no barro assim com a tinta, apertando. É bom, porque você chegava no final do dia, você estava feliz, brincou de massinha, pintou tudo, ficou ótimo, lavou, cozinhou, secou. É muito bom isso, esse fazer. E ela tinha muito dessa coisa de fazer. Tanto que ela fazia aquele... A última exposição que eu vi, acho que foi essa, porque ela apertava, assim. Mas, ao mesmo tempo, ela tinha muita vaidade, que ela disse assim, “está vendo essa cicatriz?”, eu disse “estou, o que é isso?”, ela disse, “mandei fazer plástica na minha mão”. Porque a mão estava muito feia. Quer dizer, é engraçado. Todo mundo faz na cara, foi fazer na mão, porque o barro, não sei o que tem, a mão tinha que ficar linda. Então tem isso. O que incomodava ela não era o rosto, era a mão. Porque a mão, para manusear esse barro tinha que está com 18 anos.
Eu acho que é isso, a gente tem que se divertir, fazendo as coisas legais. Agora, desliga isso aí, que eu vou te contar uma fofoca horrível.
BERNARDO: Mas é da época?
ROSA MAGALHÃES: É.
BERNARDO: Sergio, nós queremos começar falando sobre um texto que você escreveu em 78, você conta, escreve a primeira vez que você teve contato com a obra do Gerchman, uma exposição na Relevo se não me engano em 1967...
SÉRGIO SANTEIRO:... é, é do Jean Boghici.
BERNARDO:... começar contando para a gente como foi esse primeiro contato com a obra dele. A obra do Rubens.
SÉRGIO SANTEIRO: É, é, foi exatamente assim porque eu morava, como voltei a morar, em Copacabana, no principio de Copacabana na saída do Túnel Novo, e eu andava muito, inclusive, momentos de conturbação, que a gente fica meio irritado. Aí a minha terapia era andar, andava até ao fim de Copacabana e voltava, parando nas livrarias, nas coisas aí. E numa dessas vezes, eu passando na, pela Copacabana, na esquina, da Duvivier , tinha a Galeria Relevo que era do Jean Boghici. E que estava com uma exposição, acho que foi a primeira, exposição assim a solo, do Rubens. E aí eu passei assim, passei olhando assim, aí parei e fiquei curioso e fui lá, fiquei curioso com o que era. Eu acho que eu nesse dia eu nem entrei, porque eu acho que era meio cedo, não estava aberta não, era só a vitrine, só a coisa, se não me engano. Aí depois eu voltei e fui vendo a coisa e tal, e fui ganhando essa intimidade, com o artista. Porque a gente é folgado, entendeu, você, você, quando você curte um artista, você fica achando que é intimo dele, que ele é seu amigo e tal, você tem aquela, comunicação. E curiosamente, aí bom, enfim, aí eu acompanhava muito, esses movimentos, na época, era tudo muito concentrado. Em torno do Museu de Arte Moderna acontecia tudo de todas as áreas, seja música, seja artes plásticas, como se dizia na época, seja cinema, tudo, tudo ali gerava em torno do museu. A própria Nova Objetividade foi lá. Enfim, eram esses, eu tenho impressão que hoje em dia, e acho positivo, a coisa é muito espalhada, é muito dispersa. Acontece coisa em tudo o que é canto. Naquela época não. As coisas eram meio concentradas, o público, o púbico cativa, que é os colegas, era todo o mundo se movia meio que em multidão, em grupo. Aí tinha os bares também, que eram mais ou menos comuns, tinha um compartilhamento muito grande das várias áreas, não era uma coisa restrita. E foi assim, quer dizer, o início foi assim e teve essa coisa do Rubens na época. Que era a coisa do homem na multidão, aquela coisa, assim. Que era o que a gente vivia, do lado de fora como eu digo, aquelas ruas. Tem essa coincidência eu acho, desse momento do Rubens, com essas coisas assim, como é, é o cotidiano urbano não, eram as coisas que você quase que transitava da vida real como a gente chama, para dentro das coisas dele, com aquela coisa também misteriosa do anônimo, do perdido na multidão, essas coisas. Que é esse período dele, isso é, isso é anos 70, sei lá. Acho que isso é anos 70 mais ou menos.
BERNARDO: A passagem dos 60 pros 70....
SERGIO SANTEIRO: É, é bem mais, porque, não, não, aí é antes. Mas enfim, essas datas.
BERNARDO: Vamos pular um pouquinho no tempo, na cronologia, para a gente entrar na questão já da escola mesmo de artes visuais aqui no Parque Lage. Você começou a sua colaboração com o Gerchman na escola em 75, se não estou enganado.
SERGIO SANTEIRO: É, é, foi, foi na, foi quando ele veio para a escola, na implantação do que ele trouxe, para a escola com aquele tom dele meio bem humorado. Ao mesmo tempo meio ríspido, a coisa meio assim. Então a coisa da implantação da escola, do, transformação, do Instituto Belas Artes, que ele olhava assim com uma certa, assim, horror para dizer a verdade. Esse conceito de belas artes, essa coisa meio assim. E com a, quer dizer, com a mutação, sem perda, dessa essência de belas artes, mas a transformação do conceito de artes visuais, que é uma coisa mais ampla, mais aberta. E que é uma coisa mais dinâmica na verdade. Então essa, ele, olha eu juro para você, eu não me lembro exatamente por que é que ele me chamou para dizer a verdade.
BERNARDO: Você lembra como foi o episódio? Assim, o convite?
SERGIO SANTEIRO: Não porque era, primeiro é um pouco essa coisa que eu falei. A gente se encontrava entendeu, vagamente, em vários eventos, seja exposição, seja qualquer coisa. Era a cinemateca do MAM, qualquer coisa, era uma coisa meio fluida mesmo. Eu sinceramente, eu tenho uma, embora eu faço cinema, aliás um cinema meio esquisito para dizer a verdade. É um cinema meio particular. Mas enfim. Mas eu tenho, eu sempre tive, eu sempre, é uma curiosidade mesmo, uma coisa meio mista mesmo entendeu. Embora eu não consiga fazer nada. Eu não consigo, eu não consigo traçar uma linha reta sequer, eu sou um absurdo. Mas eu gosto, eu acompanho, eu tenho uma coisa assim que eu acho que você fica meio, você fica energizado não, quando você vê uma coisa com a qual você se identifica. Não é entendeu, isso desde as grandes belas artes, as coisas um pouco mais triviais, tem essa coisa. Bom. E aí não sei, eu acho que foi nisso, foi num movimento, num momento desses. Mas o detalhe quer dizer a coisa especificamente eu não me lembro. E realmente eu nem sei se houve para dizer a verdade. Eu acho que ele me incluiu no pacote, agora vamos, sejamos mais diretos com essa história de ele querer trazer para cá, aí já é o conceito de artes visuais, de ele querer trazer para cá também cinema. Eu apesar de ser autor de uma das famosas frases, que às vezes me custa um certo, eu tenho de explicar. É aquela coisa, a frase é, cinema não se aprende na escola. E aí eu até amplio, arte não se aprende na escola. Assim especificamente falando. O que eu acho que inclusive tem a ver com o tom que o Rubens quis dar aqui ao Parque Lage.
BERNARDO: A gente queria saber um pouco da, já entrando agora na oficina, oficinema?
SERGIO SANTEIRO: É, é.
BERNARDO: Como que era a dinâmica dessa oficina Sergio?
SERGIO SANTEIRO: Pois é então aí. Eu vou voltar um pouquinho atrás, eu sou, o meu, eu tenho um pensamento circular. Aí tem uma coisa, eu não consigo ir para a frente se não linkar com, então nessa coisa dessa reunião de talentos espetaculares. O Rubens montou um time que francamente é de ganhar a copa do mundo, um time que não faz feio. E eram pessoas muito, muito centradas. Todos, todos muito, como se, como convém ao artista claro, não pode ficar aí diluído no mundo, você tem de ter uma coisa, tem de ter uma introspecção grande. Mas tem uma fluência muito grande entre todo o mundo. Eu não me lembro se havia alguma antipatia assim explicita, assim. Às vezes tem, num grupo, não pode agradar todo o mundo, sempre tem alguém que fica aborrecido. Mas eu tenho impressão que tinha uma coisa assim meio mágica, como o próprio espaço inspira, o espaço ele é mágico. E eu acho que o Rubens soube aproveitar esta onda. Diz a lenda que algumas noites ouve-se nos corredores a voz da Besanzoni cantando e tal. Tem essa coisa então que confere ao espaço um poder de sedução, enfim essa junção que o Rubens conseguiu com uma linha que eu acho uma coisa superinteressante. O Rubens tem uma coisa engraçada. O Rubens tem uma formação de gráfico. Ele foi, ele iniciou-se nas oficinas da Manchete. Gráfica. Aquela coisa gráfica pesada, na época gráfica era chumbo. Não era, não era chip. Era uma coisa pesada. E tinha uma coisa até braçal eu diria. Que é o que deu a ele um padrão de qualidade visual e de uma certa obsessão formal. Que ele é, tem uma anedota a respeito disso que eu já comentei que era, pulando um pouco, que era eu no meu módulo de aula lá da oficinema, que é uma oficina de cinema. Mas aí a gente junta para economizar, ficar curtinho. E no lançamento da escola Rubens fez um impresso, aquele desdobrável, que é genial porque é a síntese não só do que era oferecido enquanto curso. Mas eu acho que de uma certa filosofia do ensino como foi concebido na escola, sem ter sido, acho eu, milimetricamente criado. Foi uma coisa meio assim, meio inspirada. E que remete, na minha opinião, aqui à tradição da escola, e de repente do Rubens, que é o que eu acho que é o meu modelo de escola para as artes em geral que é o famoso Liceu de Artes e Ofícios. Não adianta ser mais pretensioso do que isso porque na verdade é assim, é uma interação indireta entre o chamado mestre e os discípulos que vão se experimentando na atividade, qualquer que ela seja, seja o que for. E nisso vão construindo o aprendizado. Então aí volta o bordão, não se aprende na escola então a escola proporciona, pode proporcionar esse entorno, essa circunstância, em que as pessoas aprendem-se mutuamente, você aprende, você aprende com o aluno, aprende mesmo, não é frase não. Sobretudo na área de artes, então de repente aparece alguém do nada surpreendente. Eu mesmo tive no meu curso de cinema, de repente eu fiz lá uma, essa coisa de passar filme para os outros. Uma das coisas que era o formato com que eu me preocupei era um pouco de, era o que eu chamava de cineclube de produção. Você passava filmes, você arrecadava uma graninha tosca para com isso comprar filmes super-8 e com isso fazer os filmes, a turma fazer os filmes. Nisso foram feitos 3 filmes, um deles notável e coincidentemente não ficaram. Não restaram eu acho. Mas tinha... e aí a pista, o roteiro, pré-roteiro para os filmes era no caso, foram matérias de jornal que eu peguei na época e uma delas, a primeira delas que foi a Sandra Werneck que fez, que era um filme ótimo, que era com um menino do Morro de São Carlos que a Lélia Coelho Frota, que eu tinha publicado num artigo. Então eu falei para a Sandra, "então vai lá e faz" o filme com o super-8, essas coisas. Quer dizer, tinha essa dinâmica de curso que é isso, esse espelho do Liceu de Artes e Ofícios. Ao que consta, muito do que hoje é do Leonardo Da Vinci foi feito pelos discípulos e ele claro que botou lá o dedo dele que é suficiente. Imagina, o dedo do Leonardo Da Vinci deve ser uma coisa prodigiosa. Se ele botar o dedo nessa parede, a parede vive. E todos, todo o mundo, todo o mundo, todo o mundo. Particularmente em cinema, vocês vejam, em cinema, na verdade, você aprende trabalhando no filme dos outros não é não? Você vai ser assistente, aí depende, você escolhe qual a área que você quer. Porque se você quer fotografia, você vai ser assistente de câmera, vai acompanhar os trabalhos. E aí você vai gradativamente, ou não, ou dá um pulo sei lá, você vai ganhando o conhecimento da técnica como se diz. E vai dando o seu toque, vai botando o seu dedinho. E essa época também, vamos falar dela, a época também foi uma época meio prodigiosa, enfim, tendo o que falar.
É tendo o que falar da época, porque era uma época muito difícil. Aí tem que tomar cuidado com o que se fala, tem que ser um pouco, tem de ter respeito pelas coisas mas enfim. Porque tinha a questão triste e trágica, árdua questão da luta armada. E tinha o que eu, com todo o respeito enfim, mas não como se sabe não foi opção da maioria das pessoas, felizmente ou não. Mas você tinha, você teve esse período todo da chamada ditadura militar que na verdade foi uma ditadura civil-militar. Então essas coisas, fala qualquer coisa, não qualquer coisa é complicado. Qualquer coisa, porra, é qualquer coisa. Eu acho que tem de ter uma correção de... conceitual e de linguagem porque se não gera uma bagunça. Então vamos lá, a famosa ditadura civil-militar. Sobre a qual não vou me estender mas enfim. Então surgiram essas duas, não sei se opções, mas essas duas situações digamos. Boa parte, alguma parte da juventude, inclusive, assumiu a questão da luta armada, e uma boa parte também não assumiu, não porque não fosse contra a ditadura, mas porque acreditava em outras formas. Como é o que eu batizei num contexto um pouco de debate, um pouco áspero, mas enfim, mas que eu sustento, que é a luta desarmada. É ingênuo, é errado, como se fez muito na época. A censura acabou, não a censura acabou com nada. A censura era a censura. Não tenho a menor dúvida. Mas ninguém se acomodou ou se acovardou diante da censura. Todo o mundo continuou a produzir. Pode ser que não daquela mesma maneira. Não interessa. Mas descobriu formas de continuar testemunhando, de continuar sobrevivendo. Ainda agora eu saudei os bravos companheiros, o Pitanga, eu adoro eles, Pitanga e o Othon Bastos. Porque aí fica essa brincadeira, eu falando com eles "não, tudo foi ontem, tudo foi acontecer ontem não é não, não vamos ficar aqui". E o principal de tudo, que aliás é uma coisa, é uma coisa fantástica, o principal de tudo, a maior vitória é sobreviver. Isso é fundamental. Tem que sobreviver. O que não sobrevive não é bom. Não é. O caminho da não sobrevivência. Não, isso é ruim. Então é sobreviver. Sobreviver como? Sobreviver honrosamente, dignamente. E isso eu acho que foi o que se construiu, inclusive através do caminho das artes que floresceram mais do que nunca. isso foi um esplendor. Ninguém deixou de fazer nada, por conta da censura da repressão. Também não era para provocar. Ninguém fazia nada para provocar também. Mas faziam as coisas honestamente, você não pode achar que é tudo uma maravilha, porque não é. Mas também, você vai ficar batendo num bordão histérico. Também não dá resultado. Enfim. Então eu acho que a escola aconteceu, nessa época, nesse momento florescente de opção cultural, de opção, e virou, aconteceu ser uma oficina, um laboratório vivo onde as coisas ocorriam, se trocavam, artisticamente, culturalmente, politicamente. Eu me lembro a famosa, a coisa que está gravada em filme e vídeo, a famosa mobilização em torno do incêndio do MAM. A cruzada. Confesso que dela não participei. Eu tenho uma horas que eu fico um pouco, meio nervoso. O absurdo chega a um tal ponto que você fica meio, eu fico, meio assim resguardado. O Rubens não, transformou num estandarte, relevou a escola inteira lá para o MAM, enfim, na defesa, no resgate daquela perda louca que foi o Torres Garcia, aquilo é uma coisa, enfim. Enfim. Mas, a escola foi lá. Não há nada mais educacional do que isso na minha opinião. Embora não faltasse, embora não faltasse também, essas coisas, também não é nenhum espanto, embora não faltasse as discussões provavelmente teóricas, como se diz. Mas não as teóricas, aí sou eu, mas não as teóricas vagas, difusas, mas as teóricas básicas. Eu me lembro por exemplo de duas grandes visitas, de várias, mas eu me lembro de duas, agora me lembrei de mais uma, que foram por exemplo a Lina Bo Bardi e o Mário Pedrosa. E o Mário Pedrosa, ele era..... Eu tenho uma coisa, hoje em dia eu sou mais compenetrado um pouco. Na época era um pouco moleque. E tem uma coisa que era o seguinte, eu sou o melhor freguês de debate do mundo. Porque assim que o expositor acaba de expor, dá aquele vazio, ninguém pergunta nada, fica um clima meio assim. E eu de certa maneira escolado, eu debate comigo é um show. O cara acaba de falar e eu levanto logo o dedinho e pergunto qualquer coisa, vá diz um absurdo qualquer entendeu? Mas eu fui fazer isso com o Mário. Levei um carão, fui fazer uma gracinha com o Mário Pedrosa, ele olhou de banda assim para mim, entendeu, tipo "quem é você engraçadinho?". Enfim, teve a Lina Bo Bardi, que foi uma coisa também, enfim, eu não vou aqui reproduzir todos, eu peguei assim. E teve o nosso querido Cacaso também na época, que aí já é mais minha turma, aí posso fazer a molecagem que eu quiser que ninguém reclama. Não, o Mário Pedrosa ele olhou para mim, eu acho que ele até se ajeitou assim, porque eu estava do lado do palco como se diz. Era aqui em baixo.
CLARA GERCHMAN: Tem fotos?
SERGIO SANTEIRO: Oi? Tem fotos. Eu acho que ele virou até assim para mim. "Qual é a graça, não é não, qual é a graça que eu não entendi?". Quem manda folgar. Enfim. Então eu acho que tinha a mistura dessas coisas todas e nesse espaço. Sem esquecer coisas, tipo, eu me lembro do Gastão Manuel Henrique que era um grande escultor, como se diz, originalmente. Quando ele veio para cá, ele criou uma oficina 3D, porque esse conceito de escultura estava meio contaminado, estava meio impregnado. Ele estava organizando, organizando não, ele estava criando um espaço tridimensional realmente. Então aí não era oficina de escultura, era oficina de 3D. Você teve a Celeida com a cerâmica que era uma coisa digamos, lá vou eu. Graças a Deus, ela não vai olhar para mim torto. Aliás ela nunca olhou torto. Os velhos é que são bem impacientes. Eu já estou impaciente imagina o Mário Pedrosa. Mas a Celeida, por exemplo, aí andou a coisa mais tosca, eu quase diria, isso é um punhado assim, amassa um punhadinho de barro e pronto, você já tem algo. E aí tu vai transformando isso ao longo do tempo. Ou seja, não era nada assim, formalmente formatado como estamos aqui ministrando o conhecimento, o escambau. Não era bem isso, era uma coisa meio assim, todo o mundo descobrindo, experimentando. O Hélio Eichbauer com seu extraordinário, era aqui. Extraordinário, era um espetáculo, era uma coisa e era todo o mundo, era gente que não tinha a menor digamos, formação. Ás vezes até nem intelectual. Aí juntava todo o mundo, parecia uma aula de ioga, parecia uma aula de ginástica entendeu? Era uma coisa meio assim espacial, meio com coisa de expressão corporal , meio dança. E o Hélio, ele deixa acontecer tudo. Não, vai acontecendo, vai acontecendo... aí ele vai regendo. E fazia os espetáculos dele aqui. Eu já me referi a isso, que eu fui deslumbrado com aquela coisa de cinema, cinema. Aí um dia era um espetáculo se não me engano, era uma aula espetáculo seminário do, se não me engano do Paul Klee. Aí era o seguinte, se eu não me engano também porque não sei se eu estou juntando um com o outro misturando. Mas aí era o seguinte, tinha uma exibição aqui no pátio da Joana D'Arc do Dreyer, se eu não me engano. E aconteceu uma coisa em que eu fiquei, eu que sou da área, eu fiquei boquiaberto. O Hélio construiu um circulo de filó com uma haste enorme, um circulo que era um coisa assim. O filme sendo projetado e ele começou a decupar o filme com a haste de filó entendeu? Porque no que ele punha a haste de filó num pedaço do filme aquilo virava um close. Não é? Eu fiquei embasbacado, "que coisa, que coisa", e ele movia com êxito, ele tinha uma coisa, não era ríspido, não era uma invasão. Era uma coisa que fluía junta, trazia a imagem, imagina aproximar, o Dreyer é todo close. Então imagina aproximar o close do Dreyer. Era isso. Por exemplo, no caso do Hélio. Enfim. Todo o mundo.
BERNARDO: Sérgio, como é que você achou a oficina, voltando a um assunto que você falou antes, que os filmes eram feitos a partir de um auto financiamento, auto sustentabilidade. Como é que você lidava com a questão, sendo o cinema tão hierarca com questão de produção, funções, como é que era isso dentro da oficina, os alunos faziam tudo, como é que era essa divisão de tarefas de produzir esses filmes.
SERGIO SANTEIRO: Não, eu infelizmente, eu não sou, como eu digo, eu sou muito engraçadinho mas eu não sou muito competente entendeu? Eu não sou um bom executivo. Eu sou um bom agitador. Agora os finalmente eu fico meio trôpego. Eu acredito muito que cinema é uma atividade coletiva. Ninguém faz cinema sozinho. O que mais chegou perto disso foi o Chaplin que fazia tudo. Mas desde ele acho que não. É uma atividade coletiva, de grupo, de troca, de equipe. É que nem o futebol. Equipe. Não é uma coisa meio assim, não adianta você ficar fazendo muita estratégia. Corre por aqui, cerca por ali. Não adiante, entendeu? Isso tem uma química local, instantânea, momentânea. Em que um tem de sacar qual é a do outro e trabalhar em conjunto na melhor das possibilidades. Ás vezes tem neguinho que dispensa. Faz gol sozinho. Pode ser, sei lá. Mas para cinema, essa coisa, esse conceito, essa ideia de equipe é fundamental. No mínimo você tem três artífices brabos que são o diretor, digamos, o fotografo e o montador. Isso é uma coisa. Os filmes resultam dessa troca. Então o que acontecesse simplesmente é que nem, é tipo barata voa. Eu jogava o mote, então quem pegasse tocava o barco. Não emitia muito. Aliás não emito. Eu não gosto que se metam nos meus filmes, imagina se eu vou me meter no filme dos outros. Deixa rolar. O resultado é sempre mais surpreendente do que você previa. Isso acontece comigo, com os meus filmes. A coisa mais extraordinária é você ver a primeira cópia do seu filme. Hoje em dia, isso é mais banal. Mas digo, na época, você ver a primeira cópia do seu filme era uma epifania, entendeu? Porque é muito melhor do que você imaginava porque é real. O que você imaginava era legal, tudo bem, eu imagino, pode imaginar o que você quiser, agora vai fazer o que você imagina. Aí todo o mundo diz, aí fica aquém do que você imagina. Pode ser. Mas quando fica materializado, que sai de você efetivamente, está lá, é fantástico. Porque ele te retorna coisas que de repente você nem estava prevendo. Então esse jogo de equipe, de motivar, a construção das atividades comuns entre os chamados estudantes, os alunos, é que era mais ou menos o que eu fazia. Não era muito, alias essa época, era uma época que eu andava um pouco nervoso ás vezes, tinha umas coisas meio, não dava para explicar muito, e inclusive a maioria dos filmes que eram exibidos como eu já disse, eram filmes tidos meio como problemáticos. Muitos deles eram censurados inclusive, tinha a famosa bravata minha na época, isso daqui é um, isso daqui é um prédio do governo estadual, a censura é federal, então não tenho de prestar contas para a censura que é federal. Aqui é estadual. Se quiser entra aqui. Manda entrar aqui. O que aliás remete para o fecho da Escola de Artes Visuais que eu não deixarei de mencionar embora seja polêmico, eu não sei se é público, eu não sei o que é que é. Tem algumas coisa que eu não sei se é, não sei se é do conhecimento geral. Não sei se é conveniente. Paciência, a essa altura. É um testemunho, entendeu? Que por exemplo foi o fecho da escola, o episódio de fechamento da escola.
CLARA GERCHMAN: Tinha a questão do filme também, de não passar filme estrangeiro, aproveitar e passar os filmes nacionais.
SERGIO SANTEIRO: Que é o famoso estandarte. Você sabe que eu acho que uma das coisas fundamentais em arte, e o espírito da escola também caminha nessa direção. Eu não sei se tudo na vida, mas a arte sem dúvida ela é mimética. Você faz alguma coisa para copiar o que você viu que você gostou. Então é isso, eu fui fazer cinema porque eu vi, primeiro o Tico Tico no Fubá com a esplendorosa e extraordinária Tônia Carrero no topo da sua beleza. Eu fiquei apaixonado, ela menina. Fiquei apaixonado, sabe o que é que é apaixonado? Nunca mais eu fiquei apaixonado. Era a Tônia Carrero, esplendor... a branca, na história do Zequinha de Abreu. Com o outro. Esse era homem, então, mas era, maravilha. Tão assim que até esqueci o nome, mas enfim. Anselmo Duarte. Olha que dupla. Vale qualquer dupla de novela. Isso é o Tico Tico no Fubá. E depois o Rio 40º do Nelson Pereira. Que eu vi no Cinema Copacabana, lá em Copacabana e saí do cinema, estava passando um bonde, que ali passava bonde. Estava passando um bonde igual ao filme. Aí eu corri para pegar o bonde andando que nem no filme. Mas felizmente eu não caí do bonde, nem fui atropelado pelo ônibus que nem no filme. Mas então, eu acho que tem essa coisa muito mimética na verdade. Você faz. Eu também era metido, a primeira coisa minha, aliás eu acho que eu sou mais isso até do que cineasta como se diz. Eu gosto mais de literatura para dizer a verdade. A minha paixão inicial, acho que eu tinha uns quinze anos foi o Camões. O Camões dos Lusíadas. Aí eu fiquei copiando os Lusíadas, fazendo igual, fazendo igual, querendo fazer igual. Eu acho que isso vale para as artes em geral, então você se defrontar, você oferecer aos chamados alunos, você oferecer o que se passa na área era mais ou menos o que eu pensava. E inclusive contrariando muito a tendência do gosto comum que é essa coisa de cinema que é um horror, ficar vendo. Uma porrada de filmes. Aí tem essa história meio que não é nacionalismo não. Como eu digo é nativismo. O meu conceito é nativismo, não é nacionalismo. Mas eu não tenho mais tempo mental, aliás nem tinha para incorporar, integrar a história do cinema universal. É muita coisa, não cabe num pobre ser humano que é meio uma zomba, meio moleque de rua. Você imagina eu agora vou ter que. Então eu fiz todo o calvário na cinemateca, vi tudo. Mas você não tem, você não fica emantado, você não fica provocado, você não quer fazer igual. Por mais que seja genial. A mim pelo menos, não me tira da poltrona. Ao passo que botou uma carinha, botou qualquer criolo na tela, eu já fico achando que eu estou em casa. Agora eu já estou gostando, agora já está parecida. Agora eu quero fazer também. E eu acho que era esse espírito que constituía a experiência da oficinema. Era um vamos lá, vai empurrando, vai levando, vai tocando, vai tentando fazer, vai aprender fazendo. Super-8 não exige maiores conhecimentos. E, finalmente chegou o momento, que foi o topo do curso de repente, foi quando 2 dos queridos mais ativos, militantes dessa atividade aqui, eles iam fazer um filme. Eu tinha ganho um edital da Funarte para fazer o Ismael Nery que eu fiz, aliás, bom isso eu não posso falar porque enfim é muito comprometedor. Eu me apoderei do exemplar do Ismael Nery do grande, para fazer as reproduções para o filme e tudo. Nem dei crédito e tudo. Que horror. Me apoderei do Ismael Nery, mas também não é um pecado tão grande porque ele jogava tudo no lixo, então, era como se tivesse pegado do lixo. Mas não é muito correto dizer isso, ainda mais um professor da minha altura, ficar dizendo que roubou que fez isso, fez aquilo. Embora, um dos meus grandes ensinamentos fundamentais. Assim, para fazer um filme vale tudo, pode até roubar. Não pode vender a mãe porque é desagradável, só tem uma. Agora esses corres de pegar sobra de negativo, dar um banho no laboratório, não é um pecado tão grande assim. Desde que faça a porra do filme. Se não for para fazer aí é um crime horroroso, hediondo e o diabo. Mas se for para dar resultado. Não tem problema não, pode dar uma, pode ser, pode transgredir um pouquinho que não mata ninguém. Enfim isso tudo era o caldo em que ao mesmo tempo eu tentava apresentar questões. Eu falo muito, tenho esse problema. Não aqui. Eu sei, aqui, mas garotada, imagina o cara entra num surto e fala duas horas. Aqui ninguém aguenta. Imagina, pode ser um gênio mas quem aguenta. Ninguém aguenta. Aí fica aquele ambiente pesado, aquela coisa sai um, sai outro. Agora eu nem presto atenção.
BERNARDO: Posso então aproveitar e te dar um gancho aqui. Eu queria que você falasse um pouco do papel que, segundo você diz no texto, no seu texto, foi fundamental, do Cineclube. Como funcionava a dinâmica do Cineclube, qual a sua opinião assim, quais eram os encontros que você consegue dizer que aconteciam no Cineclube que faziam ele tão fundamental.
SERGIO SANTEIRO: Bom, em primeiro lugar a grande preocupação como eu disse era de censura em coisas de produção. Ou seja, não se bastar na coisa de ver os filmes nem de debater os filmes, o que era um pouco difícil como eu comentei. É muito difícil. Até na roupa se você não tem uma formação, se você não está intimo com aquilo, é muito difícil você falar qualquer coisa de um filme que você acabou de ver. Ainda mais nos filmes esquisitos como eram os filmes que a gente passava. Porque inclusive eu estava assim numa ótica meio negativa. Não sabia se era filme, aquela discussão. Certamente que não era. Não era filme estrangeiro, que neguinho já está mais ou menos amaciado embora não saiba o que é na minha opinião. Como eu costumo dizer, se você está filmando em Nova Iorque, você tem um plano de carro em Nova Iorque e de repente neguinho corta para o deserto na Califórnia, o público brasileiro não vai achar aquilo estranho. Uma continuidade normal, o carro estava andando, virou a rua, virou a esquina, caiu na Califórnia. Legal. Agora, faz isso aqui. Sai do Leblon, entra na Lagoa sem avisar. O cinema vem abaixo, o cara é maluco. como é que foi. Tem essa coisa. Não, é impressionante. Isso você bota numa escala, vira um terror absoluto. Então, isso tudo faz parte de você insistir um pouco na coisa do filme brasileiro como eu digo. E eu insisto, não é nacionalismo, é nativismo. E aí eu tenho o meu querido ícone que aliás nunca veio aqui por sinal, não é por nada. Eu não fazia muita questão de trazer gente de fora não entendeu? Sinceramente. O meu barato era ver se as pessoas se motivavam internamente. Se quiser trazer, traz. tem um episódio genial aliás com... o que não falta é história, eles foram 3 anos, 4 anos...
BERNARDO: Conta elas.
SERGIO SANTEIRO: Imaginou? 4 anos, imaginou, 4 anos? Duas vezes por semana. Além dos... e tem história. Tem umas histórias escabrosas também, mas enfim. E quando, e quando, e quando virou espaço de show, no finalzinho, cruzes, virou uma doideira. Teve rock punk, qualquer coisa, virava uma coisa.
BERNARDO: Você consegue lembrar por exemplo, de alguma situação em que você quando passou os filmes proibidos aqui, esses filmes nacionais, que tinham dificuldade de chegar lá fora. Houve alguma situação de alguma tentativa de censura ou proibição? Não.
SERGIO SANTEIRO: Nenhuma, nenhuma, nenhuma, nenhuma, nenhuma. É como eu falei um pouco entendeu, isso daqui é um prédio estadual. A censura é federal. Tem umas tecnicalidades de segurança que são engraçadas. Então isso é um prédio, o prédio, da porta para dentro, ele é estadual. Da porta para fora, o parque e o diabo, é área federal. Aí que eu não vou antecipar o fecho, eu queria guardar para o fecho, o esplendoroso, o fecho da escola porque isso tudo vai ficar um pouco claro.
BERNARDO: Então eu vou te... deixa essa história aí para você guardar.
SERGIO SANTEIRO: Tem uma história do rigor do Rubens que é genial que tem a ver com a maneira, com o curso como funcionava. Então era assim, ás terças-feiras era preparação da sessão de quinta-feira. As sessões de cinema eram às quintas-feiras. De preferência aqui no terraço. Aí tinha projeção de 16mm. Eu não sei se vocês conhecem os 16mm . Essa coisa fantástica.
BERNARDO: Arcaica.
SERGIO SANTEIRO: Aí tinha que trazer o projetor, instalar o projetor numa torrinha alta. Tem umas cadeiras, sei lá o quê, a tela, a tela é um problema. Tela é um problema. Mas tinha na época uma figura aqui, bom, está vendo como é, a gente sempre fala dos professores, dos alunos notáveis, etc. Mas tinha a turma da pesada cara. Sem a qual não se faz absolutamente nada. E eu tinha assim um anjo protetor que era o Abraão. Abraão era um compadre mais negro que eu, propriamente negro. Eu disfarço mas enfim, ele era mesmo. E ele, acho que ele era tipo assim um auxiliar, uma coisa assim, de cenografia da Globo. Mas ele era funcionário aqui. E ele não sei por que simpatia de repente, bom, porque eu também faço isso, eu sou incompetente total. Não consigo botar, eu não boto a coisa, como é que, a tomada na coisa, porque eu acho que vai explodir tudo. Eu não olho na câmera, eu não aperto nada, entendeu, eu tenho medo. Não aperto, porra uma vez eu escrevi uma coisa genial entendeu, umas 3 laudas extraordinárias, um pensamento sublime entendeu. Esbarrei na tecla errada do computador, sumiu tudo. Está vendo? Não é possível. Então eu sempre delego, delego, delego. E tinha o Abraão que, o cara era gente, como é que chama, sangue bom. E o problema era esse, montar a sessão aqui, era eu? Imagina. Ele é que montava. E tinha o diabo, aqui é genial, ao ar livre é muito bom. Agora tem vento. Monta uma tela com vento para ver o que é que é. Mas tudo corria muito bem, ele montava o próprio projetor. Projetor de 16 mm, sabe que eu nunca consegui passar essa experiência para os meus queridos alunos. Porque esses meninos são meio complicados. Eles querem discutir a metafísica do sistema da simbologia do parangolé da tela. Da imagem, do personagem, do roteiro, essas bobagens todas. Agora, montar, botar o filme no projetor, ninguém sabe ou quer saber. Se precisar usar projetor 16mm... é muito bonzinho. Ele tem dois probleminhas. Primeiro ele tem vontade própria como qualquer máquina. Máquinas têm vontade própria. Não adianta você contrariar a máquina porque ela só vai fazer o que ela quer fazer. Então você montar o percurso do filme no projetor de 16mm é caprichoso porque dá uma folga de som, fica fora de sinc. Apenas. E pior. Se tenciona o filme e quebra, o filme quebra. Bom, nunca convenci convencer nenhum aluno disso. Eles achavam que era Deus que provia, era uma mágica. Mas já o meu querido Abraão não.
BERNARDO: Não é à toa que o nome é bíblico.
SERGIO SANTEIRO: Você sabe que, aliás acabei de publicar hoje a respeito da greve, um texto chamado "Viva a Greve". Acontece o seguinte, trabalhador, cara, é uma coisa muito séria, porque o cara gosta do trabalho dele, independente do que seja. Pode ser até um trabalho, eu vejo, via, na época morei em Charitas em Niterói. Eu saia cedo para comprar pão assim, que era um pouco longe, aí passava o caminhão do lixo. Um caminhão com os lixeiros todos de abobora. 6 horas da manhã, ou antes, não sei. Os caras na maior sacanagem, mexendo com todo o mundo. Alegres, brincando, sacaneando todo o mundo. Isso é um trabalho, claro, são trabalhadores. Aliás se não for lixeiro, isso vira idade média. Já imaginou? O resto é dispensável mais ou menos. Então tem isso, eu acho que todo o trabalhador em qualquer escala gosta do seu trabalho. Mesmo que não. Mesmo que o trabalho seja meio, sei lá o quê. Mas acho que tem isso, eu acho que tem a coisa do artista, e o cara fica sempre burilando uma coisa. Sempre inventando a malandragem, tem uma coisa. Ele tem de dar um toque pessoal e isso faz parte. É isso mesmo. Então, a confiança do pessoal daqui para não falar da nossa querida cantineira na época. Uma velha, eu adoro velha preta assim, pode ser mulata, mas eu gosto de preta assim. Aquela velha bojuda, que tem corpo, não é uma anônima. E ela cuida da cantina, aí tinha um PF entendeu, famoso PF. Nessa época que eu era, acreditava no futuro quem sabe, aí era uma loucura, porque eu dava aula aqui, na UFF e no CUP que é em Jacarepaguá. Então tinha uma corrida ás vezes. No final tudo dava certo, mais ou menos, mas enfim. Mas no que eu chegava aqui, algumas vezes acontecia isso, se eu chegasse mais cedo tudo bem, mas se eu chegasse no horário de aula... ai, que pecado, esqueci o nome dela.
BERNARDO: Da cantineira?
SERGIO SANTEIRO: É.
CLARA GERCHMAN: Tinha um bolinho também muito bom, parece que ela fazia.
SERGIO SANTEIRO: Não, era uma coisa. Aí tinha entendeu? Nem que eu fosse lá pedir uma água. Porque eu chegava meio corrido. Não meu filho, você é muito magrinho. Vou fazer um prato para você. Fazia um prato de estivador para mim. Porque eu era muito magrinho. Aí ás vezes, em algumas ocasiões, não tinha jeito, eu pedia licença aos meus queridos alunos, "vocês desculpem mas eu vou comer, vou almoçar na frente de vocês, se vocês estiverem aborrecidos vão passear. Se quiserem filmar também podem. Mas eu vou aqui liquidar esse PF aqui dela". E era fato isso, liquidava o PF por maior que fosse. E lambia os beiços, achava ótimo. Por quê? Posso revelar para vocês o segredo da vida?
BERNARDO: Por favor.
SERGIO SANTEIRO: É bom tratamento entendeu? O que eu mais gosto na vida é de ser bem tratado. Não interessa aonde. Se eu for bem tratado eu fico radioso. Se eu for mal tratado eu não volto. O Buda de calçada. Você pula para o outro lado. Mas era uma coisa... então, volto. O que acontece então. Aí conceituando. Eu acho que Rubens conseguiu construir um reduto humanista no meio da barbárie que é aquela época em que se vivia. E de repente, aí vou para o fecho, não que seja o fecho, mas eu vou para o meu fecho da história toda por que é um, foi um grande símbolo isso tudo. Vocês sabem que o Rubens como as artes eram protegidas pela mulher do governador que era o truculento...
CLARA GERCHMAN: ... Grisolli, Paulo Grisolli...
BERNARDO: Não, o Grisolli era o secretário.
SERGIO SANTEIRO: O Grisolli também aprontava umas. Eu não recrimino. Chagas Freitas, que era um biombo da ditadura, tinha aquela coisa podre da área podre dele, daquela imprensa privada. Espreme, sai sangue. Que era dele, O Dia. Tinha lá, sei lá, era as categorias sociopolíticas, era um, como é, era um, populista de direita, o Chagas Freitas. E que caia muito bem com o regime e tal. As coisas combinavam bem. Porém, a mulher do Chagas Freitas, dona, de repente até eu me lembro. A mulher do Chagas Freitas era protetora das artes. Honestamente, sinceramente, não era uma coisa fajuta não. E foi ela que acatou um pouco essa experiência do Rubens. Bom. Quer dizer a escola, tudo isso, se deveu também à permissão da primeira-dama do Estado, num governo que era um governo estadual, o Chagas Freitas, que era um governo no mínimo promiscuo com a ditadura. Isso para dar, traduzir de uma maneira...Embora não me conste que ele tenha mandado torturar ninguém , entendeu? Mas, sei lá, enfim, coisas da época. E aí deu-se o epilogo da escola que eu não sei se é do conhecimento geral. Pelo menos, a versão que eu trago. Que um belo dia, uma prática corriqueira na escola e tal, embora o Rubens, ao que eu saiba, sempre foi refratário, o Rubens, ao meu ver, o Rubens nem bebia direito ao que eu saiba. Nem beber ele bebia. Podia, sei lá, beber um pouquinho, mas não me consta que ele bebesse. Drogas então nem pensar, ao que me conste, entendeu? Nem pensar. Mas também não se incomodava com coisa nenhuma. Rola, rola, rola, rola. Eu acho que ele já era entendeu, energético demais, entendeu? Para poder alguma, aditivo aqui, não bota aditivo não por que vai voar. Dispara que nem foguete. Mas havia um ambiente permissivo claro. Era uma coisa da época. Até que um belo dia, no final, enfim, 79, no final o ambiente, em geral ambiente externo era bastante opressivo. Inclusive nisso. Como sempre, pega a garotada. Dá porrada, essas coisas. O cara com uma bagana entendeu, vai parar em Bangu01. Espanto geral. Aí porra, aí numa dessa aí consta, eu não estava no momento aqui. mas eu imagino a cena. Aí entrou um menino correndo para dentro da escola, por que estava com maconha, não sei o quê, uma merda assim. Aí a patrulhinha, que é a federal, aliás a federal não, estadual, porque a Polícia Militar é estadual. mas no ambiente federal que era o entorno, que era o parque. Aí o cara, da patrulhinha entrou atrás entendeu? Aí o menino se escondeu, sei lá para onde ele foi . E o cara da patrulhinha foi atrás. Aí o seu Rubens ficou sabendo. Mas ele saiu numa velocidade do escritório dele aqui debaixo. Mas ele saiu, mas que nem uma coisa, assim bufando e disse "porra, rua", expulsou o cara da patrulha, "rua, fora". Expulsou, escorraçou o cara da patrulhinha. O cara da patrulhinha foi embora e tal. E é claro que deu parte ao comando da polícia. Aí o comando da polícia botou na mesa do governador, assim "faz o quê com isso?". Criou um impasse. Demite claro, imagina. O comando da Polícia Militar dá para encarar o comando da Polícia Militar? Até hoje não dá, está complicado.
BERNARDO: Aproveitando que você estava falando do Rubens, dessa questão, desse episódio que você contou, queria que você contasse outro episódio, contar esse outro episódio do cartaz aproveitando para falar sobre esse Gerchman que era zeloso e exigente com os alunos e ao mesmo tempo um homem carinhoso assim.
SERGIO SANTEIRO: É. Carinhoso eu não sei. O Rubens, ele era meio bruto. O Rubens era um pouco assim. Mas era afetivo. Afetivo. Carinhoso, não sei. Não, por que a gente tinha esse rigor de formação, que é como eu falei, é gráfica. Gráfica você não pode errar. Imagina se tu erra. Tinha aquela coisa, e tinha aquela coisa o perfeccionismo. A arte gráfica é perfeccionista. Ela não tem, tu não dá uma pincelada. É uma coisa, se bem que pincelada também não se dá à toa, mas enfim. Então, eu acho que tinha um rigor assim de base. Para não falar genético. Complicar a conversa. Mas que tem, tem. Aí o que é que aconteceu. Um dia, os meninos na faina normal do curso que era terça-feira, era programa, tem um filme, faz cartaz, distribui, aí pelos pontos, o cartaz era um A4, uma folha de A4 mimeografo elétrico. Do Rubens. O mimeografo elétrico estava na sala dele. Elétrico, mas a tinta. E aí, como tinha muita gente que tinha, tinha gente, meus alunos, uma gente que tinha, que já tinha uma vida autoral própria. E aí, ali naquela coisa, cartaz, "alguém desenha cartaz aqui", "não deixa comigo", aí ia fazer coisas extraordinárias. A coleção de cartazes é lindíssima. Tosca, tudo tosco, tudo tosco. Mas nessa do tosco, e como ele era rodado na sala do Rubens, um belo dia a turma lá que tinha feito o cartaz para, tinha feito a matriz para rodar na sala do Rubens foi lá rodar e voltou todo o mundo cabisbaixo assim. "Mas o que é que aconteceu?", "O diretor gritou com a gente, expulsou a gente da sala, diz que aqui não fazia", "Quem o Rubens?". Fiquei intrigado. Aí desci, saí daqui, fui para lá. Cheguei, "porra, o que é que houve?". Aí ele falou comigo quase que com a mesma grosseria com que ele falou com os estudantes. "Esse negócio desses meninos aqui com um troço emendado com durex, você quer que passe no meu mimeografo? Você está maluco, você não sabe ensinar", "Rubens, pô, eu ensino cinema”. Então faz o seguinte, "mas você assustou os meninos, você não sabe falar isso de outra maneira?". Ele ficou, aí ele "não...", "então tu vai lá e explica qual é o problema".
Aí ele foi, explicou tudo, aí tudo mudou, claro. Ele foi lá e explicou o que é que era esse universo da arte gráfica digamos assim para aquele bando de gente que queria fazer cinema. Eu acho que isso é uma das dimensões do ensino. É como eu digo da convivência, da relação no ensino de arte. É assim, é uma coisa que tem, e o pior é quando eu entrei na sala, ele virou para mim com uma fúria, eu disse "companheiro, que é isso companheiro". "Você imagina trazer um troço", um troço, "emendado com durex, você acha que vai passar na minha máquina, nunca, nunca". Enfim. Esse é um dos episódios. E depois se desmanchou claro.
BERNARDO: Sérgio, como é que você acha que o Cineclube e a própria, enfim as atividades, os shows, qual era a ressonância que isso tinha na cidade para além do Parque Lage?
SERGIO SANTEIRO: Pois é, na cidade como um todo não. Na cidade para fora não. Mas na comunidade artística, marginal, independente, não pode chamar de marginal, que ninguém gosta. Eu gosto do conceito. Mas ninguém gosta. Chamar alguém de marginal, neguinho vai ficar fera com você. Eu gosto do conceito, a partir do próprio Hélio Oiticica. O famoso estandarte, que é complicado. Famoso, seja marginal, seja herói. Que é uma baita evolução na época. Um pouco antes. Mas que era dedicado ao cara de cavalo então, é uma relação. Ás vezes o Hélio tinha essa coisa meio complicada um pouco, digamos. Mas a criação era indiscutível. Então essa história do conceito do marginal, eu particularmente acho que é interessante, é bom. Não significa bandido, criminoso, não é nessa faixa, que é o que todo o mundo, e nem é porque é fora de mercado, porque é anticomercial, também não é por nada disso, mas eu acho que é uma coisa mais próxima de uma certa autenticidade, de uma certa vivencia, do ambiente, menos que uma coisa meio acadêmica, meio nobre. Acho que tem essa coisa que é positivo. Mas ninguém gosta. Ninguém subscreve. E as exibições aqui então, os filmes seriam basicamente do que seria o cinema marginal na época. Era o quê, era Neville, o Rogério, o Júlio, e aí teve a famosa sessão maravilhas do terraço. Então, a tela era montada na base do Cristo Redentor, nada mais nada menos. É um bom enquadramento, tem uma tela, o Cristo lá em cima. É difícil de enquadrar no mesmo plano, muito grande. Mas enfim, então era isso, as cadeiras para cá, o projetor para cá externo, projetor com barulho. Não era tão barulhento assim, só um barulhinho de projeção, então está bom, barulho de projeção "está reclamando do quê?". Então não passa filme, vê televisão. Que não tem barulho. E um dia, era um filme do Júlio que foi inacreditável. Não me lembro qual deles, mas estava lá a tela montada e tal, uma noite nublada, legal. Só que de repente no meio da cena do filme passando, a lua resolveu sair de trás das nuvens e deu um banho de luz de lua na tela, interferiu na imagem, fez uma coisa assim, eu prendi a respiração. Sublime. No que eu contei para o Júlio depois, ele ficou encantado, "eu queria ter visto", "tu não vai lá", como é que, não vai lá então. Quanto a vir aqui tem outro episodio do meu querido Glauber Rocha. Que os meninos insistiram, os meninos queriam trazer gente de fora. Eu por mim. Faz a menor diferença, mas se quiserem trazer traz. Aí, tentaram combinar várias vezes. Eu não me lembro se alguma deu certo. O Júlio não. Não me lembro quem, não me lembro. E aí alguém lá, alguém encasquetou, o Glauber estava na cidade na época, alguém encasquetou em trazer o Glauber. "Não, ele garantiu que vem nessa missão, que vem", "está bom, ele vem, está bom". Claro que não veio, obvio. E aí como eu fazia, geralmente eu saia daqui numa extasiado, emantado, magnetizado com a coisa toda, qualquer que ela fosse, lá fui eu. Passei no Jóia, vai não sei lá onde, e acabei não, e meio que, não estava procurando não, mas um pouco assim, onde é que esse baiano se escondeu. Vamos ver. E aí, claro, estava no Antonio's, claro. Acabei parando no Antonio's, aí pedi a minha vodka no balcão, que era a minha especialidade. O Antonio's tinha uma coisa magnífica. Primeiro tinha o balcão cujo custo era baixíssimo e podia pendurar, tu pagava em 10 vezes, pira essa droga. Sentar na mesa é complicado, mas no balcão. E tinha um telefone também. Internacional. Você podia ligar para qualquer lugar do mundo, no telefone do Antonio's. De graça, de graça não, a conta ia para eles, eu não sei o que é que eles faziam com isso. Bom mas ninguém fez barbaridades na época. Ligava para não sei lá onde. Eu não, só ligava aqui local. Entro eu no Antonio's, uma mesa extensa com sei lá quem, sei lá quem, sei lá quem, e o meu querido Glauber no meio. Bom, isso vai me criar problema mas enfim, com uma loura espetacular do lado. Aí fui lá, peguei minha vodka e voltei. No que eu entrei no campo de visão, porque é um cineasta, sabe o que é que é campo de visão. As pessoas geralmente não sabem, mas o cara sabe o que é que está em quadro, o que é que está fora de quadro. No que eu entrei em quadro digamos assim, ele com aquela coisa, aquela bonomia, que lhe era peculiar, porque era uma gracinha, era um derretido na verdade. O Glauber, uma das qualidades, raras, do Glauber, o Glauber ria com os olhos. Os olhinhos é que riam, para qualquer coisa. Ele era bobo, qualquer coisa ele ria. Com os olhos. No que eu entrei, ele riu, disse "eu combinei, mas não deu para eu ir", e tal "porque sabe", "Glauber, eu sei, primeiro é que tu é baiano, para começo de conversa, acreditar em conversa de baiano é coisa de otário. Depois com essa loura do lado até eu ficava aí, não ia para ver filme nenhum." Deu um mal estar, que instituiu-se o mal estar geral, a loura só faltou m atirar a garrafa que estava na frente. E ele riu com os olhos e as gargalhadas. Foi o fecho da operação de ele vir aqui falar com os meninos. Episódios. Os episódios são sei lá, é mais que 1001 Noites, episódios não acaba, e olha que são os que eu presenciei, imagina o resto. Porque rolava o tempo inteiro, o tempo inteiro. Tinha gente chegando. O Rubens tinha uma coisa curiosa, ele fazia um pouco, ele claro que ele não, ele delegava em nós as funções e pronto. Não está nem aí. Cada um faça o que quiser, não tenho nada a ver. Agora ele fazia um pouco de anfitrião, ele gostava de visitar de levar gente, sem constranger ninguém, não é para patrulhar não. É porque ele achava, ele achava, e era, isso era uma das coisas dele, e era verdade. Quer dizer era uma espécie de regente desse espaço mágico que ele dava, ele empurrava todo o mundo.
Outra grande figura, outro grande marco naquele momento foi a Lélia Gonzalez, a negra arqueologia, a negra antropologia perdão. Arqueologia eu errei. Antropologia. Que foi uma coisa, na época, fundadora. A Lélia foi uma das, se puder dizer assim, quer dizer uma das continuadoras, fica melhor, do Movimento Negro na época. E que na época não era tão bem vindo, recebido, como é hoje. E ela era uma pessoa, ela era meio, a Lélia é um pouco sacerdotisa, ela tinha uma coisa também combinando com o espaço, ela tinha uma coisa, ela tinha uma impregnância meio mágica, uma coisa meio, acho que tinha uma coisa assim meio. E tinha uma grande generosidade também. É isso.
CLARA GERCHMAN: Houve uma oficina só sobre ela.
SERGIO SANTEIRO: Sim. Sim. E aí isso cabia muito bem na convivência com todas as outras pessoas. Roberto Magalhães. Roberto é uma coisa. Roberto é um doce, porque ele, bom, isso é meio estereotipo, não é ele realmente. Mas é aquela coisa, Roberto praticamente não fala ou pelo menos não falava. Mas tinha aquela coisa dele que era o mais mágico de todos de repente. Ou seja era o menos, vamos de quê, de realista, ou chamar de qualquer coisa assim. Ele era o mais. E aliás, agora vou me gabar um pouco, pode?
BERNARDO: Pode.
SERGIO SANTEIRO: Posso? Posso dizer quão maravilhoso eu sou? Por quê? Uma das noites de saída daqui, acabei de esbarrando no bar, que era um pouco território, de qualquer coisa. Aí estava uma mesa entendeu, tinha uma mesa assim, eu estava um pouco animado possivelmente nessa noite. Aí o Roberto pegou o papel do bar para rasgar uma folha de rascunho assim. Um lápis de cor que eu não sei como que foi parar ali, e fez um retrato meu, tipo Roberto, três traços eu acho, mas de cor. Aí me deu assim. Eu devia estar muito eloquente naquele dia. Sossega leão. Aí eu olhei assim. "Legal, Roberto, assina". Assina. Ele pegou, assinou, R.M.. Eu disse "Não, legal, por que isso vai valer uma fortuna, algum dia não, pode ser não é não? Agora, para você não achar que é melhor do que eu, eu também vou fazer um desenho para você." Peguei o papel também fiz um rabisco qualquer, assinei e dei para ele. Ficou entre nós, não é sério? Foi uma troca de artistas. Quem sabe o meu desenho, se sobreviveu poderá valer tanto quanto um Roberto Magalhães de repente. Não, eu estou brincando na coisa venal, mas entre nós, naquela época, naquele circuito, nunca teve nada disso. Aliás eles não têm, nunca tiveram mesmo. Não é uma questão dessa, não é mercado de arte, não. Ninguém ali estava, todo o mundo tem de estar, imagina. Mas ninguém é tutorado por mercado de arte. É tudo expansivo, é tudo afetivo e isso está aí, é um bom sinal que eu gostaria que ficasse marcado para tudo. Eu acho que o grande traço era a afetividade. Eu acho que era. Acho que todo o mundo, todo o mundo muito radical nas suas concepções, nas suas criações. Agora o barato era a afetividade que circulava vagamente entre todo o mundo que sem precisar se conhecer, trocar, era só o que faltava no Rio de Janeiro combina com alguém. Aqui, compadre vamos lá, vamos aqui, vamos ali, semana que vem a gente vai tomar um chope junto. Never, jamais en la vie. Claro, se não for agora é nunca, ninguém combina nada. Mas enfim, mas eu acho que tinha esse clima, que era meio que, acho que a grande reunião das pessoas naquela época era uma troca de afetividade esparsa, vaga, que não precisava ser de beijar, amassar, abraçar, não precisava de porra nenhuma. Era um conluio, conspiração, uma conspiração geral pelo melhor viver diante daquela conjuntura absolutamente trágica.
CLARA GERCHMAN: Falando em afetividade você pode falar alguma coisa do Roberto Maia.
SERGIO SANTEIRO: Aí é covardia, aí é vandalismo. Não o Roberto imagina. É muito grande, o episodio, o episodio Roberto Maia é grande. O episódio Roberto Maia começa assim. Primeiro lugar, embora não nos frequentássemos exatamente, mas éramos vizinhos. Eu morava na Felipe de Oliveira que é atrás e o Roberto Maia era da turma da Belford Roxo, que era uma turma meio pesada, barra pesada demais para o meu gosto. Eu sou uma pessoa muito delicada, não gosto de, eu até andei junto algumas vezes, mas eu não gosto de baderna, confusão. Não gosto dessas coisas. E o Roberto sempre foi uma figura, como é que chama, essa coisa magmática. Ele é meio fruto do vulcão, ele é meio expansivo. Também ele, é fruto de uma disciplina parental rígida, então não é, é um fotografo de formação. É que nem o Rubens. O Rubens com gráfica e o Roberto com fotografia. Mas ao mesmo tempo é um pandego, aquilo é uma coisa horrível. E, curiosamente, quando eu fiz meu primeiro filme que foi Paixão em 66 no Festival JB, um dos filmes participantes era o famoso O Ciclo que era de um grupo de três, Roitman, Reinaldo Marques e o Roberto que era o fotografo do filme. E o filme foi enfim, foi recebido de uma forma assim um pouco não entusiástica por que era um exercício formal, era formalista, etérea e abstrata, e naquela época de 76 o que valia era uma certa barra pesada, uma certa contundência. A fotografia era do Roberto. E os filmes foram revelados e copiados no famoso Lab 16 que era um laboratório que ficava na Rua Alice também genial. Isso tudo gente era a coisa mais genial que tinha, era a coisa meio carnal eu diria, era um laboratório para filme de televisão, porque os filmes de televisão eram de 16 mm, na época. Antes do videoteipe. E tinha esse Lab 16 que era meio assim, meio artesanal. O revelador era municiado por uma corrente de bicicleta. Apenas. E era ali, que era o mais barato que se fez, que se fazia a revelação e cópia dos filmes amadores na época, 75, 76. E coincidentemente no dia da cópia final acontecemos juntos, eu com o meu filme e Roberto e o Reinaldo e o Eric com O Ciclo. Nós dois, eu não me lembro qual dos dois passou primeiro, mas um dos dois. Um viu o do outro, o outro viu o do um, que, eu insisto, é a forma através da qual se estabelece a comunicação artística. É a convivência, a parceria, a confraria, é a quadrilha, podem chamar do nome que quiserem, é a máfia, pode ser o que quiser. Mas vimos os filmes juntos e eu impressionado, apesar de eu ser, sou um pouco metido a político e tal. E apesar do filme ser alienado que era a categoria da época, eu fiquei impressionado pela coisa, a forma. E ficamos muito amigos. Aí eu comecei a fazer filmes com ele, inclusive com ele é que eu tive a grande experiência definitiva na minha vida de cineasta, que é nunca olhar na câmera, porque a gente foi filmar o Guesa, o Sousândrade, lá no Maranhão. É aquela coisa, não sei se você conhecem, diretor de cinema é um bicho particularmente chato. Porque ele tem umas coisas, ele tem uma ideia, ele tem uma ideia que ele quer botar na tela, esse chato, esse pentelho, que ele quer a ideia dele, quer botar na tela. Tem um episódio semelhante que é o do famoso Joaquim Pedro na filmagem do Padre e a Moça. O fotografo era o Mário Carneiro. O assistente era o Pedrinho de Morais, olha o time. Filmando lá no caixa prego de não sei lá onde, do raio que o parta. Com a Helena Inês esplendorosa, e com tudo o que isso significa numa locação, mas enfim. Estava lá então Joaquim Pedro, Mário Carneiro, O Padre e a Moça que é um filme rigoroso, grego, com o Drummond por trás. O Joaquim Pedro mineiro, olha a encrenca, olha o tamanho da encrenca. Tem uma cena, que é uma cena da mineração que é um córrego com o Mário Lago, chacoalhando lá a água para ver se tem prata. Vai filmar a cena, vem o Mário Carneiro que é ninguém menos que o Mário Carneiro mas era colega de bagunça do Joaquim Pedro. Que não era absolutamente, o Joaquim Pedro, não era absolutamente a imagem que se faz dele. Joaquim Pedro era um pandego, era profano, era um bárbaro o Joaquim Pedro. Uma coisa horrorosa, com umas ironias devastadoras a ponto, quando ele abria a boca era um terror. Mas enfim. Aí o Joaquim Pedro vai filmar a cena lá na mineração, o córrego, vai o Mário Carneiro e bota a câmera. Postar a câmera. Aí chega o Joaquim Pedro "não, não acho bem aqui, eu queria mais para lá, mais para cá", não sei o quê, não era bem assim, tudo bem, "quer onde?", "bota para lá". Aí ele olha de novo na câmera, "não, não é bem assim, eu queria mais para lá, mais para cá", vira-se o Mário Carneiro para o Pedrinho, "esse filha da puta vai botar a gente dentro de água". Dito e feito, chega para lá, chega para cá, o lugar que o Joaquim Pedro achava que era fundamental, era dentro de água, claro o córrego passando. Bom, essa experiência que eu fiquei sabendo depois, eu vivi de uma forma suave com o Roberto que era isto também, que era uma cena lá no Maranhão, que é o diabo você filmar no Maranhão, porque é uma luz absurda. Ás vezes não dá para filmar. Não dá para filmar, por que, não tem luz? Não, tem luz demais. Não dá para filmar. Bom. Aí vamos lá eu e Roberto. Teve coisas incríveis tipo, eu queria uma cena, que é o início do filme, o Guesa que é um sobrevoo da região onde era a fazenda em que o Sousândrade nasceu. Então sobrevoou, a gente sobrevoou, avião, fomos lá, avião. Aí pegamos um piloto, e aí tinha um detalhe, era um avião de carga. Me lembro. Você virtualmente fica amarrado na cadeira. Por quê? Porque para filmar, não sei lá como, não sei lá o quê lá, isso é Roberto, tinha de ser sem porta. O avião. Avião sem porta. O piloto que era um tresloucado, alucinado, o cara, achou genial, "legal, vamos filmar sem porta, o cara ficou animadíssimo". E foi, e tem turbulência, essas chatices todas de avião. E o cara lá na maior, "baixa mais, baixa mais", enfim. Uma loucura. Transgrediu todas as normas de aviação. Podíamos todos ter morrido. E o Roberto filma aquilo ali. Tudo bem. Uma semana depois ficamos sabendo, essa é a nota trágica, ficamos sabendo que o piloto tinha perdido um filho que também era piloto, num desastre, num raio que o parta. O cara estava realmente querendo não é não, bom. Isso tudo é mágico, isso tudo é a forma, os filmes ganham forma por conta dessas coisas. Não é porque eu quero, não é porque eu acho. É porque é o que acontece. E aí então vamos lá, bota a câmera aqui, bota a câmera ali, vai para cá, vem para cá, não, não acho legal, troca a lente e tal e coisa. No final de umas duas ou três danças dessas, "não agora aqui está legal, aqui está bom". Pois é, é onde eles tinham botado a câmera primeiro. Já era, você passeou para lá e para cá, mas já estava desde a primeira, já estava ai. A partir desse dia eu nunca mais olhei na lente, nunca mais olho. Eu falo com o cara, "olha, eu quero isso assim", aí ele vai lá e vê como é que é isso assim na situação concreta. E pronto. E aí o que é que acontece, quando você, eu, o diretor, iluminado, o cara que tem ideias, quando ele vê o resultado, ele fica encantado porque conseguiu a melhor tradução possível para aquilo que ele queria sem saber direito como é que é aquilo que ele queria. Porque é o drama de todo o mundo. O Roberto foi um parceirão, parceiríssimo. E ele tinha essa coisa meio, e ele também, ele era operário da fotografia. Ele fazia painéis fotográficos para cenários da Globo na época. Na época. Por que não era esse delírio. Hoje em dia, tu liga a televisão, eu levo um susto, eu não consigo ver nada. Porque tem tanta coisa para ver no quadro. Trezentos penduricalhos, o copo que combina com o prato. É um inferno, é uma cenografia delirante. Na época não, era tempo de vacas magras, era logo no início, eram painéis fotográficos preto e branco. E o Roberto que fazia esses painéis, de virada na noite, o Roberto era especialista em virada da noite. Virou a noite, ele fica satisfeito. E era super também, imagina, teve uma paciência enorme comigo. Porque diretor é chato, então insisto nisso. O cara fica, "não". Mas também a pessoa é super, super, superafetiva. Há um outro lado da história. Ele é que a partir de uma certa época virou administrador do Parque Lage. Porque o meu querido Rubens acredito que, não sei se ele é pior, melhor que eu, mas é um desastre, se deixar rolar. Aí o Roberto é que fazia a produção. Caber o orçamento, essas chatices todas, organizar as contas, engraçado, além de ter sido a experiência dele formadora. Walter Carvalho, repete, foi o grande formador dele na ESDI, que ele foi professor da ESDI, o Roberto. Aqui foi, aqui era luxo, aqui foi um luxo para nós. Embora também não posso deixar de frisar, de ressaltar, que teve uma grande, o ápice, que aliás foi meio conclusivo também, convenhamos. Que foi quando eu ganhei um edital da Funarte para fazer o Ismael Nery, um filme barato. O mais caro do Ismael Nery era a truca que era do, esqueci o nome dele agora, que horror, que imagina, adorou fazer, claro, tu levas um problema artístico para um artista, ele adora fazer. Não está preocupado se tu vai pagar, não vai pagar, se vai ficar caro ou vai ficar barato. O cara entra no barato da história claro, imagina. Então foi assim, então sobrava uma grana do edital da Funarte, aí apareceu a dupla dinâmica do meu curso que era o Daniel Caetano e a Micheline Bonde que eu nunca mais vi, diga-se de passagem. Nunca mais vi. Que encasquetaram de fazer, a gente só tinha feito filmes super-8, eu tinha cedido uns negativos 16 para o Pel fazer a Rocinha que é um filme ótimo dele, que é de certa maneira fruto daqui também, do curso, mas o grande fruto finalmente foi um filme que eles encasquetaram fazer sobre o Frei Tito.
BERNARDO: Morto no exílio?
SERGIO SANTEIRO: É. Que eu já fiquei preocupado. Pior eles queriam que eu fizesse o papel do Frei Tito no filme. E você sabem que eu me presto a qualquer papel, não tenho a menor, tanto é que ultimamente eu tenho feito, os meninos lá da UFF, tudo bobeou, me chamaram para fazer filme, me matam no final, é uma esbórnia. A maior experiência anti-acadêmica. Na época eles queriam que eu fizesse o papel do Frei Tito, eu até aceitei. Aí no primeiro dia da filmagem, no que eu cheguei aqui eu disse, "olha sinto muito, mas não, não tenho estrutura para fazer isso, não isso é demais para mim". Aí eles chamaram o Nelson Xavier. Que é o Nelson Xavier. Não precisa dizer que é muito melhor do que eu seria, sem a menor dúvida. Mas a minha crise foi uma doideira. Eu entrei no Parque e disse "olha sinto muito, não", acho que eu fiquei uma semana bebendo para ver se esquecia o bode. Mas eles fizeram o filme, com fotografia do Fernando Duarte que fez essa participação esplendorosa também. Mais ou menos para o final eu acho. Que é outro. Essa gente, essa gente com quem a gente trabalhava, acho que todo o mundo com quem se trabalha, cria uma relação, eu insisto afetiva. Vira uma coisa, e essa coisa é eterna. Você pode encontrar dali a 50 anos, que o cara vai, outro dia, olha só, eu estava em Copacabana saindo de casa e tal, estava lá e me para, "você e tal, quanto tempo a gente não se vê", eu olhei assim tentando situar, ás vezes é difícil, nome, sobrenome e data é complicado. A partir de uma certa idade já fica meio, "você não se lembra de mim?". Eu lembrava dele, fisicamente a pessoa, “não por que a gente trabalhou junto na Atlântida no estúdio de som da Atlântida”. Meu Deus. Isso é anos 70. Aí ele "não agora eu estou aposentado, não mexo mais com isso." Ele estava muito bem, mais velho que eu. E estava muito bem. Mas era o técnico de som do laboratório. Eu estou falando do Abraão aqui, que foi um que eu falei. Não, tinha essa coisa, tem essa coisa que é uma certa parceria compadrio.
BERNARDO: Por que é que você acha que essa afetividade se perdeu? O que é que se manteve dentro de um espaço como o Parque Lage? Que aconteceu que isso não ficou como legado?
SERGIO SANTEIRO: Não, não sei não. Não sei não, acho que ficou sim.
BERNARDO: Acha que ficou?
SERGIO SANTEIRO: Acho que ficou sim, acho que fica sim. Aquela coisa, aquela coisa doida, como é que o Parque Lage é mágico. Você imagina, esse meu reencontro aqui. Você não estava na hora?
BERNARDO: Estava. Com o Pitanga?
SERGIO SANTEIRO: É com o Pitanga e com o Othon, porque o Othon, o Othon Bastos, todo o mundo fica o Othon Bastos, o Othon Bastos. O Othon Bastos é um moleque, o Othon Bastos quando vai filmar, ele fica aprontando um monte de gracinha com os outros, implica com os outros, ele fica se divertindo. Não é o Othon Bastos. E tem a famosa história de Deus e o Diabo que eu repito isso, isso é aula minha. Eu acho que as minhas aulas são as melhores aulas de cinema do mundo, modestamente. Porque não são minhas, é um bando de coisa que circula, que é isso, eu fico contando fofoca, contando história. Tem a famosa história com o Othon Bastos no Deus e o Diabo. O Deus e o Diabo foi filmado lá no raio que o parta, numa locação que não tinha nada, nada, nada. Tudo descolado, tudo aquela loucura. Aí a brincadeira, claro que alguém tinha de inventar uma sacanagem para poder não matar o outro na locação. Aí inventou essa história que era o Othon Bastos e o Geraldo Del Rey com o Maurição, com o Mauricio do Valle. Aí chegaram para o Mauricio do Valle, "Maurição, o Othon é brechtiano, o Geraldo é stanislavisquiano, e você, o que é que você é?", "não, não sei nada disso não, o que o seu Glauber mandar fazer, eu vou lá e faço". É por essa linha. Isso é o Othon, imagina que de graça, inesperadamente, os dois juntos, o Pitanga e o Othon, que é uma coisa, que é isso, que é essa, essa memória do tempo heroico. Não heroico de, mas o heroico do cotidiano, o heroico, tu faz uma coisa aqui, o outro faz outra coisa ali. E tem um filme meu que eu fiz na Cinemateca do MAM, tudo baratíssimo, na Cinemateca do MAM em som direto, que eu botei a câmera atrás do vídeo. Aí era som de estúdio, era um estúdio, com o Carvana e o Paulo José contracenando. Uma coisa meio malandra, meio coisa assim. Porque era o espírito da época, era uma coisa. Não tinha ninguém, eu não sei se até hoje é, eu não sei, eu talvez não saiba muito definir ou ver como são as coisas hoje em dia. E eu também não tenho nenhum saudosismo tipo naquele tempo é que era bom. Não, bom é todo o dia. Se todo o dia não for bom, imagino, o que é que faz, dá um tiro na cabeça. Todo o dia é bom. Mas tem aquela coisa meio nostálgica de repente. Mas mesmo assim a nostalgia, ela se desmonta. Não tem ninguém como eu canso de repetir para todo o mundo. Os meninos ficam meio deslumbrados, porque o fulano, beltrano, isso tudo a gente dividia PF na esquina, todo o mundo. Qualquer pessoa que você falar, qualquer um. Tudo dividia PF na esquina entendeu. Não tinha essa coisa. E não tem, engraçado. Aí é aquela coisa, você reencontra 500 anos depois e ainda existe uma certa afetividade guardada dentro daquele tempo. Em alguns casos isso é meio complicado. Mas em geral, aquela coisa, aquela convivência. Agora, eu acho que isso existe hoje sim também hoje. Só que muito mais multiplicado, muito mais disperso, digamos assim. Mas eu insisto, eu sou comunista, eu acredito no trabalho. O trabalho é que é a dimensão da vida na verdade. As pessoas com quem você trabalha cria-se naturalmente uma coisa, uma rede de afetividade. E que independe, não interessa o que é que está fazendo. Não é esse o problema, não é que o cara está fazendo uma superprodução. O Padilha que foi filmar o Robocop. Eu não gosto. Bom. Eu não gosto, não vi e não verei os filmes do Padilha. É muita violência para o meu gosto, eu sou meio recatado, eu não gosto de coisas de violência, eu tenho problemas, fico nervoso, então não vejo. Porque eu não sou burro de ver uma coisa que eu sei que vai me fazer mal. Mas a entrevista do Padilha no Roda Viva, recente, isso tem uns 2 meses, 3, é um prodígio. Ele explicando como é que é esses meandros do grande filme de Hollywood, do escambau, sei lá o quê, essas coisas todas. Como ele transitou nisso e gerou um produto que eu não vou ver, que eu insisto, não vejo porque não vejo. Não tenho obrigação de ver tudo. Se eu sei que me faz mal não vou ver. Não sou maluco, não sou masoquista. Mas a aula dele de como se faz. E ele, enfim, é um álibi que eu também tenho. Ele, eu tenho uma categoria assim, eu sou fiel seguidor, recaldatário e admirador dos mais velhos que eu. Indistintamente. Não tenho nenhuma censura, não tenho nem um filtro. Mais velho que eu, já paro para ouvir. Infelizmente a essa altura da vida, repliquei isso para baixo, então, os mais novos que eu, também têm que me ouvir e também não estou interessado particularmente. Então, espero que a vida ande, espero que se deem muito bem na vida, mas não fico de patrulha, porque o cara não é, está facilitando, o cara está fazendo comercial. Não, não é esse o problema, isso não é, cada um, sei lá, se desincumbe da melhor maneira possível. E o ambiente de trabalho, aí retorno eu, é fundamental. Seja numa escola, seja numa produção, seja qualquer coisa, eu acho que ele é que gera, eu acho que ele te realiza na verdade. Ou então está bom, também pode, monge Budista também vale, imagina o Roberto ficou anos. Então não se trata disso, não se trata de nenhum interdito de nenhuma natureza. Agora o fato que a convivência do trabalho, a necessidade de que aquilo gere alguma coisa é que eu acho que é o bom da história. E foi isso que a gente conviveu na época. O Rubens, eu teria muito mais coisa para falar, para dizer a verdade.
BERNARDO: A Clara tem um grande finale aqui para você.
SERGIO SANTEIRO: Mas não se impressionem com as maritacas, elas fazem parte do cenário. Não é porque no outro dia tinha alguém no Facebook reclamando das maritacas. Eu disse "meu bem, não faz isso".
CLARA GERCHMAN: Vamos falar rapidamente daquela história daquele trabalho que vocês dois fizeram juntos? Que é o Gabeira...
SERGIO SANTEIRO: ... o famoso...
CLARA GERCHMAN: ... até que recentemente o...
SERGIO SANTEIRO: ... Os Desaparecidos...
CLARA GERCHMAN: ...tinha no acervo e pude disponibilizar aquele material.
SERGIO SANTEIRO: Os Desaparecidos foi uma coisa que, olha o artista gráfico quase que exclusivamente no caso. Porque não tem nada. Não tem nenhum pincel dele. É o conceito e a montagem. E aí aconteceu isso. Eu acho que já tinha escrito aquela história do Rosto na Multidão, eu acho que já tinha escrito na época, não me lembro. Eu sei que o Rubens falou disso, do cartaz Os Desaparecidos, que têm a ver com ele. Os Desaparecidos, as várias fotos de Os Desaparecidos. É um dos temas dele. Agora isso no âmbito estritamente político era uma coisa. E que ele não era tão professadamente político assim. No sentido estrito do termo. Isso foi uma surpresa de repente, essa coincidência que ele identificou entre, e aí fez a efígie. Que é um saque, porque a efígie é meio simétrica, tem um quê. A fotografia, ela é a mesma, claro que não porque tem a cara das pessoas. Mas a efígie é meio, é uma aproximação simétrica, é uma conjunção, que ele flagrou.
BERNARDO: Era o Zico e o Gabeira?
SERGIO SANTEIRO: Era. Aliás o Rubens gostava de futebol. Tinha uma série deles no futebol. Futebol é um dos temas dele desde o início. Tinha a coisa do jogador solitário. O Rubens tem uma coisa muito engraçada, ele tem razão. Eu me lembro o conceito agora porque virou, entrou em moda depois do, isso é Deleuze que é individuação, que é o individuo na sociedade contemporânea. O Rubens meio que antecipou isso do ponto de vista artístico, poético e tal, que era uma das preocupações dele.
BERNARDO: Você fez, tem um vídeo não tem, de você narrando poemas sobre Os Desaparecidos.
SERGIO SANTEIRO: Bom, voltando, porque eu tinha viajado e tinha ido muito longe. Aí o Rubens me pediu um texto. Escreve aí para mim. Aí ficou aquela coisa. Fui impregnado, fiquei impregnado. Aí um belo dia sentei e comecei a escrever o que eu escreveria sobre. Mas, manuscrito isso, eu tenho ainda, bloco de rascunho, que eu fui escrevendo e desenhando. Era escrevendo e desenhando, as ondas, tinha umas coisas assim, era tudo desenhado, enorme. Com lápis, desenhando e tal. E não podia corrigir , porque é obsessão que eu tenho há algum tempo. Não pode corrigir, não pode ficar bonitinho, não pode fazer bonitinho. Tem que confiar na mão no que vai pintando. Aí foi virando aquela coisa, foi virando aquela coisa enorme, até me lembro na época, minha mulher veio me chamar para jantar. Eu não, não. Não podia cortar o barato. E eu de fato como eu fiz questão de escrever isso, foi um período, foi direto, fui escrevendo de não sei que horas a não sei que horas. A propósito, o mote era o cartaz do Rubens. Mas aí ficou grande, ficou uma coisa grande. Quando ficou pronto, porque tinha também uns problemas de prazo, porque tinha de entrar na gráfica. A Gráfica Europa. Tinha de entrar na gráfica, está bom. Mas era grande demais. Porra, aquela merda, aí o Rubens, não, tudo bem, pegou e botou tudo no verso do cartaz. Ocupou tudo do resto do cartaz. Era para ser uma coisa assim. Fazer encomenda para maluco é complicado. O maluco resolve viajar e aí vai ter que aturar. Mas ele tinha essa coisa da parceria com o Armando que era, com o Armando era uma coisa assim, por que o Armando sempre fala, eles foram colegas de colégio desde pequenos. O Armando é o melhor interprete. Interprete., dessa viagem do Rubens. Eu biquei. Biquei no primeiro que é Um Rosto na Multidão e biquei nisso que depois eu fiz uma leitura, eu lendo. Quando ele lançou o cartaz foi na Saramenha, na época, na Gávea. Aí tinha lá o vídeo passando, eu declamando o poema. Perdi esse vídeo.
PEDRO: Resta alguma coisa dessa época, assim desses filmes que foram feitos nas oficinas?
SERGIO SANTEIRO: Não, pois é, não, dos pequenos desse período, não. Resta o Morto no Exílio.
BERNARDO: Você tem o Morto no Exílio?
SERGIO SANTEIRO: Está no YouTube. Porque aí os caras sumiram, aliás criou um problema.
BERNARDO: O Ismael está no YouTube também que eu vi.
SERGIO SANTEIRO: Está tudo no YouTube, não tudo meu está no YouTube.
BERNARDO: Tem o Morto no Exílio lá? Não tinha visto.
SERGIO SANTEIRO: Tem. Tem porque eu me apoderei do Morto no Exílio porque eles sumiram, e eu sou o produtor do filme, coisa séria. Produtor do filme é quem assina despesa. Eu não me meti no filme. O filme tem dois erros conceituais. Dois erros. Para mim grave. Na hora, neguinho que mostrou roteiro, que eu li, "olha isso não é bem assim não", "não, mas...". Que é a história da recepção do Tito na prisão. Que os presos políticos teriam brigado com ele porque ele era religioso...
BERNARDO: ... de repente ele ficou com a culpa de ter dedurado o Marighella.
SERGIO SANTEIRO: Não, isso é impossível, isso é impossível. Não essa coisa de que ele era religioso. Não é bem assim não. Mas os meninos resolveram fazer assim, eu disse "olha, isso não é bem assim não, não entre nesse assunto, que é um assunto perigoso." E tem uma outra coisa no filme que eu também disse "olha, também não é assim não". Mas enfim, eu só assinava cheque então paciência. E eles fizeram um trabalho lindo, um trabalho super, e com o Nelson, dispenso dizer. Nelson Xavier. Enfim. Isso eu acho que é o que ficou mais, é o que ficou. Além da papelada toda, enfim. Os cartazes. Mas enquanto filme foi isso que ficou mesmo.
PEDRO: Você tem uma cópia dele?
SERGIO SANTEIRO: Tenho, tenho tudo.
BERNARDO: Mas tem uma cópia melhor?
PEDRO: Mas tem uma cópia, que a do YouTube dá uma detonada na imagem.
BERNARDO: O YouTube piora, você tem isso em vídeo melhorzinho?
SERGIO SANTEIRO: Olha aí está vendo? Não, eu tenho.
BERNARDO: O arquivo que você gerou para fazer a cópia do YouTube?
SERGIO SANTEIRO: Não, sei, pois é, isso não tenho, Isso foi há muito tempo. Em segundo lugar, minha única virtude, ela é, esse filme é em 35, a preto e branco. É a única coisa boa que eu fiz na vida. Tudo meu de película, esta na Cinemateca do MAM. Está tudo lá arquivado, bonitinho. Uma época eu fiz para vender, eu fiz coisa em Beta digital. Não ficou tão, você acredita, não ficou tão bom assim não. Não sei não. Se fosse obsessivo, rigoroso, entendeu. Eu sou meio bandalha, mas por aí incomoda. Aliás nada que não é perecível, sabe que eu falo isso até para os meninos. Gente o que aconteceu com o audiovisual. Na minha época, seja em 16, seja em 35, tu pegava assim, tu abria a imagem, tu via a imagem, está aqui, tu via. Aliás o meu primeiro filme Paixão, eu montei no meu quarto em 16mm no olho. No olho. Quando coincidia a imagem com outra, eu cortava e emendava, era cola. Foi uma doideira uma época. E inteiramente enlouquecido. tem que dar certo. E o que é que acontece, eu falo para os meninos, não naquela época tu abria assim, tu via a imagem. Hoje em dia é essa fita cega, eu sei lá que tem alguma porra nessa fita, não é não? Não estou vendo nada. Bom agora nem isso, nem nada. Está tudo aqui, como está tudo aqui. Quantas horas tem? Toda a minha obra cabe num chip desses. 50 anos, já imaginou? Porra, passando, porra, maus bocados. Não bota essa bosta numa coisinha desse tamanho. Mas está tudo ali. Legal. Não, mas os filmes estão no YouTube. Agora, eu tenho, eu tenho cópia em DVD da matriz em Beta digital. A Beta digital eu tenho, mas ficou na minha estante, há mais de 5 anos.
WALTER CARVALHO: O que eu queria, primeiro assim, a minha relação com o Rubens não tinha uma relação direta com a escola. Eu frequentava a escola, eu nunca fui aluno da Escola de Artes Visuais a não ser na época do plano Collor porque no plano Collor com a brilhante ideia de acabar com a cultura, eu fiquei sem trabalho, era freelancer não tinha trabalho, não tinha emprego. E aí não tinha filme para fotografar, não tinha foto para fazer e aí fui para o Parque Lage me matriculei e fui para estudar, foi quando até me aproximei do Mollica. Mas eu estudei com o Luís Ernesto. E eu fiquei lá na escola, mas nessa época já não era mais o Rubens. Então eu fui parar na ESDI e consequentemente, eu fui parar não, eu fui parar na escola do Parque Lage por causa do Roberto Maia. Porque o Roberto era meu professor na ESDI e depois virou professor do Parque Lage, da Escola de Artes Visuais do Parque Lage a convite do Gerchman que eram amigos. Eu de certa forma, eu de certa forma, eu fui aproximado ao Gerchman por duas pessoas. Em primeira instância o Roberto que me apresentou aos dois, ao Gerchman e ao Vergara. E eu passei a frequentar a escola não como aluno porque eu nem tinha, porque eu estudava na ESDI e trabalhava, eu não tinha como pagar a escola e nem tinha tempo. Mas frequentava. Na época em que frequentava também era o Armando Fritas Filho. Então apesar de não ter sido aluno do Parque Lage no período do Gerchman nós fomos amigos. E tinha um outro lugar que convergia, as pessoas naquela década, que era o Museu de Arte Moderna. O Museu de Arte Moderna tem uma curiosidade que, porque a cultura carioca, as pessoas que produziam cultura no Rio de Janeiro cabiam num ônibus, ou cabiam numa van, certo. Então o encontro era no Museu de Arte Moderna. Não é à toa que teve o show do Grupo Água que incendiou o museu e eu fiz um filme chamado MAM SOS aproveitando a catástrofe para registrar, eu acabei fazendo um filme sobre o incêndio do MAM. No momento em que eu me encontrei com o Gerchman às 8 da manhã, quando eu cheguei para filmar, ele já tinha saído, já tinha sido expulso de dentro do museu pelo, pela coisa do sinistro, pela polícia e pelos bombeiros porque corria risco e tal, mas eu cheguei cedo, eu cheguei seis da manhã e eu fiz o percurso que eu sempre fazia, eu trabalhava no museu, eu trabalhava no Instituto de Desenho Industrial. E o que acontecia no Museu naquela época é que todo o mundo, não era só o pessoal das artes plásticas, o cinema, os poetas, os músicos, as pessoas se encontravam no bar do museu. Então isso é uma imagem muito bonita que eu tenho na cabeça apesar de uma certa sensação saudosistica minha, mas você via o Hélio Oiticica passar, Glauber Rocha, Gerchman, Vergara, Joaquim Pedro, Jabour, ou seja havia uma convergência de pessoas que produziam cultura na área audiovisual e na área pictórica, na área das artes plásticas muito forte, por causa da, por que isso, por que lá no museu tinha a cinemateca que era dirigida pelo Cosme Alves Neto. E tinha a sala de montagem, Walter Lima, e tinha a sala de montagem aonde tinha uma moviola. Então as pessoas se encontravam ali para tomar um chá, para tomar um café ou tomar uma cerveja no bar do museu, todas as tardes. E depois eu virei funcionário do museu, eu fui, eu trabalhei numa equipe do Instituto de Desenho Industrial, num projeto de embalagem para exportação durante um ano. Então a minha segunda casa era o MAM. Então as minhas relações, os meus encontros com o Gerchman foram nesses 2 lugares basicamente. E na vida. Nunca fui aluno da EAV, a não ser depois como já expliquei.
Agora, anos depois, eu queria, eu não queria, porque é muito difícil falar de pessoas como o Gerchman sem cair na coisa do panegírico. Como o Gerchman era um camarada sinfônico, eu vou falar, eu vou lembrar dele aqui, não falar da obra dele, mas eu vou lembrar dele com a obra aberta na minha frente, para saudar a ausência do colega, a ausência do artista. Aquela pessoa tão interessante, tão maravilhosa que era o Gerchman, que é o Gerchman para mim. Então eu vou deixar aberto aqui o AR. Eu estou aproveitando a luz desse domingo tão ensolarado, tão solar, tão nítido, provavelmente passa um pássaro azul riscando o céu neste momento. E eu preferia olhar do que falar o Gerchman. E vou deixar o AR aqui como uma saudação a ele, na página do AR. E ao invés de falar do Rubens, eu pensei se você me permite ler um poema do Armando que... por que para se falar de poetas nada como, nada como chamar outro poeta à mesa para participar. Talvez não precise ler todo mas é curto, é curtíssimo, é curtíssimo. O Armando tem alguns livros, 1, 2, 3, 4, 5, 6, cujas capas são do Gerchman. Uma delas está aqui, que é o próprio retrato do Gerchman, do Armando feito pelo Gerchman. Esse gesto da mão, o bigodão assim. E aí como tem esse poema, na verdade eu tinha pensado da minha conversa sobre o Gerchman aqui, eu ia ligar para o Armando e falar para o Armando que eu estava aqui nessa coisa difícil de falar da ausência do, da ausência e da presença do Gerchman. Mas aí eu falei que eu vou ler o poema que eu conheço. Que ele fez para o Gerchman. Chama-se assim.
A cidade se abre como um jornal flash, flan, flagrante na folha que o vento leva no grito impresso que voa na voz com a manchete, lute no ar. No ar, ou no exíguo espaço que nos resta no chão das casas de morar nos ônibus superlotados nos estádios cheios o homem que, todo o dia, veste a camisa da estrela solitária, o meu Botafogo, e desaparece para sempre, luta contra o esquecimento. Como um jornal que escreve em cada página a crise e o crime de toda hora como um jornal que embrulha o que diariamente esquecemos, como um jornal. Como os espelhos perplexos do parque de diversões que se fazem os quadros em flagrante de Gerchman. Ali estão todos estamos nós em pré-estreia a sós, à beira do mundo com todas as nossas caras, a miss, o kiss elétrico, o kitsch o clichê, o beijo borrado da Mona Lou, me alcança, no banco de trás, a Moreninha, me enlaça, na janela furta-cor que pisca, por trás da Paramount, o amor se acende, boa noite Lindonéia. Ali estão todos na primeira página quebrada dos espelhos. Aqui, perdido, me acho em cada qual me vejo na multidão espatifada. Ali encontro a linha do começo do desenho, o rascunho do meu corpo de carvão, na paisagem amarrotada da cidade. Aqui estão todos os rótulos rasgados do meu rosto as marcas, as máscaras, as marcas, as letras do meu nome com todos os erres com todos os erros em garranchos pichados no cimento nos cartazes e nas caligrafias de néon, motel de mel não há vagas. Os desaparecidos, homens trabalhando, na frente de todos, o rei do mau gosto, uso do meu rosto, a stripper sem script, se incendeia sob o sol do mangue assegure sua fortuna, o carnê fortuno, assegure a sua fartura, no carnê futuro de Baby Doll. Aqui estamos nós enfim, João e Maria, feito um para os outros, no acaso das calçadas, neste banco nos beijamos, neste jardim nos devoramos, nesta rua nos deixamos, João e Maria nos perdemos com a roupa do corpo com a casa nas costas, na floresta dos dias, índios e indigentes, atravessando as veredas da avenida, sob a paixão do sol.
No sol de hoje que, que ilumina essa sala com a presença do ar. E aí eu lembrei também o seguinte, que quando teve assembleia no Parque Lage, para saber o que a gente ia fazer com o incêndio do MAM, tá certo. Olha aqui quem me apresentou, uma das pessoas que me levou perto do Gerchman, o Roberto Maia que era professor também na época convocado pelo Gerchman para ser professor. Roberto Maia que fez com o Armando esse à Flor da Pele. E isso impresso na época no Parque Lage. Mas uma coisa engraçada é que o cartaz do filme, se você quiser depois encontrar, o cartaz do filme partiu do SOS, do SOS do Rubens e o titulo do filme que eu chamei de MAM SOS, partiu disso que foi uma ideia deles dos artistas que se reuniram e fizeram esse, esse, nesse tecido uma coisa para botar no braço que a gente usou no dia da manifestação do MAM. Então eu peguei essa ideia do SOS vinda do Gerchman e fizemos o layout do cartaz com SOS. E depois eu, aqui só está o layout, isso aqui foi feito pelo Fernando Pimenta que na época trabalhava comigo na Embrafilme. E o cartaz acabou, um dos layouts é esse e curiosamente tem o SOS do Gerchman, da ideia de onde partiu a coisa do SOS, MAM SOS. E achei uma foto, onde eu estou exatamente no dia da filmagem, aqui no cantinho da foto. Depois se você quiser detalhar, no cantinho da foto tem eu com a câmera de filmar e se você fizer uma panorâmica, lá está ele, segurando, curiosamente, exatamente a parte da palavra vida, trabalho, vida, tudo era uma metáfora nessa época. A grande diferença dos artistas hoje e os artistas desse momento do Brasil era a sua participação na vida política Brasileira. Ou se manifestando como artista com a sua obra ou se manifestando como cidadão, como homem civil nas passeatas, nas manifestações políticas públicas como essa aqui depois do incêndio no MAM que foi um descaso na época. Até hoje as instituições servem, sentem a falta de proteção nesse sentido. Até hoje o abandono das instituições, sempre é relegado a segundo plano como a cultura. E você veja que aqui está o Pasquim, o Parque Lage, Botafogo o bairro, uma associação ABAPP que eu não, devia ser dos críticos ou do, Copacabana, artes plásticas, enfim, música, o MIS. Então essa era a diferença que tudo bem que hoje você tem as manifestações políticas, mas a participação do artista era, não só era fundamental, nesse momento da história, com era restrita. Muitos foram presos, muitos foram torturados, muitos foram desaparecidos, muitos foram exilados. O Ferreira Gullar está nessa manifestação, tenho foto dele nessa manifestação que nós fizemos na semana exatamente, na semana seguinte dentro dos escombros do MAM. E o meu filme, que eu fiz sobre o MAM, ele exatamente termina com essa, com a participação dessa manifestação no território do MAM. Então eu acho que para não ficar falando panegíricos do Rubens que merece porque é um homem, um artista fantástico, sem data, um homem sem data, ele, ele, eu preferia isso, eu preferia que vocês tentassem aproveitar o poema do Armando que fala da obra dele com, porque para falar de poeta tem de chamar outro poeta. E como eu não sou poeta, eu chamo os dois aqui para falar da vida. Porque o Gerchman era sinfônico. Era sinfônico. A série do futebol que você me trouxe era absolutamente sinfônico, era uma explosão de movimentos. Da cor, do traço, da atitude, do gesto. Eu acho que se você conseguir usar alguma coisa, se foi útil alguma coisa foi eu ficar feliz com, e agradecer de ter me destacado entre as pessoas que estiveram com ele. Para falar dele eu fico muito honrado e sinto até que não estou à altura de falar do Gerchman, é muito, é muito uma relação afetiva e eu sinto saudade, eu sinto melancolia, eu sinto amor, eu sinto vontade de fazer as coisas, eu sinto vontade... quando eu penso no Gerchman, quando eu penso numa pessoa como o Vergara, como o Glauber, como o Hélio Oiticica, Ferreira Gullar me dá uma vontade de fazer coisas, me dá uma vontade de fazer coisas, não sei o quê mas me dá vontade. É isso.
CLARA: Obrigado. Foi lindo. Eu não sou de chorar não viu?
WALTER CARVALHO: Pois é mas eu também.
PEDRO: Aquele poema é espetacular né, que poema bonito.
WALTER CARVALHO: Queria saber ler melhor.
PEDRO: A obra toda do Gerchman assim. É impressionante.
CLARA: O Armando conhece meu pai, todas as curvas, todas as vírgulas.
PEDRO: É um cara que conhece mesmo. Tanto que estou todo arrepiado aqui.
CLARA: Só que o Armando não quis falar, ele escreveu.
WALTER CARVALHO: Pois é, eu ia, eu ia dizer para vocês falarem com ele porque dos registros que eu tenho aqui, que eu me recordo que eu fui procurar, são 1, 2, 3, 4, 5, 6, são 5 ou 6, porque os outros são textos. Tem um poema aqui dedicado a ele, de capas que ele fez dos livros.
CLARA: Até hoje.
WALTER CARVALHO: Até hoje né. Então, mas o Armando ele é muito, ele tem essa coisa de não falar, eu estou fazendo um filme com ele, e enfim.
PEDRO: Agora só para completar, a gente foi lá entrevistar o Bernardo Vilhena que é poeta.
WALTER CARVALHO: Sei quem é. O compositor.
PEDRO: Exatamente.
WALTER CARVALHO: Faz letras de música e tudo, Bernardo.
PEDRO: Ele mesmo. Aí ele falou uma coisa sobre essa época, ele falou assim, eu não sei, até depois conversei com um amigo meu que viveu essa época também, ele falou "não sei Pedrão", mas queria saber sobre ele, uma pergunta até cretina, assim saudosista, você tem saudade daquela época, você sente falta. Ele falou assim, “olha eu sinto falta da época em que as pessoas não poetas iam estudar poesia, hoje em dia você está numa roda de poesia só tem poeta”. O que é que você acha dessa afirmação?
WALTER CARVALHO: É curioso por que, ele, ele hoje uma sessão de leitura de poesia só tem poeta, é isso que ele disse.
PEDRO: Ele disse isso.
WALTER CARVALHO: É, em geral a sessão de cinema só tem cineasta né. É claro, o mundo muda, o mundo mudou, e o mundo mudará, e ai de nós se o mundo não mudasse, ai de nós se o mundo não mudasse. Eu estou com esse óculos só porque eu estou com um pouquinho de fotofobia, acordei ainda há pouco, trabalhei até tarde. Não é charme não. Mas o que é interessante é que a participação política, a atitude, a coragem física, veja foto do Evandro Teixeira, da passeata de 68, você veja aquela fila de artistas na frente de mãos dadas, Chico, Caetano, Gil, Clarice Lispector, Vinicius, quem mais estava Edu Lobo, Marília Medalha, Nana Caymmi, já disse oito, tem muito mais, tem muito mais. Nara Leão. Quer dizer, além da disponibilidade dos artistas como obra, como participação da obra, quer dizer, falar contra a política da ditadura, por metáfora ou não, o Glauber com Terra em Transe. Terra em Transe era a gente, né? Era essa América Latina, era o Brasil. Essa foto também tem Eduardo Escorel, Ana Luiza. Enfim, além dessas pessoas terem suas obras, preocupadas com o momento político brasileiro, as pessoas se oferendavam politicamente, se expunham a né, e isso de certa forma hoje é a uma escala muito menor, eu diria para fazer uma metáfora, eu diria assim, como se eu pudesse dizer que a utopia já foi coletiva, hoje ela é individual compreende? Hoje, hoje, hoje a convocação é feita pela internet, pelo facebook, pelo whatsapp, por tantas redes sociais possíveis que existem, eu nem sei quantas e como. Mas né, nesse momento da história que a gente, pelo menos que eu localizei aqui de 68 e, por que esse aqui foi de 78, mas de 68 para cá, do final dos anos 60 para os anos 70 para cá, essa participação ela era efetiva na questão, efetiva da questão. E por isso alguns desapareceram, outros foram presos e tal. Essa convocação, eu perdi um pouco mas, essa convocação era feita no boca a boca, era no telefone da casa, alguns censurados, alguns grampeados, que não se podia falar muito no telefone. Então a convocação era feita boca a boca. Corpo a corpo. Corpo a corpo. Parece um titulo de um poema de Armando. Corpo a corpo. É um tipo de um poema do Ferreira Gullar. Era no corpo a corpo, no boca a boca, era nos encontros, nas assembleias, nas reuniões clandestinas que se encontravam, que nós nos encontrávamos. Havia uma coragem física nisso tudo. Não quer dizer que isso tenha nada de herói da nossa geração, da minha, dessa geração, por que eu sou até um pouquinho mais novo, um pouquinho só. Mas nada de herói. Mas havia uma, tinha que ter essa coragem. Hoje a coragem já é diferente, já está mais diluído, os artistas não estão na rua, os artistas estão nas redações, nas galerias, nas telas do cinema, até na televisão. Está um pouco mais, e como eu disse, o encontro desses artistas no MAM e no Parque Lage naquela época cabia dentro de uma Kombi, cabia dentro, uma assembleia de artistas cabia dentro de um ônibus. Hoje isso é possível por causa da internet. Enfim. Eu não tenho saudade assim, eu não tenho esse saudosismo, eu sinto a melancolia de vez em quando porque tenho tendência. Mas sinto também uma, por isso vem de encontro a mim uma vontade muito grande de fazer as coisas, de fazer as coisas. Terminar o que eu iniciei naquela época e construir outras coisas que terminarei muito futuramente, muito brevemente talvez.
CLARA: O SOS MAM você fez na época e terminou na época?
WALTER CARVALHO: Sim, sim. Na época a gente tinha conquistado, a classe cinematográfica tinha conquistado um espaço no cinema de exibição do, era obrigatoriedade a exibição do curta metragem. E o filme passou no cinema. O filme passou no cinema. Para mim eu achava incrível fazer um filme sobre o incêndio do MAM, o filme tem um caráter meio de denuncia daquilo que estava acontecendo, por que eu filmei a manifestação depois do incêndio, pós-incêndio nos escombros do próprio museu e, e eu achava incrível isso passar no cinema antes de um filme de longa metragem, um filme estrangeiro, eu achava incrível que as pessoas vissem isso. Nós perdemos esse bonde aí. A obrigatoriedade, apesar que eu acho que essa lei até não caducou não, mas perdemos esse bonde. Mas antes era, antes de todo o filme estrangeiro era obrigatoriedade de passar, tinha obrigação de passar um curta metragem brasileiro. O MAM SOS foi um dos filmes que foi exibido, como de vários colegas. Durou bastante tempo essa questão
CLARA: O que você acha se a gente se a gente, que é uma das ideias que eu estou tentando implantar na Casa Daros, seria de criar um cinema como tinha o CineAve na época, nessa época, e passarmos, exibirmos alguns filmes, você acha que...
WALTER CARVALHO: ... mas com absoluta certeza. Só, só, só o, mas eu assino em baixo. Só a quantidade de filmes que hoje existem e ainda sendo feitos sobre artes plásticas já levam tempo numa programação, só ligado à questão das artes plásticas. Evidentemente estou me referindo à Casa Daros que é um espaço de, disso. Mas o que, você pode fazer ciclos de cinema brasileiro, cinema estrangeiro, cinema, qualquer tipo de cinema, qualquer, qualquer, e levar o debate para lá, exibir, debater, isso é muito bom, isso é muito bom. Dá uma dinâmica própria... você veja o Instituto Moreira Salles, o Centro Cultural dos Correios, o CCBB, o Paço, o Centro Cultural da Justiça né. Você cria uma rotina de projeções e de frequência das pessoas para discutirem. Eu dou a maior força, acho que deveria.
CLARA: Nós falamos com o Santeiro também.
WALTER CARVALHO: Santeiro. Ele está nessa foto viu? Se você fizer uma panorâmica nessa foto, você vê. Pena que é uma foto, está um pouco desfocada enfim, mas você vê na linha, você vê Joel Barcelo logo depois do Gerchman e mais à frente o Santeiro já com o seu, com a sua característica fantástica daquele cabelo que... eu nunca vi o Santeiro de outro, desde que, eu moro no Rio há 45 anos, 44 anos que eu vivo aqui, eu não me lembro do Santeiro com outro cabelo, é fantástico né. Muito interessante.
CLARA: E o Roberto, o Roberto Maia.
WALTER CARVALHO: O Roberto ele é um pouco culpado de tudo isso. Culpado no bom sentido por que o Roberto foi a pessoa que eu aprendi com ele a gostar de fotografia. Eu não, eu não, eu não, eu aprendi a gostar e daí eu praticar até hoje. E eu acho que fotografia não é para aprender, por isso que eu falo que o Roberto me ensinou a gostar. Não me ensinou fotografia, me ensinou a praticar isso, porque eu tenho impressão que se eu aprender, eu paro de fazer porque eu aprendi, já não tem mais graça, então, o processo de ficar fazendo é que é interessante. Isso o Roberto, o Roberto me ensinou muita coisa, me ensinou a revelar um filme, me ensinou a olhar que é o pior, o mais difícil, me ensinou que não se aprende, eu descobri, me ensinou a gostar e eu descobri depois que não se aprende.
CLARA: A gente viu que o meu pai chamava... falava muito dos alunos do Parque Lage não como alunos mas como usuários daquela escola.
WALTER CARVALHO: Usuário da escola. Está vendo isso marca uma coisa, e se você for imaginar que se ele se expressava assim com relação aos alunos, é por isso que a escola resiste até hoje. E na forma que resiste, sempre à frente do seu próprio tempo. Com exposições, com manifestações, com as aulas, com o tipo de, a quantidade de pessoas importantes das artes plásticas que saíram dali. A semente do Gerchman está li. Do Gerchman, do Armando, do Roberto. Outra coisa, me lembro assim do Roberto, assim foi a primeira pessoa que me, foi a primeira pessoa e única na vida profissional que me disse assim "não deixe que a técnica atrapalhe sua linguagem". Isso parece uma bobagem né, e eu não sabia direito linguagem, o que é que é linguagem. Aí com o tempo eu fui entendendo o que ele queria me dizer com aquilo e isso vira uma coisa que até hoje eu não tenho o menor encanto com a coisa do digital, com essa coisa fantástica das câmeras que têm 18 botões em volta dela. Eu tenho as câmeras digitais. A minha câmera Nikon tem 18 botões, tem botões na câmera que eu não sei para que servem. Fora o menu que não tem, é um infinito né. Eu preciso só de uma coisa que abre a fecha o meu diafragma e um disparador que opere esse obturador para captar imagem. Não preciso de tanto botão. Eu não tenho nenhum encanto com essa coisa, e eu acho que foi influência do Roberto. É uma influência dessa geração. Não está na pintura do Gerchman a qualidade do pincel. Tá no gesto dele, no traço dele que é o que importa. Isso eles ensinaram né, por que o Roberto, eu acho que o Roberto devia ser um pouquinho só mais velho. O Gerchman estaria com quantos anos?
CLARA: Teria 72.
WALTER CARVALHO: Teria 72. Portanto eu sou um pouquinho mais novo que ele.
CLARA: Uns 4 anos né?
WALTER CARVALHO: Eu fiz 67 quer dizer são 5 anos de diferença. Acabei de fazer. São 5 anos de diferença, quer dizer a mesma geração, a mesma geração. Mas eles, aquele grupo ali, António Manuel, Carlos Vergara, Rubens Gerchman, Roberto Magalhães, Cildo... Já eram um pouco mais velhos e eles já estavam na estrada. Eles estavam bem na frente dessa estrada quando eu, eu estava na trilha ainda, ele já estavam na autoestrada. E eu de certa forma fui por um atalho, por que como eu vim da Paraíba, vim morar no Rio em 68 quer dizer, e eu vim, tinha sido preso e tal, e eu vim para o Rio no momento errado, eu vim no meio de dezembro para cá, no mês AI-5. Então literalmente eu fiz um atalho, eu tive de ir pela trilha e fiz um atalho para compensar distância num momento político tão difícil que era. É isso.
CLARA: Uma curiosidade. Não sei se você saberia mas, um buraco que a gente ainda não conseguiu descobrir nessa pesquisa toda. Você sabe quem fez a logomarca da Escola de Artes Visuais?
WALTER CARVALHO: Não, não. Ninguém sabe?
CLARA: Achamos que era o Roberto Magalhães, podia ser o Vergara, ainda não.
WALTER CARVALHO: A abertura do meu filme, esse cartaz foi feito pelo Fernando Pimenta mas a abertura do filme é do Vergara. É do Vergara. Eu tenho ela até hoje. Eu guardei as pranchas que eu filmei. A marca da, quem é o primeiro diretor da escola?
CLARA: Ele o R.G..
WALTER CARVALHO: É, caramba, será que o Armando não sabe? Você perguntou para o Armando?
CLARA: Vou perguntar.
WALTER CARVALHO: Talvez quem era a pessoa daquele momento ali que estava mais ligada à questão do design do que às artes plásticas propriamente dita, quer dizer, pode ter sido né. Pode ter sido o Roberto mesmo.
CLARA: Você teve contato com a Lina? Com a Lina Bo Bardi lá?
WALTER CARVALHO: Só, não, eu só estive com a Lina uma vez em São Paulo.
CLARA: E a gente vê como ele é coerente, por exemplo na história da escola, tão jovem, página 33 e ele falando da oficina do cotidiano que eram os alunos abrirem suas mochilas, bolsas, "o que é que você tem, o que é que você carrega, o que é que você olha que você usa, o que é que você carrega?" E são caixas de morar né.
WALTER CARVALHO: Caixas de morar, caixas de morar.
CLARA: É muita coerência.
WALTER CARVALHO: É. Agora veja, veja, eu quando vim para a ESDI. Isso não tem nada a ver com o Gerchman não. Mas tem a ver com caixa de morar. É impressionante isso que você falou de tirar de dentro. Eu quando cheguei aqui, eu cheguei em 68 e entrei para fazer o cursinho da ESDI em 69. Não, fiz o cursinho que funcionava dentro da ESDI todo o ano de 69 e fiz o vestibular no final de 69 e 70 estava na escola. E tinha um professor, um alemão, que era um professor de desenho fantástico, um professor fantástico de desenho. Desenho, mão livre, porque tinha uma prova muito difícil que era a prova de desenho para entrar para a ESDI, então ninguém sabia o que era. O ano que eu fiz foi desenhar uma embalagem de ovo. Foi o ano que eu fiz o vestibular. Então a gente não sabia o que era. Podia ser muita coisa. E um dia, estou recém-chegado da Paraíba, não conhecia ninguém, morava na zona norte na casa de uma tia, e eu não conhecia ninguém, não tinha nenhum amigo assim, e o professor mandou a gente desenhar uma torneira, sem olhar a torneira, "desenha uma torneira" e aí eu fui desenhar a minha torneira, então eu fiz aquela torneira curvinha assim, com aquela abinha que você fechava assim, que é uma abinha meio, como se fosse um til, do alfabeto. E, ali fazendo o desenho num A3 né, num papel A3, grafite 2B, borracha, e depois colocava os desenhos todos, de todo o mundo num quadro enorme que tinha. Botava em baixo no suporte, assim, e a gente conversava, falava do desenho uns dos outros. E quando eu botei o meu desenho ao lado de todos os outros desenhos, a minha torneira não era uma torneira moderna. Era uma torneira Paraíbana assim. Que aqui já tem umas torneiras modernas, assim e umas coisas meio, e a escola era uma escola burguesa, tinha os alunos eram da zona sul, não tinha ninguém da zona norte, eram todos da zona sul. Era uma escola de elite. A ESDI era uma escola de elite. E aí eu olhei aquilo e eu fiquei absolutamente acanhado porque as torneiras era torneiras assim, já apontando para o futuro, assim, sabe umas torneiras moderníssimas, e a minha torneira era uma torneira Paraíbana assim bem, bem, cara eu falei, pô não vou passar nesse vestibular nunca. Era minha caixa de morar que eu estava tirando. No fundo tudo é isso né, no fundo é muito simples, é João e Maria, no fundo é, no fundo somos todos pessoas. No fundo somos todos gente e não é nada mais que isso. E pessoas como ele são de ver isso. Caixa de morar, quer dizer, eu estava tirando a torneira da minha caixa de morar, enfim.
É a torneira, eu falei mas meu Deus, mas a torneira, o que é que essa torneira está fazendo ali, né. Acho que ninguém, não me lembro, acho que ninguém nem comentou sobre ela porque tinha um Conrado que era um cara que desenhava bem para caramba e ele gostava de desenhar carro. Então ele fez uma torneira que parecia um Boeing que ia voar assim, sabe. Não sabia nem por onde saia água dali.
CLARA: Uma torneira alemã.
WALTER CARVALHO: É, alemã, já era a linha suíça na veia dos caras e eu ainda, e eu vinha ainda com talvez, a minha sorte é que tinha Aloísio Magalhães dando aula ara a gente, que aí pegou o viés do objeto popular, para não falar do artesanato, mas do objeto popular, as soluções de habitação, as soluções espontâneas do objeto, de transformar. A criança que transforma borracha do pneu numa coisa de brincar ou num estilingue, que o Gerchman fez no Ronaldinho, a lata que vira um carrinho de, quer dizer isso, isso pode ser a base do design brasileiro. Você veja como a coisa muda, hoje as formas brasileiras dos objetos, ou a forma brasileira dos objetos, ela segue uma, uma linha já internacional, as coisas já, as cadeiras. Já não, para cada irmão Campana tem 10 designers copiando o que sai no mundo.
CLARA: Acho que isso é do Zanine.
WALTER CARVALHO: Do Zanine. Do Zanine, nossa, o Zanine, eu tive oportunidade de ver as casas que ele fez lá em Nova Viçosa, inclusive o atelier do Krajcberg. Eu dormi várias vezes nesse atelier lá em Nova Viçosa, quando eu ia visitar o Krajcberg, que é um projeto dele. A casa que o Krajcberg fez em cima da casa não. É um projeto do Krajcberg. Mas o atelier é um projeto do Zanine que tinha casas naquela região. Toda de madeira. Telha de madeira, toda de madeira.
BERNARDO: Eu li aquele teu texto do Jardim da Oposição e aí você fala uma coisa, você faz uma pequena introdução histórica que você fala de uma esquerda desarticulada e uma contra cultura, que eram dois movimentos, duas situações políticas que estavam em evidência naquele momento, nesse pré-Parque Lage. Queria que você contextualizasse, contasse essa história, o que era essa esquerda desarticulada e o que era essa contra cultura que estava por vir?
XICO CHAVES: A esquerda desarticulada porque em 68, praticamente 10 anos antes, com AI-5, começou a direita e a ditadura militar começou a pressionar os movimentos estudantis, os movimentos de esquerda que estavam crescendo e a violência aumentou, a que havia antes também se diversificou em termos de formas de repressão, então houve uma desarticulação do movimento estudantil. Essa desarticulação começa a acontecer de fato com a prisão das novecentas lideranças do movimento estudantil no congresso de Ibiuna, 20º Congresso da Uni de Ibiuna, então praticamente aquilo ali marcou aquela liderança toda que tinha na faixa de 17 anos a 30, 25, aquilo foi um golpe fatal. Talvez fosse interesse da ditadura militar empurrar essa juventude para o radicalismo, uma vez que não havia um processo de liberdade de expressão no país, a perseguição era muito violenta e muitas pessoas partiram para os movimentos mais radicais. A guerrilha urbana, as organizações clandestinas e a gente perdeu nessa fase, nesse momento, muitas possíveis futuras lideranças, foi um golpe violento que vai marcar a história do Brasil para sempre. Então muita gente foi assassinada, torturada, desarticulada, exilada a partir daquela data. Nesse mesmo momento ali, exatamente na faixa que eu entro, eu faço parte dessa passagem do movimento estudantil para contra cultura. Não eram todas as lideranças que conheceram essa linha de fronteira que transitava nesse momento, nessa passagem histórica. Alguns continuaram nesse movimento de esquerda, mesmo na clandestinidade, outros se exilaram, mas uma grande parte, parte que era um pouco mais jovem talvez, começou a experimentar as atividades da contra cultura, ou seja, outra linguagem começava a surgir para se contrapor às perseguições e ao cerceamento da liberdade de expressão. Como eram linguagens não muito previstas pela própria repressão esses movimentos e grupos cresceram, se multiplicaram pelo país, não só o país já era praticamente cultura, era uma prática internacional, a contra cultura não acontecia só no Brasil, era na América Latina de forma geral, no mundo inteiro, na Europa, nos Estados Unidos. Você tinha uma guerra do Vietnã, conflitos internacionais e questões internacionais que começam a sensibilizar a juventude daquele período e há uma reação também comportamental, então enquanto você tinha uma esquerda muito rígida, muito direcionada, muito panfletária por um certo lado porque era necessária, então passou a ter uma juventude absolutamente liberal no sentido da linguagem, então houve uma multiplicação de linguagens diferentes, experiências diferentes começaram a ocorrer ali que diversificavam um pouco das orientações mais rígidas que a esquerda coordenava. A esquerda exigia um certo grau de organização que a contra cultura não exigia, a contra cultura era cada um desenvolvendo seu processo. Tem documentos, por exemplo, sobre isso, logo depois que desarticularam o movimento estudantil e de uma certa maneira a esquerda brasileira, eles já iam desarticular, já tem documentos sobre isso, tem um processo de voltar a repressão para os cabeludos, para a contra cultura já naquele mesmo período. Então nesse período aí, como experiência pessoal, eu participei, saí da liderança estudantil e fui participar do movimento contra cultura em Brasília chamado Tribo. Então a Tribo reunia pessoas que trabalhavam com super-8, com experimentações na área do teatro, das artes visuais, das artes gráficas, das performances, que não tinha esse nome na época e a publicação de jornais. Houve uma multiplicação muito grande das publicações alternativas, então começa a haver um movimento alternativo, principalmente editorial e de experimentações no campo da poesia, etc. É como se os mimeógrafos parassem de imprimir panfletos e começassem a imprimir poemas e periódicos e jornais.
BERNARDO: A Tribo é de que ano?
XICO CHAVES: A Tribo é de 1970, 71, 72.
BERNARDO: Então nessa primeira parte de 70 você estava em Brasília?
XICO CHAVES: Estava em Brasília. E Brasília vinha de uma experiência de construção da cidade maravilhosa, essa turma de Brasília, esse pessoal de Brasília viu acontecer na história do Brasil uma coisa fantástica, uma cidade sendo construída e você morando dentro dela. Então essa geração cresceu acreditando que tudo é possível, então se você vê uma cidade começar do zero, no cerrado totalmente desértico e pouco tempo depois você vê as famílias mudando e habitando os blocos das super quadras, é fantástico.
BERNARDO: E quando é que você vem para o Rio?
XICO CHAVES: Antes de vir para o Rio eu fui para o exterior. Eu me exilei no Chile e no Chile eu também tive uma experiência junto ao pessoal ligado a contra cultura e não muito ligada aos grupos de exilados. Eu achei que o meu local, o meu lugar, de trabalhar com processo criativo era junto a um grupo chamado Associação de Teatro Amador Chileno que não era só teatro, era um grupo performático que interferia nas manifestações de rua, então criava novas situações. Ao invés de fazer uma foice e um martelo fazia um monte bambu com rato na ponta, discos voadores, "nosotros tambiém estamos com la unidad popular.", trabalhava junto aos programas de educação trabalhando com arte contemporânea, então provou-se ali para aquele grupo que era possível ter uma outra linguagem de manifestação artística que não fosse panfletariamente ligada a manifestação tradicional política, de esquerda, de movimento revolucionário, tinha uma revolução maior. Era até estranho que de repente aquele pessoal ali misturasse Jimi Hendrix, Janis Joplin, Mao Tse-tung, Che Guevara, Fidel Castro e outros, Jean-Paul Sartre, Simone Beauvoir tudo em um mesmo caldeirão, então isso era uma característica, vamos dizer, daquele momento de contra cultura onde tudo fazia parte de um processo de cozimento de ideias que não estavam ainda consolidadas. Isso foi interessante. Foi um pessoal muito jovem que estava na faixa dos seus 19, 20, 21 anos de idade.
CLARA GERCHMAN: Você está falando a verdade?
XICO CHAVES: Estou falando a verdade. Esse negócio do grupo do Chile era do caralho porque eu fui preso pela esquerda brasileira. Isso eu nunca contei. Fui interrogado. Passei um sabão neles. Eles achavam que eu era um agente infiltrado porque eu cabeludo, aí nesse dia que eles me pegaram a Tribo que era o grupo de Brasília foi me visitar no Chile, então a gente andava pelas ruas, aquele bando de cabeludos, fumando baseado, cara, nesse dia eu ia representar o Tio Sam com a presença do Allende, aí eu estava com uma cartola, passei a noite fazendo uma cartola desse tamanho cheia de fita de gravador e estava com essa cartola no restaurante quando eles, "você vai ter que...", porque eu tinha dado uma entrevista para a televisão lá falando isso, Jimi Hendrix, Mao Tse-Tung, não sei quem e eles ficaram grilados, aquela figura cabeluda falando loucura. Aí eu fui com aquela cartola debaixo do braço para a embaixada paralela e botei a cartola em cima da mesa, "se eu fosse agente da CIA eu não estava com essa cartola debaixo do braço, não é bicho.".
BERNARDO: Aí os caras perguntaram que porra é essa.
XICO CAHVES: Foi surrealista.
BERNARDO: Mas conta aí, você veio do Chile e veio para o Rio de Janeiro, o que você encontrou?
XICO CHAVES: Você estava gravando isso? Puta que o pariu.
PEDRO: Mas está tranquilo.
BERNARDO: Vai entregar isso para esquerda toda.
XICO CHAVES: Depois a gente se entendeu porque é natural, o cara foi torturado, eu não fui, entendeu? Chega um cara estranho ali e não bate continência, não se apresenta, não diz de onde vem, porra, depois ficaram meus amigos e estava tudo bem.
BERNARDO: Mas essa história está off, essa é para um outro filme que a gente vai fazer.
XICO CHAVES: Para você ver a distância que era, para exemplificar como uma geração, não era bem uma geração, um grupo de pensamento e outro. Um sofreu para caramba, foi torturado e o cacete, a gente que foi para a contra cultura já não teve esse drama tão violento, lógico que também a polícia perseguia, mas não sabia nem quem era a gente.
BERNARDO: Aí quando você chegou no Rio o que tinha no Rio, qual era o contexto dessa contra cultura no Rio?
XICO CHAVES: Bom, quando eu cheguei no Rio eu encontrei o Macalé, Ana Miranda, Arduino Colassanti, os amigos que eu, nos festivais de cinema que aconteciam em Brasília, Leila Diniz, um monte de gente que tinha se dispersado, eu não conseguia encontrar ninguém no Rio de Janeiro, até que enfim eu encontrei. Então eu a partir desse... Sônia Braga, Bigode cinema, tudo naquela Casa 9 lá em Botafogo e a partir dali com 15 dias, para você ver a diferença, eu fui procurar trabalho, estava casado com uma chilena, eu tinha uma responsabilidade familiar, então fui arrumar emprego e incrível, o primeiro trabalho que eu consegui no Rio de Janeiro foi no Jornal Globo, ganhei uma coluna debaixo do Nelson Mota para falar sobre equipamentos de som e tecnologias, chamava Circuito Integrado, ninguém sabia o que era circuito integrado na época, eu conhecia bem tecnologia do som e eletro acústica porque a UNB tinha dado esse panorama, a UNB era uma universidade aberta, depois a gente fala sobre isso. Então cheguei no Rio e a primeira coisa que me incomodou no Rio de Janeiro era que não acontecia nada em termos de movimento cultural, tinha, mas era assim coisas que viviam muito no subsolo, os artistas estavam desarticulados, ou seja, tinha havido uma desarticulação geral.
BERNARDO: Que ano é isso?
XICO CHAVES: Em 73, exatamente no ano do golpe do Chile, mesmo ano que eu cheguei no Rio de Janeiro. Eu saí de lá em agosto e já cheguei aqui em setembro, depois de fazer uma imersão pelo interior do Brasil. Eu sentia que era necessário fazer alguma coisa. Aluguei um subsolo em Santa Tereza e esse subsolo em Santa Tereza começou a agrupar essas pessoas. Milton Nascimento era vizinho, naquela época ele estava muito frustrado também, Beto Guedes, a turma de Minas morava em uma casa ali perto. Tinha a Nuvem Cigana um pouco mais em cima também da qual eu participava dos movimentos da Nuvem Cigana dos eventos e tal, o bloco Charme da Simpatia, tinha um carnaval resistente ali, uma linguagem já diferente do carnaval tradicional. O MAM era o único ponto de convergência naquele momento onde a gente podia ir e conversar sobre o Brasil, sobre a arte contemporânea, sobre a história da arte, ver as experimentações, eram nossas referências, então eu comecei a organizar alguns espetáculos, shows alternativos, sem objetivo financeiro nenhum. Algumas publicações também eram feitas e eu publicava matérias praticamente reensinando as pessoas como se autoproduzir que não era necessário produtor, já que os produtores não se interessavam, a música brasileira não estava sendo tocada de fato na rádio, nas emissoras de rádio nem na televisão, Chico Buarque, Caetano, Chico Buarque era praticamente proibido de ser executado e aquela linguagem com a qual a gente tinha relação de maior profundidade, identificação, não estava sendo mostrada e toda essa promoção musical estava fervendo nos subsolos do Rio de Janeiro, certamente no Brasil todo. Então eu comecei a organizar alguns shows e apresentações de poesia onde eu apresentava falando alguns poemas, eu a Marlui Miranda e o Sidney Matos organizávamos isso, chamado Circuito Aberto de Música Brasileira, Então ocupamos vários espaços alternativos no Rio de Janeiro, Colégio Divina Providência, Casa do Estudante, o primeiro foi na Faculdade de Letras na Avenida Chile, quando era lá ainda no Teatro Gil Vicente, vários lugares. Então essa reação trouxe de volta o público que estava ansioso por ouvir o que o Luiz Melodia estava fazendo, muito jovem ainda, o que o Macalé estava produzindo e o Cartola e Ademilde Fonseca onde está? Figuras históricas da música brasileira estavam marginalizadas no processo cultural. E outros jovens que naquela época já tinham uma trajetória, já tinham uma proposição contemporânea de música também. E os jovens mais jovens ainda, que estavam na faixa dos 18, 19 anos e que não tinham o mesmo espaço, então esses espetáculos agrupavam essas pessoas, eu apresentava de forma poética, falando poemas curtos e eu vi que era possível, aí veio Brasília na minha cabeça, tudo é possível. Consegui matérias de jornal naquele período e aí logo em seguida o Macalé me propôs ir ao Banquete dos Mendigos no MAM cuja capa mais tarde foi do Rubens Guerra.
BERNARDO: Mas essa proposta do Macalé ainda não é o disco?
XICO CHAVES: Do disco, saiu daí. Então coincidiu que no dia dos 25 anos de comemoração da carta dos direitos humanos, o Macalé, por coincidência resolveu fazer um show auto beneficente porque ele estava sem grana e não tinha como sobreviver, a maioria não tinha como sobreviver, só que com essa coincidência dos 25 anos da declaração dos direitos humanos no MAM, a Heloisa Lustosa era diretora na época, a Heloisa entregou o espaço e a ONU propôs então juntar aqueles artistas todos em uma homenagem, uma comemoração desses 25 anos. Houve uma certa resistência no começo porque os artistas resistiam a tudo que era oficial, mas os artistas concordaram e aconteceu o primeiro show de reação mesmo na classe artística contra a ditadura militar, que não foi o Rio Centro foi o Banquete dos Mendigos.
BERNARDO: Isso é 73?
XICO CHAVES: 73 já. No mesmo ano que eu cheguei.
BERNARDO: A carta é de 48, não é?
XICO CHAVES: É, isso foi 25 de dezembro de 1973. Desde setembro de 73 a outubro de 73, pouco tempo que eu estava organizando esse show e já tinha uma carimba de produção, de modelo de produção alternativo que não exigia tanta tecnologia nem recursos financeiros, era tudo feito sem dinheiro. Então esse show do Banquete dos Mendigos que depois foi transformado em um álbum duplo, ficou censurado 6 anos, uma parte dele nem está editada até hoje, provou mais uma vez que era possível sim, porque quem estava ali? Milton Nascimento, Macalé, Gal Costa, Chico Buarque de Holanda, MPB4, Raul Seixas, Gonzaguinha, quem mais? Bom, praticamente a nata da música brasileira que estava censurada, estava sob censura. Até o Banquete dos Mendigos, até a carta de declaração dos direitos humanos tem um carimbo liberado pela censura, entendeu? Porque é uma carta aprovada internacionalmente. Então ali provou, o MAM encheu até a tampa, a polícia se infiltrou, cercaram o MAM, foi um negócio incrível, mas o show aconteceu e foi gravado pelo grupo Soma, que também tinha um outro grupo chamado Banana Eufórica, era o pessoal dos Estados Unidos que o Bruce Henry e outros nesse grupo. Se não tivesse esse grupo eu não tinha gravado. Ele percebeu a importância que tinha aquele show e gravou em fita de rolo e essa fita na hora que acabou o show ela desapareceu, apareceu pouco depois. Então esse que aconteceu no MAM que era o ponto de referência, estava ali o Sidney Matos, o Cosme Alves Neto, a Heloisa Lustosa era a diretora e outras pessoas que organizavam as exposições e os eventos no MAM ou autorizavam.
BERNARDO: Como estava a poesia nessa época?
XICO CHAVES: A poesia já estava, os livros mimeografados já estavam sendo lançados no Brasil inteiro, no Rio, São Paulo, Belo Horizonte, imprensa alternativa descobria as suas brechas também para lançar os jornais e tal, então isso já existia, as experimentações na época da poesia visual já estavam sendo feitas como a poesia processo, xerox, arte postal ainda não tinha entrado ali muito, as performances, vamos dizer, daquela época não eram mais happenings, também já estavam ocorrendo, mas não tinha assim um agrupamento disso tudo, não existe um lugar para onde pudesse convergir essa produção, estava tudo disperso. A censura e a repressão fez com que a gente se desmobilizasse, não havia uma centralidade. O MAM era um dos poucos espaços. O MAM não era tão frequentado assim por grandes plateias, só quando ocorria um evento. Esse momento de 1974, 75 foi um momento muito difícil no Brasil para as expressões artísticas, para a liberdade de expressão, foi um momento que aconteceu muita tortura, muita perseguição, a censura absolutamente vigiando e censurando quase tudo, letras de música, exposições, imagens, imprensa e etc. Mas acontece uma coisa principalmente em 75, a ditadura percebendo, talvez, que os movimentos culturais e os movimentos sociais tivessem emergido de uma forma muito acelerada, ela começa a perceber que é necessário flexibilizar um pouco. Essa flexibilização vai resultar em uma série de mudanças no país, é como se houvesse uma estratégia de absolver logo a oposição, ou seja, o pensamento de esquerda para dentro dela porque ela não tinha quadros culturais, por exemplo, para preencher os espaços. Por exemplo, o jornal O Globo é fundamental porque eu me lembro que o Roberto Marinho falava o seguinte, "nos meus comunistas ninguém mexe.", outras áreas das ciências sociais, das universidades, também não dava para você mexer tanto porque afinal esse pessoal é que sustentava a existência da universidade. Nas áreas artísticas, de forma geral, muito menos. Então acontece o seguinte, o Rio de Janeiro talvez tenha sido pioneiro nessa história porque um militar talvez um pouco mais liberal, eu não digo que um militar seja totalmente liberal, um pouco mais, Faria Lima foi nomeado governador, não havia eleição para governado, foi nomeado governador e ele montou uma equipe e essa equipe que ele montou tinha uma educadora importantíssima na história da educação do Rio de Janeiro chamada Myrthes Venzel e a Myrthes Venzel resolveu montar uma equipe dela, então a quem ela ia recorrer para montar a equipe cultural? As pessoas que tinham uma história cultural e que certamente transitaram pelo campo da esquerda, tanto da televisão quanto dentro da literatura da arte de forma geral, então ela chama uma pessoa importante naquela época que era uma pessoa de teatro que tinha um conhecimento amplo sobre a arte moderna e contemporânea brasileira e que era respeitado no meio, chamava-se Paulo Afonso Grisolli e o Paulo Afonso Grisolli é nomeado secretário de cultura, como se fosse secretário, era diretor do departamento de cultura, o departamento de cultura da secretaria de educação e entrega a ele todo o equipamento do Estado. O equipamento todo sucateado, abandonado, depredado, precisando de restauro e eu nessa época continuava produzindo esses shows, mas não tinha muita sobrevivência, eu tinha saído do jornal Globo porque não me enquadrei muito bem dentro das exigências ali burocráticas internas, não era nem muito a minha área essa de escrever sobre equipamento de som, eu estava escrevendo era poesia, muita poesia, organizando muito show w não ganhava dinheiro nenhum com isso, era mais importante aquilo para mim e fui trabalhar em publicidade na Casa da Criação era diretor de criação. Era muito jovem tinha 21, 22 anos, mas eu estava ligado no processo criativo, era importante eu exercitar aquilo ali naquele momento. Mas paralelamente a gente conseguia em vários ponto do Rio de Janeiro coordenar esses movimentos de shows alternativos onde todo mundo se apresentava e cada um tinha um modelo já. Quando em 75 eu encontrei o maestro Júlio Medalha que tinha sido chamado pelo Paulo Afonso Grisolli e ele estava até com Walter Franco esse dia na casa dele e o Walter Franco todo cabeludo e o Julio Medalha assim, de pijama, sei lá, uma roupa muito estranha, quando abriu a porta falou para mim assim, "a palavra exata é?", aí eu falei, "a palavra exata é sim!", aí ele foi, "então entra.". Aí ele apertou um botão no gravador e estava a música “A palavra exata é sim”, do Walter Franco e logo em seguida ele falou, "vem cá, você não quer ir trabalhar comigo no Instituto Estadual de Comunicação?", aí eu falei, "vão embora." e fui lá falar com ele. Cheguei lá encontrei a rádio Roquete Pinto Original, a primeira rádio do Brasil em um andar inteiro sucateada. Estava fora do ar, a antena estava caindo em Niterói, a antena estava assim no plano inclinado, a favela toda puxando energia da antena. Fui ver os equipamentos, por exemplo, área de cinema que era na Pinheiro Guimarães em Brasília uma vez eu vim ao Rio de Janeiro e vi o Nelson Pereira montar, que eu conheci o Nelson, essa turma de cinema toda naquela época do movimento estudantil, que eu me escondia nos festivais de cinema quando a polícia me procurava eu ia para o Hotel Nacional em Brasília e me escondia no meio do pessoal do festival de cinema. Então eu vi o Nelson Pereira montar o “Como era gostoso o meu francês” naquele lugar todo sucateado, jogado fora, equipamentos importados, sofisticados para aquela época, nascendo orelha de pau, o Luiz Gleiser também estava comigo nesse período fazendo um levantamento, foi quando eu conheci o Luiz Gleiser e era uma sucata só. Elefante branco tecnológico era o que não faltava dentro do Estado e não podia importar porque as leis de importação impediam, a gente tinha que ter o similar nacional, então aquilo tudo existia, a rádio Roquete Pinto tinha 400 funcionários que não tinham o que fazer, quase tudo cabide de emprego. O Júlio Medalha e a direção me nomearam diretor da divisão de áudio visual, criaram a divisão de áudio visual, então me nomearam diretor de uma sucata, aí eu fui para Niterói e comecei minha primeira experiência lá e comecei a organizar as fonotecas públicas, antes era discoteca pública que ficava no Edifício Andorinha, eu tirei de lá e anos depois pegou fogo, quase que a memória fônica do Rio de Janeiro toda é incendiada. Tinha discos de 20 polegadas com a ida do Brasil à guerra, Noel Rosa, tudo ali. Depois a gente começou então a organizar, não existia uma burocracia tão engessada como existe hoje, tinha uma certa liberdade, não existia um modelo de gestão para controlar essa coisa, então a gente tinha que inventar. Então o que acontecia, aquilo que a gente fazia, que eu comecei a fazer no movimento alternativo, eu comecei a levar para dentro do Estado que era a única forma de fazer aquilo funcionar. E o Paulo Afonso Grisolli criou uns projetos incríveis que até hoje eles são repetidos, mas não com a intensidade daquela época, tipo pacote cultural. Então a gente viajava pelo Estado do Rio de Janeiro todo e aos poucos, rapidamente a gente recuperou uma Kombi para projetar cinema nas paredes dos edifícios de subúrbio, na zona sul, 16 projetores de 16 milímetros espalhados para cinematecas nas favelas, em vários pontos. Uma outra Kombi que era também do mesmo aparato da sucata, foi recuperada e passou a gravar e projetar filmes no interior do Estado, encontros de folias de reis e de arte popular, itinerancia de exposições contemporâneas as quais participava Lygia Pape, Amélia Toledo, Rubens Gerchman, Roberto Magalhães e assim por diante. O Estado do Rio pela primeira vez teve projeto cultural livre, aberto, pouco burocratizado. E nesse mesmo período começa a se estruturar também, o próprio governo federal começa a estruturar a possibilidade de ter uma espécie de ministério das artes, não era ministério da cultura, então era criada já ali, embrionariamente já estava sendo criada a Funarte, a Fundação Nacional de Arte, ou seja, fazia realmente parte de uma estratégia de absorção desses quadros pensantes que estavam marginalizados no processo cultural brasileiro com certas restrições logicamente. Os exilados não haviam chegado ainda de volta, a repressão era muito violenta, então nesse período o Gerchman chama uma equipe para formar o seu quadro dirigente, então ele chama as melhores pessoas disponíveis naquele momento, então chama para os eventos de educação artística, por exemplo, a Cecília Conde, a Marisca Ribeiro que era uma organizadora também administrativa fantástica com a cabeça maravilhosa e chama diversas pessoas e coloca cada um em um ponto. Eis que então nesse momento ele chama o Rubens Gerchman que era uma pessoa que tinha uma preocupação política com o Brasil, o trabalho dele de uma certa maneira expressava isso, ele chama para dirigir o Parque Lage, o é que chamava? Instituto Brasileira de Arte - IBA, que seguia aqui nesse espaço do Parque Lage, seguia uma estrutura convencional, pintura em cavalete, as senhoras vinham para cá pintar paisagens, esse era o modelo que o Estado assimilou até então. Essa coisa da arte não política, de não questionamento da estrutura social brasileira, de não absorção das experimentações, tinha uma certa restrição e esse território do Parque Lage estava sempre alguém de olho nele para se apropriar dele. Ou eram instituições empresariais ou eram órgãos públicos ou eram emissoras de televisão, então de uma certa maneira a IBA cumpria uma função da escola de belas artes que tinha aqui de garantir esse espaço como um espaço artístico. Um espaço que já vinha de uma longa tradição, desde a criação desse espaço já era um espaço que vivenciava atividades culturais e reunia de forma geral a sociedade do Rio de Janeiro e do Brasil. O Rio de Janeiro era uma cidade que polarizava praticamente tudo no Brasil, foi capital da república, então o modernismo na verdade começa no Rio de Janeiro, então São Paulo foi fundamental, importante, mas o Rio de Janeiro, era aqui que chegava todas as coisas do modernismo de fora e São Paulo encontrou as condições de fazer a Semana de Arte Moderna, mas o que era moderno mesmo era o Rio de Janeiro, então o Parque Lage agrupava isso, ou seja, ele tinha uma tradição. Quando Gerchman é chamado, ele propõe para o Grisolli que aceita imediatamente, era uma pessoa ligada à inovação. Ele queria inovar, era uma pessoa de teatro, de cultura de forma geral, escrevia, dirigia, conhecia música, conhecia arte popular, conhecia arte contemporânea, conhecia arte moderna, então ele aceita o projeto de criar aqui a Escola de Artes Visuais, então começasse a montagem da Escola de Artes Visuais. O Gerchman seguindo o mesmo modelo convida para a Escola de Arte Visuais pessoas de várias tendências e origens, democratiza o espaço que era formal e acadêmico com pessoas de várias tendências, inclusive absorvendo o academicismo também, não existia uma rejeição radical ao academicismo, o academicismo fazia parte do processo cultural brasileiro. E aí eu acho que entra a primeira utilização desse pensamento, que eu me lembre, dentro de uma instituição contemporânea, ou seja, dentro de uma instituição cultural e artística que se formava em plenos anos 70, anos de grandes transformações sociais, comportamentais, o mundo todo explodia em invenções artísticas. A gente estava no limite da passagem do modernismo para a contemporaneidade. Então o suporte das artes visuais se diversificavam, não era só mais a tela, a pedra para a escultura, argila, o papel, já era o plástico, Hélio Oiticica já tinha feito seus PND, o parangolé, etc. O neoconcretismo já havia acontecido, já havia a ruptura com o concretismo, então a gente tinha um quadro pensante no Brasil de reflexão sobre a arte contemporânea muito sofisticado e o Parque Lage então absorve todo esse pessoal, essas pessoas que gostariam de experimentar em todos os campos da expressão artística. E o Gerchman coordena isso, então cria aqui um modelo de escola livre que de uma certa maneira vai ter uma similaridade com a estrutura criada por Darcy Ribeiro para a Universidade de Brasília onde as diversas áreas de formação cultural, artística, científica, ela se entrecruzam e dialogam permanentemente entre si. Em 65 a ditadura militar já tinha dado o primeiro golpe na Universidade de Brasília e o outro veio de 68 para 69. Então eu consegui ver em Brasília isso funcionar porque você tinha, por exemplo, estou comparando porque embora sejam questões diferentes existia um pensamento nos anos 60 que já tinha pensado em um país que pudesse ter um desenvolvimento acelerado, a coisa do Juscelino Kubitschek fazer uma cidade, 50 anos em 5, por isso que a gente achava que tudo era possível, então se era possível, se existia esse idealismo, existia um instrumental para isso, então por que não criar uma escola que fosse absolutamente livre e que pudesse experimentar todas essas ideias ao mesmo tempo? Onde uma pessoa podia transitar de um curso para outro sem formalidade alguma, afinal não ia ter um diploma mesmo, era uma escola para formar e informar pessoas e artistas e críticos, seja lá o que for. Ou mesmo o próprio público, então não existia essa separação tão grande entre a ciência e a arte, se pensava de uma forma global. Esse era o pensamento que começou no século 20, no final do século 20 nos anos 70, anos de grandes rupturas. Então o que acontece, nesse momento aí, como é que eu entro na história, você perguntou?
BERNARDO: A princípio a minha pergunta era como você chegou ao Parque Lage e ao Gerchman.
XICO CHAVES: É, mas aí não tem como entrar na história se a história não existe. Então o clima no Rio de Janeiro era favorável e do Brasil era favorável para isso existir, mesmo sob censura, ditadura. A ditadura não sabia muito bem o que era aquilo, não tinha gente preparada lá dentro suficiente para perceber o perigo que aquilo representava para eles que queriam manter o país a mão de ferro e na base do chumbo grosso. Então essa convergência para cá e para outros pólos culturais, para outros projetos foi assim, enquanto lá eu fiquei cuidando da tecnologia, criando modelos novos, arrumando junto com o Júlio Medalha transmissor feito em fundo de quintal com o cara que enrolava fio para botar a rádio no ar, arrumando lâmpadas e trocando válvulas por circuito integrado, era um negócio complicado, aquelas mesas enormes com aqueles botões dos anos 30, então aquilo foi sendo mantido porque aquilo era uma cultura, tinha um patrimônio ali que tinha que ser mantido, mas a parte interna tinha que ser mudada pelo gênio do engenheiro eletrônico japonês, filho de japonês que tinha lá chamado Onoda, então o Onoda saiu do ostracismo para ir fazer aquilo no Parque Lage a mesma coisa. O cara que era iluminador de corredor aqui começou a ver que tinha oportunidade de iluminar outras coisas porque aquilo era estimulado, "oh, tem que criar uma nova iluminação, essa aqui não dá mais, vai dar um curto-circuito. Não tem carga suficiente, vamos trocar o relógio.", porque as atividades tecnológicas começaram a entrar, então eu conheci o Gerchman nesse período que eu vim aqui pedir para lançar o meu livro que era um livro de uma página só com 100 poemas e ele falou, "pô, vai e lança cara!". Já tinha algumas experimentações que tinham sido feitas aqui pela poesia marginal, por outros grupos que lançavam eventualmente alguma coisa, logo no início do parque já tinha essa abertura, ele já tinha dado essa abertura, então eu cheguei com aquele livro aqui, que chamava A Pipa, que não foi feito em computador, parece que foi feito em computador, mas não foi, ele foi feito impresso, cortado na faca alfa e deslocado para formar imagem, cada frasezinha daquela, eram 100 poemas em uma página só. E como eu tinha, vinha do movimento alternativo de organizar shows e agrupar poetas, também participar da Nuvem Cigana, do charme, da simpatia, eu resolvi convocar todo mundo, "vamos para o Parque Lage que a escola de artes visuais é lá e vou lançar meu livro no auditório." e falei, "ah, vão algumas pessoas.". Bolamos um monte de coisas, fogos de artifício que surgiriam dessas partes mais altas do Parque Lage, alguns cartazes com desenhos meio exotéricos, tinha de tudo. Cada um fez um pedaço, eu nem sabia que estavam produzindo para encher o lançamento. Grupos de música que eu chamava para fazer shows e que nem me lembrava deles mais. Então convergiu todo mundo para cá. Eu convidei até gente de Alfa de Centauro, no convite tem, tem o convite aí, vai gente de outros planetas, foi um convite que foi circulando porque a gente tinha a prática de quando fazia um show lançava um panfleto lá no Arpoador e outro no Leblon e a agenda fazia no Posto 9, naquela agenda ensebada, amassada, era assim que... olha lá A Pipa. Então esse livro aí, que não é um livro é uma página só, mas é um livro porque são muitos poemas... aqui, está dentro do plástico, aqui só tem 5, esse livro aqui. Tem que pegar com cuidado porque esse papel era papel jornal, papel ruim, ele dobra. São poemas, alguns abstratos, outros feitos na faca alfa mesmo, sobrava palavra e eu tinha que preencher o pedaço, então aqui, o que aconteceu, veio gente de cinema, de música, de artes visuais de poesia experimental, de artes gráficas, ETs, um cara e se apresentou para mim, "eu sou o cara de Alfa de Centauro vim aqui para prestigiar o lançamento do seu livro.", então esse Parque Lage o lançamento que ia durar 2 horas durou 8 horas. A piscina foi ocupada, o terraço foi ocupado, fogo de artifício, eu não sabia de onde saía aquela loucura toda e eu fui lá no auditório e no auditório eu lancei uma flecha em direção as cavalariças que eu acho que foi a parte final desse show que eu mandava essa flecha, atirava a flecha, tenho até essa foto, não lançando a flecha, mas antes, atirando a flecha pela janela e todo mundo gritando, "vai, vai." e a flecha foi. Ninguém achou essa flecha, nunca mais, desapareceu pela mataria afora. Então achei aquilo simbolicamente importante, se é para ir, então vamos nessa, que aqui acho que é o lugar ideal para as coisas acontecerem. O Gerchman ficou sabendo, esteve aqui, mas depois foi embora para casa porque não ia ter paciência para ficar aqui 8 horas, foi embora para casa e depois ele me procurou, me telefonou e falou, "cara, vamos fazer uma coisa? Por que você não pega aquele espaço para fazer o que você quiser?", ele era assim, chegava para a pessoa e falava, "vem cá, você quer fazer um curso de desenho? Por que você não faz o que você quiser? Apresenta aí o projetinho." e eu não apresentei muito um projeto, só falei com ele, "vamos fazer então um evento aqui chamado Verão a mil.", porque todo mundo falava isso, "estou a mil por hora. Tá tudo a mil, meu irmão.". estava todo mundo muito agitado naquele momento, estava todo mundo a mil então eu falei vamos fazer o Verão a mil. Então conversando com o Gerchman ele falou, "fica com o espaço, faz o que você achar que tiver.", falei, "cara, então vamos fazer lançamento de livro, lançamento de disco, uma série de eventos de performances, instalações aqui, puxar fio, fita e tal.", que a escola estava indo por esse caminho, estava aqui o Helio Eichbauer que já fazia umas ocupações mais instalações, na verdade, intervenções fantásticas com o grupo dele de corpo, não sei como era o nome, A arte do corpo...
BERNARDO: Não era Pluridimensional?
XICO CHAVES: Pluridimensional? E os outros professores também usavam fotografia de outra forma, exposições de repente eram montadas com os próprios alunos produzindo e falei então vamos criar uma liga, vamos chamar os poetas, poetas de todas as tendências e ele falou, "manda a ver porque ficaria como uma espécie de relações públicas, que isso vai atrair o público para cá e com isso vai aumentar a quantidade de alunos.". Era fantástico porque a escola começa a dialogar com a cidade, então as pessoas vêm pra cá para assistir os espetáculos e vê que tem o curso de programação visual, que tem um curso de pintura, que tem um curso de escultura, que a Celeida Tostes que ocupa um papel importantíssimo nesse momento, experimenta cerâmica com outros objetos e coisas de madeira e utiliza o próprio ambiente do Parque Lage para poder incorporar nas suas pesquisas, os alunos pesquisam sem o objetivo de fazer uma obra de arte definitiva, então isso tudo começa a criar um ambiente na escola de artes visuais muito forte porque essa relação entre a população da cidade, não é bairro e o artista, a produção cultural de forma mais ampla e a experimentação transforma o Parque Lage no quartel general da arte do Rio de Janeiro e em consequência do Brasil porque não tinha nenhum espaço no Brasil que tivesse essa experiência, que tivesse essa possibilidade. Todos eles tinham sidos minados, não foi só no Rio de Janeiro, naquele momento que isso acontecia, era provável que outros lugares tivessem um outro grupo porque aqui era uma ideia e ninguém era autor dessa ideia, essa ideia era resultado de um processo histórico, cultural, de uma reação do meio artístico cultural contra a censura, as imposições de restrições a liberdade de expressão. Era natural que em diversos lugares surgissem coisas similares, mas o Parque Lage pelo fato de ser no Rio de Janeiro, uma cidade cosmopolita, mais cosmopolita naquela época do que hoje, agrupasse essas pessoas todas e gente de todos os lugares do Brasil, não eram pessoas só do Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro sempre teve gente de todos os lugares e artistas que vieram e convergiram para cá. Então, por exemplo, o Zé Ramalho uma vez me procurou, eu ficava lá no prédio da rádio Roquete Pinto ao lado do Júlio Medalha no Instituto Estadual de Comunicação, o diretor da rádio era o Rosemberg e eu dirigia esse complexo que foi aos poucos deixando de ser sucata para ser alguma coisa menos velha, menos enferrujada. Estava ali já construindo a escola de dança, hoje o Museu da Imagem e do Som, aquele prédio da Visconde de Maranguape que o Grisolli participou muito diretamente. Ele que conseguiu os recursos. Aí juntamos a escola de dança e eu levei toda a tecnologia para lá, a parte tecnológica, os filmes, documentários. Outra parte entreguei para o Cosme Alves Neto. E aqui no Parque Lage a gente montou uma base que se relacionava tanto com a rádio quanto a divisão de áudio visual. Aqui existia condições para fazer as conexões. Esse diálogo amplo com a sociedade, com artista, com as experimentações de forma geral passaram a vir para o Parque Lage, então o MAM, que tinha uma atividade um pouco mais restrita, mas era naquele momento ainda um ponto de convergência, perde essa potencialidade, ele continua sendo um ponto de referência até o incêndio de 1978, onde o Parque Lage ocupa papel fundamental de denúncia do MAM que foi um incêndio criminoso porque o MAM era uma frente que se confrontava com a ditadura militar, de alguma forma estava ali, foi ali que foi feito o Banquete dos mendigos, os shows da sala corpo e som com Sidney Matos que era um cara visado também, o Cosme Alves Neto era perigosíssimo para a ditadura porque ele projetava filmes importantes da história do cinema e do Brasil, projetar Glauber Rocha? Imagina. Os filmes que tinham revolução russa, então era perigoso, foi preso várias vezes. Então o Parque Lage passou a ter uma fisionomia que não era muito fácil de identificar. Como sendo um espaço de esquerda ou de direita, ele tinha uma coisa maior, era mais amplo, a radiação dele era maior, então convergiu para cá toda essa liberdade de expressão e uma prática dessa liberdade de expressão veio para cá e com isso vieram todas as experimentações que eram feitas tanto no Rio de Janeiro como São Paulo, Brasília, Pernambuco, Bahia, então virou um centro, por exemplo, o Zé Ramalho uma vez me procurou lá na rádio Roquete Pinto, lá no andar... olha, está chegando, olha ele, esse aqui, foi lançado aqui, esse é o dia do lançamento. O Zé Ramalho falou, "oh cara, tô chegando no Rio de Janeiro, já tem um tempo que tô aqui e o negócio tá russo, meu irmão. Eu tô para lançar um cordel aqui, o Apocalipse, eu posso lançar lá no Parque Lage?", olha ele aqui, o Zé Ramalho lançou Apocalipse aqui, encheu porque os shows de música, as pessoas às vezes nem conheciam os artistas, mas eles vinham para o Parque Lage, ele lançou Apocalipse aqui. Então para você ver um exemplo. Artistas também que não tinham assim, um trabalho ainda construído como o Zé Ramalho já tinha naquela época porque ele era apenas desconhecido, também começaram a procurar, "posso lança meu disco? Posso lançar meu livro? Posso lançar meu saco de tudo? Posso lançar essas experimentações que a gente fez aqui no nordeste?". Eu não tinha nem tempo de encontrar então eu fazia programação pelo telefone. O grupo Cana Brava, "tô a fim de tocar no Parque Lage.". Aparece lá dia tal e vai ter um Verão a mil, vai lá, você entra na fila, o grupo de vocês. O grupo Água do Chile, "posso apresentar lá?", claro, entra na fila.
BERNARDO: Como era esse negócio da fila? Quem chegasse primeiro tocava?
XICO CHAVES: Na hora eu penava para organizar aquilo porque tinha aquela fila de poeta. Tinha fila de 50 poetas para falar, às vezes e não cabia. Os shows começavam às 7, 8 da noite e iam até 3 horas da manhã. O que acontecia até as 3 da manhã? Tudo o que você pode imaginar. Lógico que o cara subia para o terraço para fumar um baseado, o outro tomava um ácido e ficava andando pelo mato afora, desaparecia e ia lá para a cachoeira lá em cima, um outro grupo chegava para tocar e não tinha avisado. Chegava com cara do saxofone, tarol e outro com trombone, entendeu? E eu falava, "bicho o que é?", "tô a fim de tocar aí." e um outro chegava com um saco cheio de publicações, de coisas, poesia gráfica feita em xérox, aí você tinha que organizar aquilo, criar um modelo. Não existia modelo de produção alternativa, não existia, por isso chama produção alternativa, então com o tempo tinha que ter uma certa organização aquilo ali, então os modelos surgiam, modelo tem que ser livre senão não funciona. Se eu botar um modelo padrão profissional de produção não vai funcionar porque não corresponde à linguagem de liberdade que a gente quer. Então a gente começou a fazer o seguinte, deixou de ser 1 vez por semana para ser 3 vezes na semana. A gente colocava um dia para poesia e música, outro dia para lançamento de vinil, mas o pessoal de poesia entrava também, quer dizer, não tinha como, mas tinha um eixo principal e um outro para poder experimentações de forma geral, por exemplo, o Guilherme Vaz entrou em uma programação dessa menos complexa porque ele iria utilizar a piscina com uma sinfonia que ele fez, não sei se alguém gravou porque foi genial, onde com canos de metal de vários tamanhos ele mergulhava na piscina e tocava a medida que ele mergulhava a vibração do cano ia mudando, então ele conseguiu fazer uma melodia aqui fantástica com canos vazios dentro da piscina, utilizando o próprio sistema hidráulico e um silêncio absoluto, tinha um respeito enorme, o terraço era sempre barulhento, o terraço era uma área de namorar, fumar um baseado, conversar bobagem e não vazava o som, às vezes você tinha que gritar do microfone, "Olha aí pessoal, muito barulho em cima.", porque eu apresentava todos os shows, "agora fulano de tal que veio lá...", eu perguntava, às vezes, antes porque essa fila entrava para esse espaço aqui embaixo que era a antiga biblioteca e mais antigamente a sala de jantar da Besanzoni que tem histórias fantásticas, pena que o Arduino tenha morrido antes senão ele ia te lembrar, então essa fila entrava e ali dentro virava uma área de afinação de instrumento, um lendo poema para o outro, o que acontecia nessa sala aqui era tão genial quanto o que acontecia lá fora, o cara se preparando, o cara pintando a cara para falar um poema, botando um parangolé, uma roupa qualquer, entende? Umas capas, isso aqui era um ateliê de loucuras e de conversações, então quando eu chamava o cara, ele já vinha, "peraí que eu tô chegando!", então chegava lá um cara com um negócio na cabeça meio caindo de banda e o poeta me reclamando, "Porra, bicho, era eu nessa hora.", então não tinha um roteiro, o que acontecia era que as pessoas esperavam, tinham alguns que desesperavam, mas estavam ali. E como estava sempre cheio tinha público a todo minuto, quer dizer, alguns iam embora e outros chegam. Então vinham para cá além de artistas jovens, gente que estava experimentando, poetas, experimentadores de linguagens diversas porque a linguagem mais importante naquele momento ali, não mais importante, mais presente naquele momento eram as linguagens de poesia visual, por incrível que pareça, nas produções alternativas, não era a publicação do texto formal, modernista, por exemplo, o Nuvem Cigana que desempenhou um papel importante no comportamento e na construção da poesia daquele momento ali, a produção maior era a produção de poesia visual. Eu trouxe alguns livros. Lançamentos que eram feitos, por exemplo, eu tenho um pacote ali do Paulo Bruscky que eu estou vendo ali que era de poesia postal, daquelas coisas todas que extrapolavam pura e simplesmente a formalidade da poesia organizada em página. Olha, eu fiz questão de nunca abrir isso aqui, eu não sei o que o Paulo Bruscky mandou para mim, eu não tenho ideia, eu tenho mais lá em casa, coisas que ele mandar para lançar aqui.
BERNARDO: Isso era feito dentro do Parque Lage ou não?
XICO CHAVES: Não. Feito fora, mas aqui era o ponto de distribuição e lançamento. Aqui, eu não sei, tem um selinho, eu não abri e não vou abrir, não sei nem se vou chamar o Paulo Bruscky para abrir esse envelope depois de 40 anos. Então ele mandava 10 exemplares desse. Aqui mais um outro, Brasil-Bélgica, arte postal Brasil-Bélgica. Porque a escola também, olha que loucura, A única frente é o poema, Paulo Bruscky também, aqui está até caindo uma aqui, não vou nem abrir porque se eu abrir, olha, então quer dizer, essa poesia era a poesia que representava aquele momento dos anos 70, muito radical para aquele momento, pena que ela ainda não tenha sido devidamente mapeada, não era só poesia. A gente parte de uma coisa, naquele momento ali, nós já tínhamos tido um manifesto do Poema Processo. O Poema Processo, o manifesto de 67 poderia corresponder ao movimento neo-concreto nas artes visuais porque até então o ponto mais avançado, mais contemporâneo, vamos dizer, da poesia, do poema, vamos até falar poema, era o poema concreto. O Poema Processo rompe com a estrutura formal do concretismo e transforma o fotograma em palavra. O desenho, o xérox e as tecnologias daquele momento passam a ser parte integrante do poema, além da palavra. Então a palavra é um elemento a mais na composição, ou seja, corresponde perfeitamente ao que estava acontecendo naquele momento, onde todas as linguagens se convergiam e formavam um complexo de expressões que apontavam a muitas direções ao mesmo tempo e o que é a arte contemporânea senão isso? O Parque Lage representou esse momento, essa linha de fronteira entre um estado de criação modernista e o estado de explosão da arte contemporânea, ou seja, é como se fosse um rito de passagem e nesse rito de passagem estava concentrada praticamente toda a explosão que iria acontecer em seguida.
BERNARDO: Você fala da questão da multimídia hoje.
XICO CHAVES: Isso. Ou seja, a escola de artes visuais representou, nesse momento, a síntese de tudo o que iria acontecer posteriormente. Nas experimentações da linguagem artística de forma geral, no pensamento, na construção do pensamento contemporâneo e no agrupamento de todas as mídias possíveis que apontariam para o que se faz hoje em dia na arte contemporânea, então estava ali, além de representar as mudanças dentro das próprias linguagens convencionais. Acho que não foi o que você queria não.
BERNARDO: Que você fala de uma coisa que eu gostei no teu texto, fala da imaginação no poder. O que seria essa ideia de imaginação no poder?
XICO CHAVES: Vejo só, 1968 o mundo passa por manifestações da juventude exigindo seus direitos em vários lugares do mundo, então teve o movimento de maio de 68, embora eu ache que Brasília antecede isso, Brasília já tinha movimentos similares em 67 para 68, mas o de Paris é o ícone, então em Paris estavam Godard e todos os intelectuais, Sartre, Beauvoir, principalmente o pessoal de cinema. O Godard teve uma atuação muito importante fazendo os pequenos filmes dele, então a frase que se propagou pelo mundo inteiro naquele momento com a juventude propondo mudança em todos os campos da área, da educação, da cultura, da economia, era a imaginação do poder, ou seja, a juventude que deve assumir a juventude nesse momento. Então essa juventude no Brasil, até arrepio, não assumiu o poder naquele momento, não pode assumir porque a gente estava sob uma ditadura. Se a gente tivesse uma mudança naquele momento o país talvez tivesse sido bem melhor do que hoje porque aquela juventude ali tinha uma formação intelectual, uma formação política. Ela vinha dos movimentos estudantis, estava passando pela contra cultura, ela tinha lido bastante, tinha ocupado seu papel de lutar pelos direitos de expressão, por todas as liberdades. Então ela sabia ou intuía o que era necessário para o país. E talvez ela ali criasse uma nova metodologia, assim como era capaz de criar um novo modelo para espetáculo, para show, para atividades culturais que não fossem tão profissionais e tão engessados para um país novo, um país que estava em um momento de muita violência para um lado e muita criatividade por outro, procurando sair. Grande parte dessa juventude foi exatamente assassinada, morta, torturada e desmobilizada nos anos 60 até exatamente nesse período aí e vai até 80 e poucos que foi uma perda muito grande para o país. Então a arte foi a bandeira de resistência, você vê na própria passeata dos 100 mil quem está na frente, são os artistas de mãos dadas, então os artistas ocupavam um papel fundamental. Exatamente por conceber um país livre, conceber um país altamente criativo como ele é na sua formação cultural, na sua formação mesclada com tudo que é tendência com todas as etnias e expressões culturais e contemporâneas possíveis, então a imaginação no poder talvez representasse isso, embora seja uma frase francesa, nem sei se é francesa, mas é uma frase que foi difundida, cunhada, cunhada de quem eu não sei, mas foi cunhada na França. Aqui a gente certamente tinha outras frases que não vai se lembrar mais.
BERNARDO: E esse negócio que você fala do... a gente ficou brincando que a gente não consegue falar essa palavra de uma vez, a transinterterritorialidade?
XICO CHAVES: Começa a surgir aí umas terminologias que já são desses anos 70, 80, já está até menos utilizadas, mas depois volta nos anos 2000, a transterritorialidade, qual é mais? Transversalidade...
BERNARDO: Não. Você fala em interdisciplinaridade, tudo bem.
XICO CHAVES: A interdisciplinaridade. Bom, veja que o projeto do Gerchman para a escola de artes visuais, ele é referenciado basicamente na interdisciplinaridade. O que a interdisciplinaridade significa? Ela significa a conversa entre todas as tendências e todas as manifestações. Uma pessoa frequentar um curso de dança ou uma experimentação com o corpo e ao mesmo tempo estar pintando significa que ele está adquirindo conhecimento em uma área e certamente, intuitivamente ele vai incorporar aquilo na pintura. Ou se for no caso da ciência ele vai incorporar o conhecimento científico na pintura, no caso da tecnologia a mesma coisa. Veja que naquela época já começa a surgir os primeiros equipamentos de vídeo, as experimentações de vídeo já estão ali, isso veio o Parque Lage, estava ali Anna Bella Geiger, os artistas que frequentavam o Parque Lage além dos artistas usuais, hoje consolidados e reconhecidos, tipo Anna Bella, Lygia Pape, Hélio Oiticica, isso é frequência permanente, estão aqui tomando um café porque tinha a cantina, a cantina já estava aí, era genial aquela cantina, você encontrava gente jovem ali que estava preocupada com o país e propondo coisas permanentemente, ali fermentava a geração 80 que era aluno já na época, grande parte da geração 80 já estava ali frequentando a escola e nessa conversação por experimentações diversas. Na área de música vinha Milton Nascimento, Macalé, Caetano Veloso, vinham aqui só para dar um bordejo, dar uma passeada, uma frequentada, ver o que estava acontecendo, encontrar amigos, marcar encontros, virou um ponto de referência. Gente que chegava de São Paulo vinha para o Parque Lage, chegava de Paris e Parque Lage, daí ele ter estabelecido várias pontes internacionais, então o Gerchman tinha essa capacidade de atrair e incorporar dentro da escola as diversas tendências e frequências e vibrações que estavam acontecendo no mundo também, ele tinha vivido fora do país, vários outros que frequentaram aqui viveram fora do país, Hélio Oiticica teve uma experiência fundamental em Nova York, então como ele também, outras pessoas que circulavam por vários países. Então começou a se entender que isso não era uma coisa puramente brasileira. Essa característica cosmopolita do Rio de Janeiro era exercida aqui, não existia nenhuma descriminação contra o Geraldo Azevedo que era nordestino, por que não? Nós já tivemos prefeito nordestino no Rio de Janeiro, a presidência da república foi ocupada por gaúchos e de vários outros Estados. O Rio já estava acostumado com essa relação. Isso começa a se perder um pouco quando a capital sai daqui e vai para Brasília, e Brasília começa a crescer também com essa característica, mas o Rio nunca perdeu totalmente isso, perdeu do ponto de vista econômico e financeiro, mas o espírito aberto, o espírito de incorporação de tudo o Rio não perdeu. Então o Parque Lage no campo da arte era isso e é continua sendo até hoje porque isso impregna o corpo físico, matérico de tal forma que ele se torna um espírito, se torna uma energia inexpugnável, então o Parque Lage tem uma energia transformadora e inexpugnável, seja que modelo for, podem burocratizar todas essas pedras que elas vão sempre falar.
BERNARDO: Vem cá, o que seria essa extradimensionalidade? Alguma coisa para além da forma?
XICO CHAVES: Ultra?
BERNARDO: Extradimensionalidade.
XICO CHAVES: A extradimensionalidade era o quê? À medida que você conversa abertamente com os diversos campos da arte, da ciência, você passa a incorporar os outros conhecimentos que fazem parte da mesma coisa. A poesia, por exemplo, não é um instrumento da palavra, ela é o instrumento da expressão tua com o ser humano integral, então essa extradimensionalidade é sair da dimensão restrita que se impunha uma linguagem para incorporar a partir para outras expressões, ou seja, não é dar complexidade, é dar alta dimensão, dar outras dimensões.
PEDRO: Eu tinha uma pergunta para você, assim, você falou, eu estudei aqui no Parque Lage uns 3 anos, tinha 19 anos, mais de 10 anos e você falou dessa coisa das pedras. Eu senti que já estava enfraquecida essa onda, muito enfraquecida...
XICO CHAVES: Vou dizer.
PEDRO: ...queria saber por quê? E uma pergunta que acho que tem a ver com a outra, qual era, você falou muito sobre isso, mas pessoalmente, qual era o teu drive na época? O que te impulsionava a ter tanta energia para fazer essas paradas todas que você fez? Qual era o tesão? Eu entendo que o mundo em transformação dá tesão, mas por que você acha que hoje em dia não tem esse tesão todo aqui?
XICO CHAVES: Seguinte, quem realiza bem uma ideia é que concebe essa ideia, então aquele momento ali de criação da escola de artes visuais e convergência das pessoas era um momento de alta potência e ninguém sabia muito bem o que fazer com aquela potência toda, então ela tinha que vazar, então ela passou a representar tudo que era de bom, de ruim, de positivo, de negativo, de experimentações das mais diversas, ou seja, tinha um caldeirão que estava sendo mexido, mas ninguém sabia o que ele ia produzir. Se ia dar, que liga era aquela, como não vai saber nunca, mas todo mundo torcia para aquela sopa ficar pronta, mas não dava tempo, então tinha que tomar a sopa naquele momento que ela estava fervendo ali, tomar uma parte dela, daqui 10 minutos não era mais aquele mesmo sabor, já tinha acrescentado mais uma erva, mais uma coisa. Então essa coisa que era genial. Com o tempo, o que acontece, essas coisas que dão certo, passam a representar um certo perigo porque a liberdade só assusta quem tem medo e quem não tem medo não se assusta com a liberdade. E a liberdade de expressão, convenhamos, é um perigo para qualquer regime autoritário. Então o que acontece é o seguinte, nós estávamos no regime autoritário, a experiência estava dando certo, então naturalmente surgiram pressões para que aquilo maneirasse um pouco porque aquele caldeirão podia explodir muito, entendeu? Podia dar uma desestabilizada e muitos interesses e os interesses ameaçados reagem para poder cercear um pouco uma coisa que eles não compreendem e se compreendem é pior ainda porque vão ficar sob ameaça. Então acho que houve algumas exigências no sentido do controle de uma coisa que seria absolutamente incontrolável. Então ali se condensava tudo. O que veio depois, a saída do Gerchman daqui foi de uma certa maneira uma reação contra alguma pressão. Falta de investimento porque quando você cresce com uma ideia você passa a necessitar de mais recursos para poder manter o fluxo correndo normalmente. Autoridades e outras forças ocultas vão se manifestar por canais subreptícios que você jamais imaginou que existiriam e eles são montados para isso, para minar as coisas que estão te propiciando a liberdade absoluta. Então eu acho que a partir dali, quando a escola de artes visuais mostrou que era revolucionária no sentido da mais ampla liberdade, algumas forças ocultas começaram a atuar e procurar a enquadrar ela de alguma maneira, dentro de um modelo institucional para que eles pudessem ter o controle daquilo. Eu tenho impressão que foi isso que fez com que o Gerchman pedisse para sair já em 69, não é, Clara?
CLARA GERCHMAN: 79.
XICO CHAVES: Oh, 69 não, 79, não é? Então teve um diálogo ali que deve ter alguma documentação sobre isso e certamente alguma pressão aconteceu e ele se sentindo impossibilitado em parte, porque o Gerchman não era um cara de engolir sapo, eu já vi ele várias vezes criar o maior auê, não só dentro da escola de artes visuais como na casa dele mesmo, quando ele era cerceado no seu direito de expressão.
BERNARDO: Como era o Gerchman?
XICO CHAVES: Era um cara altamente democrático, engraçado, tinha humor e uma seriedade, uma profundidade contemporânea em tudo que ele falava, não era uma coisa formal, o Gerchman não era formal, mas ele tinha um lado muito organizado, ele tinha uma certa racionalidade que fazia com que ele chegasse a um determinado objetivo planejado, então tinha a característica ideal para aquele momento. Se você deixa tudo desorganizado não acontece nada, então tem que ter o mínimo de organização. Embora a organização fosse informal, ela existia, então ele procurava conter determinados conflitos, dava uma bronca ali, ajudava a organizar um curso que não estava correspondendo muito bem a um processo criativo mais acelerado, profundo, então ele interferia sim, mas nunca em uma forma autoritária. Existia sempre um diálogo, então acho que isso fez com que a escola não se perdesse. Outras pessoas colaboravam com ele nesse sentido também e discutiam com ele. Tinha um grupo que a medida que você for gravando, for pesquisando, você vai encontrando essas pessoas que ajudavam no sentido de equilibrar essas forças que às vezes se conflitavam uma com a outra. Então continuando, quando ele sai eu não me lembro quem foi o seguinte diretor aqui agora. Eu sei que logo depois dele, por exemplo, eu continuei mais um pouquinho
CLARA GERCHMAN: Eu queria saber um pouco sobre isso porque a gente achou que ele sai em março de 79 e a gente vê que tem um planejamento para esse ano para a escola. Só que ele sai e a gente descobriu, a gente vê tanto que alguns professores ficaram e outros imediatamente já saíram, então a gente não sabe como ficou esse ano.
XICO CHAVES: Essa passagem aí muda um pouco. A saída do Gerchman é como se fosse a saída da grande esfera energética. Quando sai o criador daquilo o vazio se estabelece. Uma nova gestão significa que outra construção vai ser feita, então quando ele sai, as pessoas mais próximas ali, algumas também saem porque são as pessoas de confiança que dialogam naquele mesmo nível. Outras continuam porque embora também dialoguem no mesmo nível sentem uma necessidade estratégica também de dar continuidade, afinal houve uma consolidação de certas ideias. Então o Parque Lage fica com a metade, uma parte do corpo formador. Eu fico mais um pouco porque eu achei que tinha uma programação, tinha que dar prosseguimento. Afinal a mudança que ocorreu não foi tão grande, mas a saída da energia motora, criadora principal desmobiliza naturalmente, qualquer instituição, qualquer grupo, qualquer banda de música acontece isso, passa por um período de reflexão e mudança porque afinal uma nova orientação significa um novo caminho. Eu sei que aí o Parque Lage não perdeu essa característica de polarizar as manifestações diversas, mas mais do que aquilo ali nunca mais vai existir, então houve um momento em que o teatro foi predominante. A escola de artes visuais virou praticamente um cenário shakespeariano, isso foi importante porque o pessoal de teatro convergiu para cá, experimentou aqui muitas coisas, muitas linguagens do teatro que estavam formalizadas no palco italiano, que estavam já em um modelo cristalizado, então aqui ela se expandiu para as colunas, para o terraço porque esse modelo já existia, já tinha sido provado que era possível. Ainda estou continuando a responder a sua pergunta. Algumas áreas começaram a se consolidar mais no caso da pintura. A pintura daquele período se desdobrou, então vem mais um trans ali que chegava naquele momento que era a transvanguarda, transvanguarda chegava ali também naquele período de passagem caracterizado como transvanguarda na Itália, mas a pintura que se produzia aqui, de uma certa maneira era... tinha a ver com aquilo já nos anos 80, mas na verdade nasceu um pouco antes porque a pintura foi predominante, por exemplo, na geração 80, ela praticamente representa o “Como vai você, geração 80?” do qual que participei como artista, mas no catálogo eu estou classificado como poeta e eu prefiro 1 mil vezes. Agora veja só até os anos 80, 79, 80, houveram várias experimentações de intervenções, instalações, experimentações no campo da imagem fotográfica, no campo do vídeo, super-8, o cinema de forma geral, as experimentações no campo da pintura, da escultura, da cerâmica, todas já tinham sido feitas, da poética então nem se fala, então já estava ali. Se em 80 e poucos ela incorpora mais a pintura, porque a pintura teve desenvolvimento mais consolidado ali, então a geração 80, embora seja caracterizado como o movimento do prazer de pintar, que eu acho que é uma bobagem, ela tem uma presença grande de pintores, ou seja, tentou se consolidar e se consolidou, o geração 80 como pintor, agora o geração 80 tinha também um pessoal experimental da instalação, da arte conceitual e etc. Esses não fazem parte das curadorias que direcionam o geração 80 para um campo da pintura, fazem parte de outro, que essa outra parte foi o que foi gerar arte contemporânea dos anos 80 para 90, elas estavam no geração 80, uma parte.
BERNARDO: Vou aproveitar que você está falando até dessa questão até da geração 80, da pintura, porque assim, tem um texto que a gente está estudando que é uma referência para a montagem da exposição do Alan Kaprow, que ele fala um pouco dessa coisa do final dos anos 60 e ele está falando um pouco desse movimento de arte naquele momento ali que quebrava com essas relações tradicionais com a coisa da galeria e principalmente do padrão burguês da arte, esse padrão branco, burguês, rico, galeria, do mercado e ele fala muito dos artistas buscarem a arte como experiência mesmo. A gente pode dizer que o Parque Lage na época do período do Gerchman a experiência era mais importante do que propriamente o resultado?
XICO CHAVES: Era. Porque aqui era um centro experimental. As exposições que tinham aqui já eram em si experimentais, então não tinha um objetivo de formar aqui um mercado de arte, seu objetivo era discutir a arte em todas as dimensões, então nada mais propício para isso do que experimentação. Então era experimentação mesmo, era um centro de experimentação de arte com todas as tendências.
BERNARDO: E com erro inclusive.
XICO CHAVES: Com erros, equívocos, eu não podia prever ou o Gerchman ou qualquer aluno, prever que um cara ia participar de uma exposição com um trabalho convencional, entendeu? De repente chegava um trabalho considerado entre aspas ruim. Agora aqui serviu de território para a crítica se formar também porque toda a crítica que se forma nos anos 80, 90 também frequentou e participou desse processo aqui e do museu de arte moderna também, então o pensamento crítico, a reflexão conviveu com isso aqui. Agora uma coisa era importante, quem estava a frente do processo de reflexão, de transformação naquele momento era o artista, não era o crítico, não era o curador, o curador vem em consequência e por necessidade de afinar ou organizar esse caldeirão todo. Agora cada um organizou de sua forma, mas aqui foi o centro de observação, depois ele se desloca, parte para São Paulo, vê que o pessoal de São Paulo de geração 80 vem para cá, já tinha lá a Leda Catunda e todo pessoal da Casa 7, ele se identifica com alguma coisa que acontecia no Parque Lage, lá tinha a FAAP. Antes do geração 80 aqui no Rio, teve o salão de vidro na PUC, mas foi menor. Lá também se misturou a experiência e poesia, o Jorge Guinle estava lá, estava eu com 1 quilômetro de poesia que terminava em uma pilha de pintura desse tamanho papel de computador. Tinham várias pessoas que no geração 80 vieram para cá depois, o geração 80 já dos anos 80, agora na época do Gerchman essa turma inicial estava aqui alguns muito jovens.
BERNARDO: Segundo a pergunta do Pedro que ele fala o que te impulsionava?
XICO CHAVES: Era isso que eu estava tentando. Uma segunda gestão significa uma mudança. Essa mudança não é mais a fonte original que está toda corda, veio uma outra depois. Teve um momento de alta decadência, a escola de artes visuais teve um momento mais adiante que a gente teve que assumir de novo, foi o Triunvirato que aconteceu aqui no anos 90, 90 e pouco que assumiu o Luiz Alphonsus, a Maria do Carmo Seco e eu de volta. A escola abriu de novo e tal e teve novamente o curso de artes gráficas, de outras tecnologias, entre esse período, tinha curso de poesia, poemas, mas como aquele momento a gente não conseguiu mais.
BERNARDO: Por quê?
XICO CHAVES: Era outro momento, a gente já vivia outra coisa, não teve a potencialidade que tinha ali. As mudanças, eu acho o seguinte, no fundo as mudanças já haviam ocorrido. Elas viriam ocorrer novamente em 2000 e pouco quando a Funarte retoma um processo que já vinha...
BERNARDO: Você acha que o mundo das artes ficou mais individualista como o mundo todo ficou? Era mais coletivo?
XICO CHAVES: Muitas transformações. A coletividade era mais importante, afinal as pessoas tinham que se agrupar para poder se confrontar com as forças negativas. Então depois com o tempo o país passou a viver uma espécie de, principalmente, depois da abertura democrática, uma espécie de sonho da democracia não correspondido, na verdade a ditadura não existiu só porque os militares estavam no poder, é porque na história do Brasil as oligarquias sempre tiveram no poder, então elas não deixaram de existir, elas estão aí, inclusive a gente passa hoje esse momento de liberdade de expressão absoluta, está ótimo, podendo falar o que a gente quiser, mas naquele período não podia falar e começou a falar na marra, ou seja, o coletivo fez... agora você pode ser livre, individualmente, coletivamente, mas tem uma ditadura econômica e ela não é nacional, ela é mundial, é diferente, se a gente for entrar na análise de que veio depois a gente tem que reformular o roteiro porque forma muitas coisas que vieram ocorrendo, por exemplo, eu falei aqui... outra coisa que tinha ali, isso é importante, vai cair lá no Paulo Afonso Grisolli, entendeu? Uma coisa que tinha ali é o seguinte, até um certo momento ou determinados momentos tem alguma coisa assim, que parte de um cano de esgoto, de algum lugar estranho, que procura separar a arte contemporânea da arte popular, "são duas coisas diferentes.", eu acho que elas sempre dialogaram, embora sejam campos diferentes porque elas têm uma proximidade uma com a outra. Nesse período do Gerchman aqui a arte popular a contemporânea conviviam numa boa. Quantas vezes a gente fez aqui encontro de folia de reis, de tambor de crioula, sabe? De manifestações populares que as pessoas vinham e assistiam como se tivessem assistindo uma experimentação do Hélio Eichbauer. Mudava um pouco o público porque vinham as pessoas do subúrbio, tinha uma relação com as escolas do subúrbio e de periferia do Rio de Janeiro que vinham para cá participar de alguns programas educativos, então essa discussão do que é popular, contemporâneo, na verdade já estava aqui esse debate e não se apresentava como se fosse um confronto.
CLARA GERCHMAN: O Ciclo do Negro?
XICO CHAVES: É. A Lélia Gonzales que veio com todo movimento negro. Os movimentos antirraciais e contra a discriminação vinham todos para cá. Mais tarde lembro que a campanha da fome, foi aqui que foi lançada com Betinho, então o Parque Lage começou a desempenhar um papel político sempre quando se tratava da cultura da arte como um das referências, sempre. Um certo momento, o que aconteceu, talvez respondendo a pergunta dele, é que também com a institucionalização muito grande dos modelos de produção, eu tinha até reservado um pedaço para falar sobre isso ali, uma série de restrições legislativas burocráticas começaram a existir, vieram junto com o processo de gestão como referência básica, então houve uma inversão, o processo criativo desceu, ficou subjugado ao processo de gestão. Se naquela época não tinha um modelo e nós criávamos um modelo cujo referencial era o processo criativo, o que vem a acontecer ao longo do tempo, foi a subjugação desse modelo livre a um projeto de gestão, então as leis, as portarias., os comportamentos burocráticos, as imposições de organizações governamentais oficiais, os órgãos de controle passaram a predominar e subjugar o processo criativo. Houve uma inversão, o controle subiu e o processo criativo ficou embaixo, ou seja, tudo aquilo que foi praticado ali, acho que eu respondo aí a sua pergunta, ficou um pouco cerceado por essa coisa da necessidade de se ter um processo de gestão e controle. Até a legislação sofisticou para controlar. Lógico, se vai controlar a corrupção tem que ter instrumentos para controlar a corrupção. Mas vem cá, será que o meio cultural e a arte é tão corrupto assim? Por que tem que transferir os métodos de controle de uma instituição que trabalha com bilhões, exatamente os mesmos modelos de controle para uma instituição ou um processo educativo, artístico ou de formação de artistas ou de mercado, seja lá o que for, que trabalha com merrecas? Está errado isso, é necessário ter controle para evitar uma série de transgressões no país que a gente sabe muito bem que origem teve, leia Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre e outros mais, que você vai ver como esse país se construiu, com interesses financeiros, políticos, das maiores elites. A gente está conquistando muito lentamente isso, a liberdade de sobrevivência, cobrir as nossas necessidades mais básicas, ainda estamos, estamos devagar, mas você imagina que esses controles vem surgir de forma padronizadas para todos, mas ele atinge uma área fundamental, onde está exatamente o pensamento transformador, livre, que é a arte e a cultura. Que não precisa disso, então um controle ou outro é necessário, lógico que corrupto tem em todo lugar, mas aqui onde não tem disponibilidade de recurso para poder realizar os projetos culturais que deveríamos realizar? A escola de artes visuais era para estar hoje sem problema nenhum financeiro, mas no entanto continua, sempre esteve. Se a Funarte não tem, teve um momento que teve, mas depois esvaziou, então a cultura, arte, ciência, tecnologia, educação no Brasil ainda está em um patamar bastante desprivilegiado. Então essas mudanças aí, os controles vão surgindo na sociedade de forma geral e elas vão refletir de forma violenta sobre os espaços onde deveria haver mais liberdade, então por isso que a escola passou por momentos assim. Teve um momento que queriam tirar a escola daqui, várias vezes, não foi uma vez só não, foram várias vezes. Aí chamamos até os índios. Teve uma época quando eu era diretor junto com o Luiz e a Maria do Carmo, a gente trouxe o Raoni aqui, foi na ECO-92, a tribo Caiapó inteira aqui e o caramba. O Raoni foi lá para dentro da sala para fumar o charão dele e receber os espíritos dele, chegou uma hora que eu perguntei, "mas o que ele quer dizer Raoni?" e ele disse, "peraí que eu vou receber o tradutor.". Ele veio aqui para dar força para a gente no momento que eles queria tomar a escola de artes visuais e transformar aqui acho que em um centro de taxidermia de pássaros empalhados. Teve uma outra época que queriam transformar isso aqui em um cemitério de cachorro. Tiveram vários interesses, você nem imagina, tão absurdo. Porque em certos momentos isso aqui estava abandonado, então se está abandonado é nosso quem tem o poder econômico e o poder político. Aí não, agora está começando a perturbar muito, está fazendo muito barulho, então vamos botar lá um taxidermia porque pássaro empalhado não chia, entendeu? Lá tem que sair da mão do Estado para ir para a mão do Governo Federal porque lá é um espaço tombado e tem que silenciar aquilo lá, está fazendo barulho. Então a escola de artes visuais faz barulho ainda, não faz o barulhão que fazia no pior momento da história, onde a liberdade de expressão era mais cerceada, foi onde ela fez maior barulho.
BERNARDO: ...é sobre a história do Parque Lage, sobre esse momento. Não é a história do Parque Lage, mas o momento do Gerchman no Parque Lage, a fundação da Escola de Artes Visuais. Então como a gente está buscando a memória afetiva, vamos tentar pegar a memória, mesmo, exatamente da sua experiência lá. A primeira pergunta, eu queria saber como é que você chegou até o Parque Lage, o que te levou até lá, como você descobriu aquela escola, as razões que motivaram o Lauro, o jovem Lauro estudante, a procurar o Parque Lage, na época.
LAURO: Olha só, eu atuava como artista plástico, e eu fiz uma exposição individual no Museu de Arte Moderna do Rio, num projeto que era área experimental. Que era bem interessante, era com artistas de vanguarda. E o Gastão Manoel Henrique, que era professor no Parque Lage, viu essa exposição e adorou. E, aí, me chamou para ser assistente dele numa oficina 3D, 3 dimensões, no Parque Lage. Eu já sabia que a escola tinha mudado completamente de rumo. Eu ia muito ao Parque Lage como parque, antes. Mesmo em 71, o Parque Lage era um pouco um local de encontro de pessoas mais ligadas à contracultura, mais livres e menos de acordo com os sistemas tradicionais. Havia um desejo muito grande de mudar a sociedade através da mudança dos próprios comportamentos e do seu interior, quer dizer, não adiantava só uma mudança política se você não mudasse as mentes. E com isso teve entrada de Era de Aquários, no Parque Lage... Era um lugar que eu frequentava bastante. Agora, a escola, que era uma escola extremamente conservadora, contrastava com todo esse desejo de novos tempos, de novas mentalidades. E, se eu não me engano, em 75, o Gerchman assume a escola e faz uma verdadeira revolução. Ele teve uma extrema coragem, de fazer isso, e ele foi a pessoa certa para fazer, pelo temperamento, pelo preparo e também porque ele era muito maior do que a escola, ele era uma pessoa que só o fato de ele ir para lá ele agregava valor para a escola. E com isso ele – e o Paulo Afonso Grisolli, que o colocou lá – teve força para fazer. Então, o Parque Lage, ao lado do Museu de Arte Moderna, era um centro de criatividade de artes visuais, artes cênicas, no Rio de Janeiro. Tornou-se um lugar afetivo. E a gente não deve se esquecer que a gente estava ainda em plena ditadura, e que esses 2 lugares meio funcionavam como embaixadas livres. No caso do Museu, inclusive, tinha uma guarda do próprio Museu que impedia que as pessoas fossem presas ou pelo Exército ou pela política. Era um território livre. E o Parque Lage assumiu muito isso, e com vários projetos, e de um jeito muito consequente. É impressionante, e eu vejo, aí, muito tempo depois... Eu acabei sendo curador, diretor do Paço Imperial, diretor de artes plásticas, aqui agora do Instituto Casa Roberto Marinho, mas eu fui muito júri de salão de Belo Horizonte, enfim... E é impressionante, porque mesmo você vendo os trabalhos ainda sem saber de quem era, quando você lê a formação os melhores tinham passado pelo Parque Lage. Era muito visível. Os do Rio de Janeiro em geral passaram pelo Parque Lage nesse período, e em São Paulo tem Álvares Penteado, que era forte também, e a própria USP. Eram centros de referência. E foi isso que o Parque Lage se tornou. Agora, a minha ida como professor, eu era, na realidade, assistente do Gastão. Eu era muito jovem, mas ele quis dar um gás mais conceitual à aula – ele é um super escultor, enfim, um artista maravilhoso. E eu e a Dinah Guimarães, que era a minha namorada na época e a gente trabalhava junto, também – e ela foi trabalhar também com o Gastão –, nós propusemos uma exposição Ritos de Passagem, que foi uma exposição que nós pedimos para que as pessoas identificassem o que era rito de passagem na sociedade atual, complexa, a questão, por exemplo, das medalhas, a questão de primeira comunhão, quer dizer, de algum ritual que você fazia para se tornar outra coisa. E houve até um trabalho muito bom do João Magalhães, que era sobre a transformação que o Mário, que era um artista transformista, fazia para virar Marisa. Então, o trabalho era sobre de que modo ele se maquiava para mudar de gênero. Foi uma exposição bastante boa, na época, quer dizer, teve bastante repercussão, e tudo. Aí, eu no Parque Lage passei a ter um contato pessoal com o Gerchman, e era realmente entusiasmante. Era um dínamo, era uma pessoa super inteligente, prática. Nem sempre você consegue que a mesma pessoa reúna inteligência e senso prático, muitas vezes até não, mas ele tinha um senso prático muito bom. E, também, não tinha medo de conflito, quer dizer, pelo próprio temperamento era uma pessoa audaz. Aí, eu passei a frequentar, de vez em quando, a casa dele, enfim, tivemos relações pessoais. E o fato é que quando ele saiu do Parque Lage eu também saí. Eu, depois do Gastão, ainda na gestão dele, cheguei a dar um curso separado, quer dizer, solo, um curso meu mesmo, e que era sobre criatividade, arte e conceito. E o curso envolvia convidar artistas para que conversassem com a turma e propusessem um trabalho durante. Então, nós tivemos Lygia Pape, Artur Barrio, Luiz Alphonsus. E na aula, que era uma coisa, aliás, que me encantava mas também me perturbava muito, eu tinha como aluno o Jorginho Guinle, que tinha um preparo teórico maior do que o meu, inclusive. E ele, de certo modo, me forçava a levar a aula num grau muito mais elevado do que os outros alunos poderiam acompanhar. E eu sempre vivia convencendo o Jorginho a largar o curso, porque "você não tem nada a aprender aqui". Mas ele adorava o curso. Ele era fotógrafo, e ele estava começando a fazer uns desenhos com óleo. Eram uns desenhos muito simples, muito minimalistas, bonitos. E ele continuava lá, e inclusive muitas vezes a aula continuava na casa dele, num jantar que cada artista fazia a comida que sabia, ele fazia também, enfim... Foram tempos muito agradáveis. Aí, um dia eu dei uma aula sobre Marcel Duchamp, e o Joginho sumiu. Aí eu falei, "graças a Deus, até que enfim ele percebeu que eu não tenho muita coisa para ensinar". Aí, 15 dias depois ele apareceu. Ele, na realidade, tinha ido aos Estados Unidos ver aquele último trabalho do Duchamp, que é numa fresta, e havia comprado, nesse museu de Filadélfia, para mim o livro do Schwartz 00:09:21], e para os colegas uma série de pequenos presentes gentis. Aí, voltou o Jorginho, de novo. E era ótimo, porque era como um professor também. Mas o Parque Lage, eu acho que incentivava isso. Não era uma coisa beletrista, era uma coisa que aluno, professor, se engajavam em projetos e trabalhavam juntos. E isso eu acho uma coisa bastante fundamental. Quando o Gerchman saiu, a minha vida também... Eu comecei a fazer Antropologia, fui fazer mestrado, doutorado, e, de certo modo, também, eu me desinteressei. Quer dizer, era um espaço tão livre e amistoso para mim, que eu não tive paciência para, e nem tentei ficar em outra estrutura. Sei, até, que depois foi feito um ótimo trabalho, depois teve Geração 80, etc., mas eu segui outro rumo. E quando eu botava no meu currículo que tinha dado aula no Parque Lage eu fazia questão de botar entre parênteses, "gestão Rubens Gerchman".
BERNARDO: Vocês são, vamos dizer assim, a primeira geração pós 68. Então, me parece, eu vi no seu depoimento, que realmente vocês conseguiram botar em prática o slogan [00:10:56] A Imaginação no Poder...
LAURO: De certo modo, sim.
BERNARDO: É, né? Porque eram professores muito jovens. Em cima disso que você falou, até desse gancho do Jorginho, como era para você, muito jovem ainda, já ser um professor, ao lado de pessoas tão grandes como um Eichbauer?
LAURO: Olha, era uma época também que a juventude, em si, era um valor muito apreciado. E isso fazia que com alguma irresponsabilidade, arrogância, mas também alguma sabedoria, as pessoas se lançassem. A gente, na realidade, era muito atrevido, a minha exposição no Museu de Arte Moderna propunha a implosão do museu, porque eu dizia que era uma instituição viciada e que tinha que ser transformada por dentro. Aí, eu usava o conceito da implosão de prédios, mesmo, mas, também, o conceito da antipsiquiatria, do Lang, que falava que a implosão era você destruir em si uma personalidade com problemas, vícios, conservadorismos, para você nascer de outro modo. Então, havia um atrevimento e um otimismo muito grande. Quando houve 68, eu tinha 14 anos, então eu ia na passeata às vezes de bibelô de primo, os primos mais velhos iam e eu ia, mas eu, por exemplo, não participei de nenhuma associação. As pessoas muito falavam que eram cooptadas pelos comunistas, eu ficava morrendo de pena, porque ninguém nunca me cooptou, e eu até teria simpatia de ser cooptado. Por um lado havia um certo complexo de não participar das lutas políticas – que não era só meu, era de geração – e, por outro, a gente começou a achar também idiota, porque a gente via que as estruturas mais tradicionais de esquerda reproduziam muito as estruturas de direita. Foi central, na minha vida, o Tropicalismo. Que o Gerchman participou, com Lindonéia. Para mim isso foi uma coisa que mudou a minha cabeça, quer dizer, você procurar uma revolução interna junto com a externa. Quando eu falava da implosão, eu dizia, "ao invés da explosão dos anos 60 – atentados, e tudo de fora, e você tentar destruir – era necessário uma implosão", que era você atuar por dentro das estruturas. Havia também um otimismo, eu acho que muito grande, apesar da ditadura. Era um mundo que parecia cheio de certezas, quem estava de um lado, quem estava do outro. E sabia-se que mais cedo ou mais tarde a ditadura acabaria. E a ideia era que todo mundo se preparasse para ser melhor, independentemente da ditadura.
BERNARDO: No Parque Lage, assim, o Gerchman falava muito da noção também do lazer como pedagogia, como método pedagógico. Ou seja, numa época em que era proibido a reunião de pessoas, era muito importante o fato de estar presente, reunidos...
LAURO: Com certeza.
BERNARDO: ... Além do teu momento, ali, como professor, como era fora da sala de aula a tua convivência ali no Parque Lage? Quem era a tua galera?
LAURO: Olha, eu era da idade dos alunos, nessa época. Eu tinha 24 anos, quando eu fui para lá. Então, eu era muito amigo. Eu fui assistente da Lygia Pape, que foi, aliás, quem me abriu o interesse de artes plásticas, pesquisa de arquitetura. A Lygia, de certo modo, mudou a minha vida. E a minha galera era o Evandro Sales, por exemplo, que até fazia aula, o João Magalhães, quer dizer, várias pessoas que estavam ali na época. Também professores. Eu fazia Arquitetura, ainda, eu me formei em 79. Em 78 eu ainda era aluno de Arquitetura, e eu me lembro que na faculdade você não podia fazer uma reunião com mais de 6 pessoas sem pedir permissão ao diretor de Arquitetura. Então, era um clima que era o absoluto inverso. Eu fiz a faculdade muito para atender até demandas da família. Meu pai teve uma solução inteligentíssima, como eu era de uma faculdade particular ele disse que se eu fosse para a pública ele me daria o preço da mensalidade, aí eu fiz outro vestibular e fui para a federal. E ele me pagava. Então, era uma espécie de emprego mínimo. Mas eu considerava que a minha atividade, mesmo, era ser artista, era fazer coisas para a Lygia, fazia super 8, trabalhos meus. E o Parque Lage foi o primeiro lugar mais institucional que também se podia exercitar a criatividade, ali no dia a dia. O MAM era outro, mas era muito mais a cantina do MAM, ou os cursos, também. Por exemplo, se você não sabia o que você fazia no final da tarde, era uma ótima você ir para a cantina do Museu, porque você encontraria Antonio Manuel, a própria Lygia, o Vergara, enfim... Eu não quero parecer saudoso, e eu acho que as novas gerações também retomam isso, mas era uma época que todo mundo tem mais tempo, e havia uma mentalidade – e isso eu acho que é um pouco diferente – menos individualista. E havia alguns radicalismos bobos, mercado de arte era considerado um leviatã, quer dizer, tudo era viver sem o mercado. O que também era complicado, porque se você não vive com o mercado você vai ter que viver com instituições, e essas instituições também têm lá suas regras. Mas eu acho que foi um período muito fértil, se você vê as pessoas que saíram do Parque Lage, não só no período do Gerchman, mas um pouco depois. E esse movimento, sem dúvida, foi alavancado por ele. E uma coisa, também, do Parque Lage, não havia uma preocupação de apenas formar artistas, o que se queria ali era formar melhores pessoas, melhores consumidores de arte, inclusive. Não era uma fábrica de artista. E isso eu acho também que dava um aspecto bom, porque era muito pouco competitivo, era um trabalho muito irmanado. Eu já fui em escolas americanas, inglesas, e você vê uma competição maluca, mesmo entre os artistas, aquele clima anglo-saxão de eficácia. E o Parque Lage era o contrário disso.
BERNARDO: Quer falar alguma coisa?
PEDRO: No final. Vai no teu raciocínio.
LAURO: Eu não sei se eu estou falando demais.
BERNARDO: Não, pelo contrário, está ótimo. Em cima disso que você está falando, a Heloísa Duarte tem uma análise muito interessante, que é de quebrar um pouco esse romantismo de que aquilo era bom, porque necessariamente não existia o mercado envolvido como, talvez, uma instância final, e o que veio depois é tudo ruim. Quando ela diz que, na verdade, o que existia naquele momento ainda era um rescaldo do milagre econômico, que os filhos da classe média ainda não tinham essa busca tão incessante e competitiva pelo mercado, e nos anos 80, quando a gente vai ter crise de dívida, o segundo choque do petróleo, a situação fica mais difícil, até os artistas filhos da classe média têm que buscar um mercado, e o próprio Gerchman volta ao mercado. Eu não sei se isso vai de encontro ao que você está falando, mas o que eu queria entender, também, é se havia naquela época mais vontade de estar junto e debater do que há depois, se as pessoas abriam mão das suas buscas individuais em prol de uma convivência, de uma camaradagem.
PEDRO: Desculpe, só fazer um adendo. Está ligado a essa questão do tempo. Porque isso para mim é muito intrigante, realmente eu tinha mais tempo, todo mundo tinha mais tempo. Se você pudesse refletir sobre isso, também, o que significa esse negócio do tempo, naquela época.
LAURO: Vamos começar pela questão do milagre. O milagre brasileiro, dito milagre econômico, ele na realidade foi no inicinho da década. Eu sei porque isso me marcou muito. Assim que eu entrei para um mercado de trabalho, o País estava em recessão. Por exemplo, não parecia nada ajuizado o que eu fiz, que foi de arquiteto resolver exercer artes plásticas e escrever livros. Isso era uma opção completamente pouco recomendável, do ponto de vista de estratégia profissional. No entanto, se você vê no longo prazo, a questão da recessão foi tão pesada para meus colegas arquitetos-arquitetos, que acaba que se você é bem sucedido numa área de pesquisa, arte e escrita, você tem até melhores condições. Não foi isso que determinou para mim. Foi uma questão, mesmo, de fazer algo com prazer, da vida poder ser prazerosa, ser mais inventiva, ou ser mais triste e cumprindo ou fazendo coisas. No meu caso, por exemplo, eu era de esquerda. Todo mundo de esquerda fazia Planejamento Urbano, e quem era de direita – era simples – fazia especulação imobiliária, trabalhava para as imobiliárias. Eu era de esquerda, mas, por outro lado, eu odiava a ideia do planejador urbano de querer regular com projetos a vida das pessoas, ou ter a ilusão de que vai mudar a vida das pessoas. Então, para mim era um beco, quer dizer, eu não ia trabalhar ajudando a fazer espigões, mas, por outro lado, também não tinha a menor vontade de fazer coisas modelares para as camadas populares e você achar que vai mexer na mentalidade delas. Então, para mim, a Lygia Pape, o caminho de arte, de outro lado a existência desse centro no Parque Lage e o MAM foram como revelações na minha vida. Revelações, mesmo. E essa questão de tempo, eu me lembro que a Lygia Pape citava muito o Mário Pedrosa, com essa coisa alegria de criar e alegria de viver. E também era uma questão na época, o máximo possível você juntar arte e vida, o teu cotidiano. Isso foi uma coisa que efetivamente a gente acreditava. É claro que, por exemplo, as pessoas pagavam seu preço, eu sabia muito bem, "bom, nunca vou ser uma pessoa muito próspera”, mas, por outro lado, “tenho [00:24:12] uma família que eu sei que também com fome eu não vou ficar”. Então, havia um pouco isso. Agora, eu não sei se o viés econômico é o melhor para explicar isso. Havia uma tendência na arte mundial de um caminho mais conceitual, de arte póvera, e isso você vê em países que estavam economicamente muito, muito prósperos. Agora, eu acho que havia uma demonização, um pouco idiota, de mercado de arte. E havia, por exemplo, uma reação a salão. Era-se contra qualquer coisa que fosse competitiva, classificatória. Então, havia boicotes de salão verão... O Roberto Pontual, que era o crítico do Jornal do Brasil, que organizava isso, era quase que considerado uma pessoa conservadora – o que era completamente injusto – porque organizava coisas dentro de estruturas. Houve uma radicalização que, visto agora é fácil, você diz, "é meio tola, é ingênua", mas, por outro lado eu acho que foi esse espírito que permitiu obras tão boas. Nos anos 80 eu acho que essa ilusão já havia passado completamente, e você também está num período de redemocratização, quer dizer, você já não tem mais um inimigo comum a ser combatido. E, por outro lado, eu acho que os artistas transferem a alegria para as suas obras, essa alegria é expressada, mesmo, diretamente, é uma explosão que acontece. E, também, esse sentimento que, para a sobrevida da sua arte, você não vai estar pendurado em instituições ou aparelhos de Estado. Então, acho que é outra... agora, ambas com muita alegria, na vida ou nas telas. Uma das coisas que eu acho, às vezes, é que nós, brasileiros, tendemos a ser muito dicotômicos, de ter gente que só gosta de arte conceitual, para outro o importante é a pintura, ou gravadores para os quais o ofício do gravador é a coisa mais nobre e pura. Eu, pessoalmente, acho isso uma enorme besteira, é você julgar se você está filmando com uma câmara Canon, ou Laika, ou Nikon, ou Bolex. Todos vão ser muito bons, como instrumentos. Ou você escrever um texto ou a caneta, ou em Apple, ou em PC, em Word, ou em Pages. O que importa é o conteúdo, o que você está passando. Mas houve uma época que eram quase que clubes, decretava-se morte da pintura, enfim – quantas vezes não foi decretada, né?
BERNARDO: É, engraçado você falar isso, porque me parece que os anos 60, 70, havia uma troca maior, por exemplo, entre as áreas. Eu entendi o que você falou, eu estou falando de outra coisa, porque, assim, o pessoal de Teatro dialogava com Artes Plásticas, que dialogava [00:28:01] com Cinema, dialogava com Design, enquanto hoje em dia isso são guetos profissionais, né?
LAURO: É. Isso, mesmo na minha geração... Porque eu nasci em 54, então anos 60 eu era muito moleque, eu passei a funcionar mais ou menos como gente aos 17 anos, em 71, por aí. Mas eu achava muito legal essa coisa que você está falando, essa intercomunicação de todas as áreas. E as pessoas, inclusive, entendiam de outras áreas. Depois foi havendo uma especialização excessiva, que, inclusive, muitas vezes, eu ia na casa de amigos antropólogos, ou professores, e confesso que eu ficava completamente perplexo do que as pessoas tinham na parede. Eu não vou dizer o nome, mas uma vez eu falei para um antropólogo, "olha só, se os artistas lessem conforme você aprecia artes plásticas, eles só iam ler Sidney Sheldon, jamais iam ler um livro seu". Havia um descompasso, mesmo. E eu acho que isso a favor de uma pretensa eficácia, na realidade é pior. Porque, por exemplo, você é um arquiteto, ou um designer muito melhor se você tem cultura. Eu trabalho muito com designer também, e eu sempre escolho designers que além da capacidade específica possam ser um bom interlocutor no processo. Assim como o cineasta, etc. Agora, eu acho que esse mundo mais seta e alvo, quer dizer, que a única determinação forte é a carreira individual, eu acho que isso também leva a você não se interessar muito por outras coisas. Eu dava aula na ESDI, Introdução à Arte Contemporânea, e às vezes eu via as pessoas me olhando... não diziam por gentileza, mas... "pra quê que isso serve"? Então, eu acho que isso realmente é distinto, é diferente.
BERNARDO: A gente encontrou em algum escrito do Gerchman que numa passagem ele fazia uma referência que o Parque Lage era um lugar onde ele queria ensinar às pessoas meio que a viver. Não é tão clichê assim, mas é como se fosse uma ideia de viver, mesmo. Você falou do projeto da contracultura dos anos 70...
LAURO: É, está embutido nisso. O Hélio Eichbauer é isso completamente. E até acho que ele se mantém fiel a essa linha.
BERNARDO: E tem um pensamento que é assim, o Gerchman viveu no início dos anos 70 em Nova Iorque, onde ele teve esse contato com esse conceitualismo num momento onde os artistas estavam querendo desmaterializar os completamente objetos de arte.
LAURO: O Hélio Oiticica, mesmo, ele teve contato. E o trabalho dele volta mudado, volta muito mais conceitual, lidando com letras, também, com paisagem, com o ambiente, enfim. É, eu acho que acompanha. E é muito coerente, eu acho, com a atuação dele na escola. Outra coisa que eu acho nele e via na Lygia Pape era o seguinte, em geral o intelectual ou artista dá aula para sobreviver, dá aula porque é uma ocupação que, com o saber dele, ele consegue algum rendimento. O Camus até dizia que o tempo que você passa no trabalho é uma barganha que você faz de morrer aos poucos para não morrer completamente, de fome. Bom, mas tanto o Gerchman quanto a Lygia, eu acho que eles encaravam... e aí eu posso até falar melhor da Lygia, porque eu fui aluno dela, e fui assistente. Para ela, dar aula era um trabalho de arte, eram situações que ela criava, de espaço imantado, situações. Quer dizer, dar aula não era um peso, um fardo, ou um tempo que ela estava perdendo. Era um tempo que ela estava ganhando, criando, aí, de um modo coletivo, com as pessoas, mas criando um trabalho que era também o trabalho dela. E o Gerchman eu acho que é exatamente a mesma coisa, também, quer dizer, aquilo ali era uma postura existencial, artística e política, a um só tempo. E eu acho que é isso que era tão fascinante. E por isso, possivelmente, que era tão agradável mesmo, ficar ali fazendo coisas, criando. Você se sentia participando de algo importante, e isso é inestimável.
BERNARDO: É, porque o que a gente traz como problema aqui é se essa ação estética que... Hoje em dia, com tanta dilatação das práticas de arte contemporânea, a gente já consegue até olhar para o Parque Lage e entender que talvez aquela ação estética do Gerchman, que inclusive abandona o ateliê para se dedicar ao Parque Lage, é um trabalho de arte, né?
LAURO: Eu acho que sim. Com certeza. E tem uma coisa que eu acho importante, de certo modo algumas conquistas se banalizaram com o tempo, mas fazer aquilo era uma coisa muito original, mesmo. E fazer aquilo num país... A Maria Elisa Costa dá um depoimento que é bastante curioso. Que o marido dela foi exilado político e ela foi morar na França. Ele não podia voltar, mas, num determinado momento, ela veio de férias. E o que se falava do Brasil o tempo inteiro, era uma ditadura horrorosa, com prisões, etc. É claro que tinha isso tudo, mas, por outro lado, ela encontrou o movimento cultural e a vida extremamente dinâmicas e criativas. Eu acho que uma coisa bem legal que aconteceu é que a cultura brasileira não parou enquanto havia repressão política. Conseguiu driblar, ou ignorar, ou confrontar, mas a qualidade da produção foi muito boa, em música, em cinema, em arte, em arquitetura e tudo. Isso eu acho que é um valor bastante grande. E eu acho que às vezes... essa coisa que você falou, de que está tão diluído e de certo modo tudo foi tão experimentado, que às vezes se cria uma vanguarda naif, quer dizer, uma vanguarda que está achando uma grande coisa e é acadêmica também, porque ela está repetindo o que já se fez N vezes. O Gerchman, aliás, eu me lembro que ele foi das primeiras pessoas, e isso me surpreendeu muito, na época, a contestar o termo vanguarda. Ele dizia que vanguarda era um termo militar, que ele não tinha o menor interesse nisso, e que também essa ideia de você ficar pulando obstáculos incessantemente era bobo. Na arte, num determinado momento, e nessa tentativa de fusão com vida, você ia cada vez mais procurando fazer coisas que ninguém tinha feito, expor a sua vida, sexualidade, etc. Dentro da body art, né? E isso o Gerchman falava, que artista não era atleta para ficar batendo recorde sem parar, que o que era importante era a linguagem. Isso eu acho que é muito contemporâneo, no fundo.
BERNARDO: A gente já está terminando aqui, e a pergunta que eu faço agora é para o Lauro. Para você, Lauro. O quê que ficou? Qual foi o tempo que você ganhou?
LAURO: Olha, tanto na área experimental, do MAM, como na experiência que eu tive com Lygia Pape, com o Parque Lage na época de Gerchman, eu acho que me deu uma liberdade de eu compor uma linguagem minha, ou uma atuação minha, mesclando várias áreas, vários conhecimentos. E também sempre uma curiosidade e uma vontade de não repetir um cânone cegamente, mas você meio desconfiar dele, desconstruir e depois construir. Não no sentido violento. Por exemplo, primeiro eu trabalhei muito com cultura popular, com arquitetura popular, fiz um livro até sobre arquitetura de motéis, que evidentemente era uma coisa muito antropológica, mas tinha uma provocação também, "que diabo de sociedade é essa que imagina essas instituições assim?". Mas depois eu fui pesquisar Modernismo. Aí é uma longuíssima história, mas, de certo modo, a minha vontade era desconstruir a história do Modernismo tal como era contada e tentar entendê-la de um modo mais contextualizado. Eu acho que essa liberdade, essa desconfiança e essa vontade de propor novos ângulos, de oferecer novos ângulos, eu acho que é uma herança que certamente para mim foi muito valiosa.
BERNARDO: Como era o Gerchman, o homem? Não o artista, o educador. O amigo, a pessoa, como era?
LAURO: Olha só, era mais velho do que eu, era um artista completamente bem estabelecido. Então, a minha relação com ele não era uma relação horizontal, que eu até tinha com a Lygia, pela proximidade de trabalho. Mas era uma pessoa sempre entusiasmada, instigante. E muito ativo, muito energético, era alguém que te animava a fazer as coisas. Havia um sentimento bastante grande de que estava se fazendo uma coisa importante, que valia a pena, não só para cada um, individualmente, como também para o País, para a arte. Tinha essa coisa legal. E ele passava isso. Além de que tinha muita informação, era um super artista gráfico, também. Era muito legal. Para mim era isso, era uma pessoa um pouco mais velha – ele era novíssimo, mas eu era um guri – que eu olhava com muito respeito, às vezes ia à casa dele, era muito simpático, muito cordial e tudo. Era um cara bem interessante.
BERNARDO: Só uma última pergunta, você acha que é possível, de alguma maneira, a experiência dos anos 70 do Parque Lage ser reeditada?
LAURO: Olha, eu acho que as coisas mudam. Eu acho que ser reeditada tal qual, é impossível. Mas eu acho que um sentimento de curso livre – que o Parque Lage, aliás, ainda tem –, eu acho que é legal, ao lado de uma academicização da arte, que também houve. E há agora canais reconhecidos pelo MEC, dentro das universidades, para a pessoa exercer arte, o que eu acho que é fundamental, porque, inclusive, dá viabilidade para quem está começando, ou artistas, para isso. Agora, acho que é muito legal alternar isso com um campo mais livre, que te permita mais erros sem consequências.
BERNARDO: Essa coisa de permitir o erro é que eu acho interessante. A gente falava sobre isso, que era um lugar onde o compromisso era com o afeto, não era com o acerto. Você podia errar.
LAURO: Com certeza. E o que eu vou falar é meio lugar-comum, mas é verdade, só errando muito é que você acerta, às vezes. Aprendendo do erro. E às vezes o erro é um acerto também. Eu me lembro de uma cena engraçada do Gerchman, que foi o seguinte, quando a gente fez Ritos de Passagem, a gente queria pintar um painel de preto, era fundamental lá para o trabalho. Era o trabalho até do Mário Marisa. E o Gerchman não deixou, porque para depois pintar de branco seriam necessárias demãos e mais demãos e seria complicado. Aí, um dia, não sei de onde, surgiu um cristo gigantesco, botaram próximo ali ao pátio. E o Gerchman ficou absolutamente irado, "quem foi que botou essa coisa aqui? Não, tem que retirar..." Nessa exata hora o meu aluno que queria pintar o painel de preto chegou para ele, "Gerchman, pode pintar o painel de preto?". Aí, ele, "o quê, Fulano?" Aí o rapaz, "pó ptar panel preto?" – ele ia falando cada vez mais enrolado. E o Gerchman lá, combatendo aquele cristo acadêmico, até que, de saco cheio, ele falou, "pode, pode". Um dia depois ele passa e vê o painel preto. Aí ele veio me perguntar, e eu falei, "mas Gerchman, você deixou, eu ouvi você deixar". Aí ele riu.
CLARA: Vamos falar de como você conheceu meu pai, a Anna Maiolino...
ANNA: Com certeza, muito bem. Bom, nos anos 60, eu nos primeiros anos da década de 60 frequentei o ateliê do MAM, do Rio, porque queria fazer algumas obras em gravura, e ali era um ateliê livre, então me permitiram chegar lá, então aprender técnicas de coisas muito elaboradas, gravuras em metal. Foram nesses primeiros anos, são os anos que também o meu trabalho, que era de teor abstrato total, totalmente abstracionismo informal, foi levado realmente em um rigor tremendo, mas o MAM já estava abrindo para geração do Gerchman, a nova... vamos dizer que seria a vanguarda. E dentro do meu trabalho, a própria crise do abstracionismo que eu vinha trabalhando dentro do abstracionismo desde 53, e já estávamos em 64 e 65, eu frequentando o ateliê porque não tinha lugar na minha casa para ter um ateliê com ácidos e tudo, por causa dos meus filhos, eu comecei a encontrar o Gerchman, eu não sei quando é que é a exposição que eles fazem lá no MAM, se é 65 ou 66, eu não sei, então começo a conhecê-los, e no meu trabalho vai ter uma ruptura enorme, um desgaste que eu começo a sentir dentro do próprio abstracionismo, no que eu buscava, que queria encontrar uma série de questões. Então isso, quando se olha de fora, e de longe se vê que essas datas, elas coincidem com o momento político muito perigoso, perigoso dentro da própria questão familiar, onde meu marido sempre foi um pensador, um geógrafo pensador, com um pensamento marxista teórico, e ele estava na mira quando a gente começa a entender que tinha coisas que eu teria de fazer até dentro da minha própria casa, em relação aos livros que tinha, as dedicatórias, bastante coisas que eram bem assustadoras. No caso, o meu trabalho começa a desenvolver alguma coisa totalmente assim, eu dou o nome de visceral, porque o Mário, quando o Mário Pedrosa viu esses primeiros trabalhos, ele também gostava muito do meu trabalho também anterior, ele disse, “Anna, isso é uma fase visceral”, então eu me lembro que na época, quer dizer, a gente realmente artista era mais jovem, aí eu me lembro que eu disse, “mas eu só conheço fase em Picasso, eu não... eu fase?”, e ficou marcante aquilo. E exatamente começo a ter um intercâmbio de conversas, que só uma coisa que na época eu fiquei triste é que quando fizeram essa exposição do pessoal da nova figuração, como eu fazia gravura, é interessante dizer isso, gravura em metal, tinha muito prestigio isso no MAM, a gente participativa no ateliê de muitas obras, mas todo mundo era abstrato no ateliê, que era de uma fase, eram artistas que como eu, nós mandávamos para as exposições, tinha muito sucesso... O que acontece para gente chegar no ponto, é que no... esse trabalho que eu fui desenvolvendo em desenhos, guaches e gravuras, eu começo a participar das bienais, as mesmas bienais que estava o Gerchman inclusive, então por exemplo, nas bienais dos anos 60, 61, 63, quando chega 65 na bienal, meu trabalho já está todo assim estranho, não é... estranho para mim, mas estranho... e aí é que no caso do Mário ele começa a prestar atenção nesse meu trabalho, quando é a bienal de 67, que o pessoal da nova figuração aparece muito bem, e a Pop Art veio da América, foi um ano de bienal incrível para essa informação, porque ninguém viajava e tal, participei com uma sala sozinha com aquelas minhas gravuras, e realmente... e... mas nunca se juntava, quer dizer, eu também eu estava me dando muito com o Gerchman, e o Gerchman estava antes namorando a Anna, depois casou, e eu não ficava vendo uma intensão em conversar com eles assim, sabe, achava eles meio... conversar com ele, Gerchman, com o Antônio era assim, olha, o meu trabalho está aí. O Mário Pedrosa falava essas coisas, mas não no sentido de eu chegar “Mário, vê se me põe...” não pedi nunca, e ao mesmo tempo com essa timidez eu diria... eu deixei de estar em uma coisa na qual eu senti que eu poderia pertencer, a uma nova figuração não pela... a própria figuração desse meninos, nem é a Pop, porque não tem as mesmas motivações da Pop Americana, de uma sociedade de consumo, mas que ela vai ter através do Gerchman, e de outros, mas brilhantemente uma percepção de que essa figuração pode tratar do momento político, eu estou dizendo isso até... os desaparecidos, essa... é realmente... e não é uma... não é um cartaz de propaganda, não é uma coisa assim simples, é uma compreensão que vai dar junto com o próprio movimento figurativo, e que aí os que eram pessoas amigas minhas, artistas abstratos jamais consagrados, pediam reuniões no MAM, para virem esses da nova figuração, e davam-se verdadeiras batalhas ali, discutindo, e eu estava.... eu me lembro disso, de uma das vezes que estava completamente ligada ao que o pessoal estava fazendo, principalmente o Gerchman, que foi a minha ligação maior. Existem coincidências que assim, daqui do Rio de Janeiro onde todo mundo se encontra, em que a Anna Maiolino morava na mesma rua que eu, ela é mais nova que eu, e a Anna ia para escola... então a gente se encontrava, ela sabia que eu já trabalhava em arte há muito mais tempo do que ela estava sendo uma estudante, e logo depois, quer dizer, o casamento com o Gerchman e teve o Micael, e aí uma outra coincidência, isso já em 69, para não tratar de como é que eu encontro o Gerchman, em ocasiões diferentes do que seria só o meio da arte, em 69 o Pedro, meu marido, é convidado para ensinar uma geografia da América Latina... quem convida é o pessoal da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e nós vamos. Quando eu fui com as crianças, a ideia era ir para ficar lá um tempo, com a ditadura... agora, um professor de Columbia não ganhava e... mas isso, enquanto estávamos lá tentando ficar, o Pedro tinha de dar as aulas, eu... o Gerchman estava lá com a Anna, eu acho que ele já tinha a tua irmã...
CLARA: ...a Verônica.
ANNA: Já tinha pequenininha, então eu ia lá na casa do Gerchman, quando os dois pequenininhos, os meus eram maiores, eu já podia deixar com o Pedro em casa, e eu e o Gerchman a gente ia as aberturas de exposições do Whitney do Moma, a gente ficava conhecia já as pessoas, deixávamos as crianças em casa. Então havia realmente uma relação da gente, nunca eu tratando... vamos dizer, porque o Gerchman foi para lá, ele foi com prêmio eu acho, não é? Ele foi com o Guggenheim e eu fui acompanhando o Pedro, depois lá acabei conhecendo críticos incríveis, uma delas a Dore Ashton, que na verdade, não é uma crítica que falaria sobre a nova figuração, ela viu o trabalho de Gerchman, ela era a que fazia biografia, era mais conhecida do Rothko, ela que escrevia. Ela era a bam bam bam, e ela conhecia o Mário Pedrosa, e acabei fazendo uma exposição lá com essas coisas viscerais, e gostaram muito. Mas, então voltei, que continuou o Gerchman lá com a família...
CLARA: ...e tinham outros artistas, que passaram por lá naquele período, foi um período que muita gente saiu do país.
ANNA: Foi, saíram sim, mas eu acho que eu na me lembro mais quando é que eu encontrei o Hélio Oiticica lá, não sei se no mesmo período, porque eu fui algumas vezes lá nos anos 70 já para encontrar as pessoas. Bom, o Gerchman no caso, é um artista, era um artista, que na própria figuração ele era diferente de todo mundo, chama um artista original... não demagogicamente, mas da coisa do povo, das pessoas juntas, aqueles desenhinhos que ele fazia, não sei o que lá, a população, não sei se é influência do pai dele que era um designer, que pegou uma Alemanha anterior, não sei se a Bauhaus... não digo que estudou lá, mas tinha um conhecimento e era um ilustrador também... eu me lembro dele. O que acontece é que o Gerchman então, além da viagem, apresentava um conhecimento cultural, que aparecia na própria invenção dele, quer dizer, como é que ele vai e faz aquele passaporte, isso claro, as questões da busca de identidade e tudo, que vai se reforçar nos anos 70, dentro e não só do momento do país, mas esse mundo local que vai ficando global, então há várias coisas assim, e essa abertura do Gerchman, uma visão em que ele vai pegar... é engraçado isso, quando ele pega a palavra para dizer lute e não sei mais o que, ele é o designer, está entendendo? Como é que ele aproveitou dali, como é que ele tirou isso. Mas ele também começa a ver coisas que outros artistas desse período não estão olhando, que é a população, por isso que eu falei do povo, da população. O Gerchman, claro, tem uma parte que deve ter influído nele assim, em termos do pai ser um judeu alemão, o pai e a mãe, e de olhar nessa identidade. Eu também acabei, vamos dizer, apresentando certas características no meu trabalho, não é apresento, mas apresentando... é melhor o meu olhar para lá, em que eu também vou ver o que é o povo brasileiro, o que sou eu, entendeu? No Gerchman, de uma maneira talvez até menos estranha, ou menos estrangeira, porque como exatamente eu sou de uma geração onde tem aquelas histórias horrorosas de família, de holocausto, o Gerchman não é... eu não sei direito, mas não tem esse peso. Mas a brasilidade além das questões da nova figuração, com a situação política, quem somos todos nós, eu fui sair para trabalhos exatamente onde eu não me identifico. Faço 4 caras dizendo “burocracia” e sabendo que burocracia é uma coisa que perdura, e dentro dos nossos sistemas pesquisa, continua a ser. Não tinha de puxar uma questão ideológica do momento político, então não é metafórico, mas coisas que representavam, e o Gerchman com essas figuras, ele também, ele depois vai para uma fase onde ele faz a Lindonéia, ele não fica parado naquela ideia. Eu estou em um momento político em que preciso falar disso, a gente tem que falar disso, mas ele vai para uma poética onde ele substitui a Mona Lisa, então ele está o tempo todo trabalhando já com questões do que se chama contemporânea agora, dos anos 70. O Gerchman, nesses trabalhos, apesar de ser o pintor, o desenhista, ele pelo trabalho que eu vejo dele, ele vai compreendendo essa coisa do duchampiana, de colocar a Mona Lisa como sendo a Mona Lou, é incrível, a cabeça dele, as palavras o que elas querem dizer, está entendendo? É de alguém que claro, é brasileiro, mas também estrangeiro em olhar que não tem muita diferença, está ali, está aquela outra mulher, esse da Mona Lou foi um... não é que é um achado, porque oba, vendeu muito ou não vendeu mais, é uma figura com muito humor, é um humor assim de rir, mas também de ver a tragédia familiar, a tragédia da paixão. Então ele na nova figuração, ele sai, sai para aqueles beijos no taxi, aquelas coisas, isso mesmo. Ele não ia ficar fazendo os Desaparecidos, isso era um certo momento, os Desaparecidos, a Caixa de Morar. A Caixa de Morar já é uma outra... essa ideia de uma arquitetura e de uma... da coisa popular... está entendendo? Sempre dentro das faixas, acaba... no caso que eu assim... então a gente reparar exatamente na situação política, eu não posso dizer que é um privilégio a gente ter passado essa ditadura que foi um horror, porque sem ela poderia ter estado outro caminho, poderia não ter empatado os 20 anos que nós empatamos no boicote à bienal. O Gerchman, bem mais jovem do que eu, em 68 com um ato institucional, a gente se reuniu secretamente no MAM, com a permissão do Maurício Roberto, e vieram algumas pessoas de São Paulo, alguns artistas, e vieram esses, estava o Gerchman, Vergara, os atuais, os que participavam de bienais, eu também, e lá dentro... tomamos uma resolução que quando eu vejo de longe eu digo, foi o maior tiro no pé coletivo que nós demos, e ficamos mancando e assumindo por 20 anos, boicotamos, acabamos com a bienal de São Paulo e com todos os salões. Quando a gente repara, a própria noção de arte, que não tem mais salão... isso era discutido, o que é o salão, é o salão de primeiro, segundo e terceiro prêmio... tudo isso também estava sendo discutido, não era só a linguagem da arte, estava sendo discutido o sistema de arte. Esse é o momento que eu acho que todos nós, citados e não citados, estão muito atentos entre a representação de uma situação, pela necessidade de falar dela, e na oportunidade que a figuração entra nessa época. Para os abstratos que brigavam lá no MAM e tal, e também para os lá de fora, Rothko etc, isso nunca poderia passar na radicalização abstrata deles, que um dia iria acabar o abstracionismo. Porque o abstracionismo, o abstracionismo geométrico e o informal, como eles chegavam ao máximo do que é abstração, já é a forma inventada disso que se alimenta a arte, a questão estética muito rigorosa, mas lidando com espaço, com sublime, despenca para esse, despenca para alguns artistas daqui também, nem há dúvida... a minha professora, professora nos anos 50, a Fayga, era a que criou mais atritos nas discussões. Nessa época ela também já estava com atritos comigo no sentido de que eu tinha enveredado por algum troço que se chamou visceral, ora, ela não via que ela também passou de um figuração expressionista em que o Goeldi foi brigar com ela, porque ela estava passando para o abstracionismo. Então as coisas são assim, as pessoas não tem tolerância, as pessoas ficam radicais, e quando vai vendo o abstracionismo ser abandonado pelos próprios artistas, e a pessoa quer segurar, essas discussões apareciam no MAM em um confronto de fato. Exposição lá com Gerchman, com o Antônio Dias e o pessoal, e o ateliê de gravura trabalhando. Em 65 eu parei de trabalhar no próprio ateliê, porque o Iberê Carmago me deu uma prensa de ferro, daquelas de idade média que tortura, e eu fui trabalhar em casa, porque se tornou para mim insuportável o clima do ateliê, que para mim era um lugar onde os amigos se encontravam. Mas todo mundo era abstrato e essas coisas, o Mário Pedrosa circulava muito pelo MAM, que era o ambiente da gente também, criando atritos com o pessoal abstrato até através de jornais, uma coisa complicada... era sofrida a situação, muito sofrida, porque... tudo bem, para o pessoal da nova figuração, o próprio dono da galeria, ele começa a trazer também alguns franceses que estão lidando com isso, e é claro que isso ocupa o espaço, pode não ocupar o espaço de um mercado, que ainda estava muito ligado a arte abstrata, seja na pintura ou na gravura, na coisa gravada. Um outro detalhe: o Gerchman gostava também muito da coisa gráfica, era um pintor, mas com uma cabeça gráfica. A pintura dele tem o grafismo, quando ele marca aquelas figuras assim, é a pintura, mas ele está delineando coisas. Então essas coisas também me identificavam com o Gerchman, nesses trabalhos. Então, quando o Gerchman colocou lá aqueles trabalhos enormes de... eu não sei do que eram feitos, se de acrílico, eu acho que já vinha acrílico, será?
BERNARDO: A mesa eu acho que é acrílico.
ANNA: É, plástico, acrílico...
CLARA: ...acrílico em forma, fórmica...
ANNA: ...era fórmica, está vendo, ainda não tinha o acrílico...
CLARA: Nem acrílico e nem fórmica.
ANNA: Na época eu... aqui eu não me lembro, mas eu estou falando de Gerchman, e tem uma parte afetiva, eu não me lembro aqui, nesse ano que eu não sei qual é, mas eu posso calcular pelas idades, você vê que a Nina deveria estar com 5 anos, então o Gerchman sempre dizia, eu gosto muito dos seus filhos, ele dizia, eles eram muito bonitos, mas era um bonito engraçado, porque os meninos eram gêmeos, eram uma pimenta, e as meninas assim essa aqui, muito bonita, a Nina, e ele gostou e tal. Eu acho que ele tinha já o Micael, mas não que a gente se encontrasse... aí o Gerchman disse, eu queria muito... e falou mesmo isso, que conseguisse fazer essas fotos das crianças com as letras, tanto é que a gente tem, eu não tenho mais as outras fotos, a do Ar, aqui que está revelada ao contrário, tinha o Lute, tinha o SOS, que aí o fotógrafo colocou as crianças sentadas, e não sei mais o que, etc. etc. Enfim. Isso aqui foi montado, quer dizer, pelo Gerchman, pela exposição, não sei que tipo de exposição que ele colocou ao lado que tinha essa, isso era o máximo de uma... como é que eu poderia dizer, da maneira atual de se montar uma coisa, a fotografia colada sobre o eucatex, ninguém fazia isso, era uma moldura com uma fotografia, e tal, eucatex, enfim. E no caso, várias vezes encontrei o Gerchman, aí mais essas são... esses são momentos que eu me lembro onde a gente conversava muito, e quando tinha... eles faziam muitas reuniões de artistas, ia lá para casa de Laranjeiras, na esquina de uma rua lá. Eu ia muito para lá, para ficar com eles e, detalhe, quando tinha assim alguma exposição em galeria dessas assim badalada, seja lá na Petit Galerie, ou não sei mais o que, que vinha aquele monte de jovens, um bando de meninas todas atrás do Gerchman, e a Anna na exposição, como era muito amiga minha, chorando tadinha, dizendo assim, está vendo, olha lá, mas não era ele, era... davam em cima mesmo, uma até acho que errou o alvo foi ter filho com o Barrio, mas o que ela queria mesmo era o Gerchman, que era bonito também, assim não dá, aliás, eu jovem, tinha o outro lado, eu tinha os 4 filhos, e também vinha crítico para cima de... porque em Hollywood aquelas piadas que mostra a mulher na cama com o diretor, cama e mesa, era complicado mesmo, era complicado com os caras em cima dos jovens artistas, isso é uma coisa muito badalada, e a gente andava muito pelo MAM, andávamos muito... tinham as bienais, depois que acabou de se participar em bienal, a última em 67, isso foi difícil para todos os lados... O Gerchman ganhou o prêmio e foi para Nova Iorque, eu no caso fui fazer uma exposição lá, mas a perspectiva de morar lá não deu certo, eu voltei. O Gerchman ainda ficou mais, talvez alguns anos lá, eu imagino.
CLARA: Vocês se reencontraram no Parque Lage, foi quando o retorno esse reencontro.
ANNA: Quando é que foi esse ano no parque, eu não sei quando é que ele foi para o parque?
CLARA: 75 a 79.
ANNA: É, a gente se viu antes, o Gerchman também sabia de um curso, não é em um curso, uma mudança que nós fizemos muito radical, eu e Frederico Moraes no MAM. Eu entrei... eu usava o ateliê, mas isso é outra coisa, parei de usar o ateliê de gravura, e fiz o meu próprio ateliê. Mas eu volto ao MAM em 69 para dar um curso de iniciação ao desenho. Eu já dava o curso na minha casa, no meu ateliê, e a medida que o meu trabalho ia desenvolvendo. Depois das coisas viscerais começava a desenvolver uma negação de que eu tinha em relação a qualquer categoria de arte, o que é um fenômeno que pode aparecer originalmente em mim, mas se for pegar a época, e a época internacionalmente, e ao mesmo tempo que a nossa informação vai piorar muito nos anos de chumbo daqui, não se sabia o que se fazia fora... mas a ideia da viagem de Gerchman que foi, que continuou trabalhando lá, enfim, várias coisas que aconteceram em 70 no MAM também, eu... a mesma mudança que também deu no trabalho, que já nem era essa coisa visceral, ela era uma mudança em que a questão das categorias ficava muito crítica para mim, os materiais da arte, de uma maneira intuitiva, tem que se falar isso. Mas começa acontecer isso, se a gente for fazer uma comparação de uma maneira concomitante, por razões diversas, essa crítica ao suporte tradicional, e é interessante porque o Gerchman, quando ele faz o Ar e essas coisas, ele já está fazendo isso na intuição dele como artista. Não é na negação da pintura, mas sabendo que a arte pode ser feita por meios tanto de indústria nova de materiais, como materiais que o crítico de arte tradicional, moderno, nunca aceitaria como o material da arte, isso é que é. Isso vai acontecer de uma maneira mais filosófica, conceitual, de maneiras diversas em Nova Iorque. Os pontos, o que eram os centros da arte, o centro de pensamento... Começam radicalmente alguns artistas a trabalhar exatamente com uma arte que vai acabar aparecendo para críticos, como... tinha uma crítica de arte lá muito radical, daqui a pouco eu me lembro, que ela acaba escrevendo um livro em 72 talvez, em que ela diz que na está... o livro é incrivelmente verdadeiro em que ela diz que não está entendendo muito essas coisas que estão acontecendo, muitos dos trabalhos que estão acontecendo, mas que pode se tirar a ideia de que é um trabalho que vai para o... que busca a não valorização do objeto de arte, mas a indagação é muito mais sobre o significado e não sei o que lá, e que os trabalhos aparecem com uma qualificação desqualificada do efêmero, do desmaterializado, isso é uma coisa que acontece para nós não importada, quer dizer, importada não é, porque afinal de contas a gente é um braço da cultura ocidental, e em uma representação que continua tendo as suas transformações, que aliás, já é motivo agora das razões de outras lutas ideológicas, que misturam religião, onde o Ocidente, a cultura ocidental por ela ser... ela precisar da situação de democracia para poder se exercer. Então, para nós, mesmo a experiência de ter estado dentro de uma situação política por 20 anos, e exercer uma liberdade de ação no nosso trabalho, teve também a ver com a busca em certos momentos, de procurar a imagem em multimídia, em meios como o vídeo, para poder dizer certas outras coisas. Então o Gerchman pertence a esse momento também, é claro que eu não acompanhei a vida do Gerchman, e é claro que ele focou, teve um foco na pintura, que ele é excelente na pintura. Mas ele sabe que ele pode de repente fazer um passaporte com a fotografia, ou uma cara tirada das ideias do Duchamp, está entendendo? Sem pedir licença ao Duchamp, esse retorno das citações, do Duchamp, tudo isso é uma história muito longa, que eu... como eu te disse, eu fico aí nas mil e uma noites... essas coisas, não é que se permite, eu vou poder usar um vídeo para uma ideia que... por exemplo, 74 quando eu faço os primeiros vídeos, que eu acabo participando de uma exposição, uma mega exposição no Instituto de Filadélfia que se chamou Vídeo Arte, foi... nunca mais se fez uma exposição, eram todos que estavam começando em vídeo...
CLARA: Era super oito?
ANNA: Não, o meu era vídeo. Eu usei super oito quando eu estava lá em Nova Iorque nos outros filmes, e usei também uma coisa que se fazia que era audiovisual, que eram slides e aí com certas ideias. Então agora eu estou me lembrando, tenho quase certeza em uma exposição que teve em São Paulo em 73, eu acho que o Gerchman participou também com um filme dele, ou não sei o que, ou depois ele fez um filme, também mostrando como que a cabeça dele era outra, e ele pega... exatamente, é lindíssimo o filme, então há uma beleza das imagens, ele chama... eu não me lembro mais, se você me...
CLARA: Triunfo Hermértico...
ANNA: ...Triunfo Hermético... claro que ele está pegando ali um título da alquimia, e eu já estava, em 69 eu estava já, o meu trabalho já tinha... eu já tinha lido sobre isso sacando, que esses significados metafóricos estavam entrando no meu trabalho. Então é muitas histórias assim, que assemelham, mas o Gerchman era mais novo, então eu, falando sério, eu me espantava, como é que esse cara foi sacar isso, com Triunfo Hermético, eu fiquei puta, quer dizer, como é que esse menino, poxa eu é que eu estou pensando essas coisas. Mas, não, e depois ele tinha muitos meios de... eu peguei um vídeo, o vídeo era mais pobre, eu tive de optar pelo vídeo em 74, apesar do super oito ser muito mais bonito, a imagem direta e imediata com a maquininha, eu passei por um vídeo como se tivesse voltando para trás, abri mão do super oito, abri mão dos slides, porque o vídeo tinha isso que é o bom e o mal, tem um som, até agora se passar um avião aí estraga todas as filmagens, mas ele pegava na hora, isso conceitualmente para mim, me veio imediatamente alguns vídeos que eu queria fazer, que eu já estava fazendo eles fotograficamente, fotografias que eu chamei de passagens, enfim, uma coisa toda envolvida com meus pensamentos. Agora, mais ou menos assim, a bienal, os 20 anos que disse do tiro no pé: isso prejudicou de uma maneira visível enormemente a nossa atuação dentro do mundo internacional, está entendendo? Porque se a bienal era a única porta de escape, de saída, para mostrar o trabalho da gente, o descompasso que vai dar para quem não pode ir lá fora para mostrar o trabalho, não é o caso. Gerchman e a continuidade dele, o reforço do trabalho dele teve essa chance. O Antônio Dias acho que vai para Itália, em certo momento, primeiro para Itália...
BERNARDO: ...primeiro Paris, depois Itália.
ANNA: Então, eu encontrei ele em Paris, a gente esteve... em Paris foi no momento daquele pessoal na rua, das barricadas, é gozado parece que a gente está nos momentos, Deus me livre, a gente corria para dentro daquele fumacê... Eu estive em Paris por causa de uma... um convite que eu tive, sei lá o que, mas eu já estava levando por minha conta, não... houve coincidências, em 75 eu ganhei um prêmio que... primeiro em 68, só para ter aí encaixado, dentro daquelas exposições que o Jean Boghici fazia, naquele ano de 67, alguns dos artistas da galeria que fizeram a exposição, eu fiz também, foi o Mário Pedrosa que falou com Jean Boghici tinha isso dentro da própria... lá na bienal, em uma casa de alguém em São Paulo, o Mário Pedrosa disse assim, tem que fazer a exposição também da Anna Bella e não sei mais o que lá. Nesse ano, o Gerchman fez uma exposição, o Antônio Dias fez uma exposição, eu fiz a exposição, eu me lembro desses dados, e tinha uma... de tudo que a gente tirou, e que não participaria mais, ficaram algumas coisas tipo uma exposição que se chamava resumo, e ela era no MAM, e ela era ligada à pessoas particulares que abriam, viam qual era a exposição do ano, e davam prêmio, escolhiam 10 exposições do ano, entre Rio e São Paulo. Então, em 68, apareceu um resumo, esses milagres que aparecem de repente, apareceu um resumo que escolheu as 10 exposições, estava o Gerchman, Vergara, que não cito Vergara, mas também era uma pessoa muito atuante, o Vergara politicamente até mais, e o... e foi aí que eu ganhei esse prêmio, e aí fui com os meus trabalhos em baixo do braço direto, porque ninguém tinha galeria, e consegui fazer contatos. O Gerchman, como já estava viajando, o Antônio Dias, conseguiam outras maneiras, o Dias teve galeria na Itália, o próprio trabalho do Dias que se modificou também, todos eles, eram pessoas que fizeram um trabalho incrível, mexeram com as vísceras de tudo naquele momento, não era panfletário, mas não era também alguma coisa hermética, no sentido de não se entender que estávamos... e fora disso, eu quando em 68 ganhei esse prêmio, a gente tinha tido a reunião no MAM, que a gente tinha decidido boicotar, eu fui com uma série de papéis que a gente escreveu o que era as coisas que queríamos, mas eram papéis que a gente não distribuiu, era ao contrário, você não vai dizer no jornal que você boicota, porque o momento não dá mais para nada disso. Eu levei esses papéis, havia uma bienal de Veneza nesse ano de 68, eu fui encontrar essas pessoas, levei esses papéis para influir na abdicação de não participarem de bienal de São Paulo, e criamos com esses papéis, encontrei aquelas pessoas que são super conhecidas até agora, e tal, e todos assinaram lá um papel dizendo que não iriam, aconteceu realmente uma greve, quer dizer, os caras da França, da Holanda, a Holanda não mandou ninguém, a Suécia não mandou, havia... houve radicalizações, ligadas a quererem colaborar conosco, esvaziar a bienal, e esvaziamos assim, esvaziar... é claro que continuaram, mas quem entrava, quem participativa, ninguém está acusando, mas não era, essas que tomaram o compromisso. Nessa época eu já estava dando essas aulas no MAM também. Essas pessoas que estudaram comigo naquele momento estavam começando a ter um trabalho, em termos da coisa conceitual, dessas coisas todas que foram acontecendo, não tinha onde participar. Aí já é uma nova geração, 70 e tantos etc. Aparecem nomes como Fernando Cocchiarale, que depois de um certo momento, depois de estudar também filosofia resolve se tornar realmente um crítico e não mais um artista, Paulo Herkenhoff, algumas dessas pessoas. E no MAM, aquilo que eu falei do Gerchman no Parque Lage, o MAM de 70 a 73, por razões exatamente do meu próprio trabalho, da coisa experimental, eu entro em uma ideia de que cursos tem que ser feitos fora do MAM, em lugares desertos, começava a vir por um lado a paranoia de que a gente não podia fazer nada perto da cidade, porque os caras vigiavam o MAM, não é de maneira ostensiva, nem eu estava brincando com isso também. Quer dizer, eu começo a ir para lugares longínquos, em uma kombi de um artista, aí os alunos vinham se inscrever para ser artista, e desenhar e tudo, eu dizia assim, olha, não é nada disso, vocês vão entrar nessa kombi, ia parar lá na Lagoa de Marapendi. Bom, de 20 alunos eu fiquei com 3 me acompanhando, que deu um trabalho incrível para o resto da vida. Essa experimentação, desses cursos de 70 a 73, onde eu chamei de arte crítica e o Frederico chamou de unidade experimental, nós demos esses cursos experimentais, o que acabou dando confusões no próprio MAM em 73, porque começavam a visar, que estavam chamando atenção, não sei mais o que, mais do que isso, aí já são coisas particulares que não interessa contar. Eu falei com o Frederico assim, vamos nos demitir agora, está entendendo? Não é para fazer um estrago, porque o curso não edava dinheiro para o MAM, não entrava para gente, mas acabou ali em 73. Quando o Gerchman, em 75, entra lá para o... eu estava sempre em contato, mas não contato constante, o Gerchman disse Anna, porque ele sabia desse... Ele me disse que ia ensinar no parque, me chamou, mas não é bem... e aí eu me achava, fiquei puta de novo, eu disse “Gerchman eu fiz uma coisa experimental, eu estou com essa gente que não é um grupo, mas estão trabalhando dentro disso”, é claro que essas pessoas independente de serem do grupo do MAM, como era o Lauro, o Lauro também eles ficavam brincando, filhos do MAM, que eram os filhos da gente, o Gerchman começa com uma outra leitura, chama aqueles professores, alunos meus que eram de 72, migram para a escola, então eu continuei trabalhando, em 75 viajei de novo e conheci o Beuys... o Hélio Eichbauer, que era muito amigo também, até que um dia uma dessas alunas que era do MAM, e que ia dançar nua lá no meio do parque, que o Hélio mandava, porque tudo está misturado ali, ela me telefona, Anna Bella eles querem expulsar o Hélio, com isso Gerchman vai sair, não sei mais o que, e aí eu liguei, eu tinha linha direta sem ter nenhuma influência que eu imaginava, com o Secretário de Cultura, que eu não estou me lembrando agora, que é um cara muito bacana...
CLARA: ...Grisolli...
ANNA: O Grisolli... Nome de restaurante de macarrão, mas o Grisolli é uma pessoa muito interessante.
CLARA: O Hélio deu um depoimento muito lindo, falando que quando ele ficou nessa pindaíba de ser expulso da escola, você...
ANNA: ...ele fala? É mesmo? Eu sou meio suicida, porque... só que não tinha nada para suicidar, eu não tinha emprego, nem lá, nem acolá, nem nada, e aí telefonei para o Grisolli, falei mesmo assim, mas o Grisolli não é uma pessoa assim, mas ele imediatamente acabou, aquilo não virou nada, continuem aí dançando os bacanais, façam o que quiser, etc., isso para um momento político, mas não é, claro que os cursos, o Gerchman fez uma grande reunião para aquele perfil daquele momento, de se trabalhar a ideia de liberdade. Então é muito... se eu olhar agora o MAM com aqueles jardins, eu começava a fugir dali e dar aula longe, o Parque Lage, ninguém ia entrar lá para ver lá no meio da floresta o que a gente estava fazendo, eu acho muito interessante o Parque Lage, porque no ano passado tinha um aluno do aprofundamento, ele é do Nordeste, até um artista interessante, o Rodrigo, ele participou da bienal, no ano de trabalho conosco, uma das coisas que ele disse, pois é, eu venho lá de não sei o que, eles gostam de dar uma de Nordeste, mas não faz mal, eu vim lá do Ceará, não sei, mas eu chego aqui no parque, e aí eu comecei a entrar por ali, e é a floresta da Tijuca, então eu pego o ônibus, ele estava morando na zona Oeste para poder fazer o curso, eu venho de ônibus até o parque, aí eu entro, aí eu estou dentro de uma floresta, começo a virar, e começou a desenhar árvores gigantes, eu não sei, ele é um bom artista e continua, acho que voltou ao normal, mas eu acho que começou a desenhar, a pendurar coisas escritas das raízes, porque ficou... essa história, se contar para um cara, diz assim, pega um ônibus, lá do subúrbio da baixada, e entro e ali está uma floresta de verdade, é muito engraçado, é muito estranho, é mais estranha do que a Floresta Amazônica, para mim, dizer que mora no Pará e tem a floresta, grande coisa, a gente tem uma aqui. Mas o Gerchman soube expandir, com a cabeça dele, inteligência, e é iluminado, figura iluminada. Acho que eu acabei.
BERNARDO: Eu queria que você voltasse um pouquinho em Nova Iorque.
ANNA: Está bem, mas eu não sei... diz.
BERNARDO: Eu estava estudando esse Gerchman 60 a 70, Nova Iorque ainda é um buraco meio negro assim, até porque, não tinha muita gente lá, quando você vai perguntar sobre o MAM, sobre Parque Lage, está cheio de gente para falar as histórias, cada um lembra um pouco, em Nova Iorque tem pouca gente, como é que era a vida, a rotina do Gerchman em Nova Iorque?
ANNA: Não sei.
BERNARDO: Não sabe, não é?
ANNA: Não, não sei, não é que é desconhecida, eu quando fui lá na casa Gerchman, eu acho... quer dizer, lá tinha duas crianças pequenas, e bom, dele trabalhar lá no espaço não sei o que, dele mostrar os trabalhos em alguma galeria, eu não tenho essa história, eu tenho... claro, eu me lembro também alguma coisa da gente indo a essas inaugurações incríveis de ver, não de se deslumbrar para ver artista não, mas de encontrar um ou outro artista, e não me lembro se isso acontece no tempo que o Hélio Oiticica está lá, o Hélio está lá também nos anos... eles se encontram. Então, mas nisso eu é que voltei, então o Hélio já estava morando, fez aquela casa toda lá dentro com aquelas camas, beliche aquele negócio que ele chamava. Então, como eu tinha minha interlocução com o Gerchman era mais de uma coisa familiar mesmo, a gente se encontrou poucas vezes, a gente ia... era muito engraçado, quer dizer, não podia nem a Anna sair com ele por causa das crianças, um tinha que sair e no meu caso, ou eu ou o Pedro, eu me lembro que teve uma vez, isso não tem nada a ver com o que você perguntou, é curiosidade, a gente queria ver um filme do Ingmar Bergman, aí fui eu e o Gerchman, e na hora da saída do cinema, porque não tinha um tostão para ir de taxi para o troço, aí me deu uma daquelas crises de pânico, por nada, porque estava... saiu de um filme esquisito, e fiquei na porta com o Gerchman, ele morava para outro lado, porque eu não me lembro, eu me lembro onde eu morava...
CLARA: ...no Bowery.
ANNA: Então, era longe. Eu morava na rua 80 e tanto na West, então era para pegar metrô, me deu um medo de sair ali na rua, parecia... não sei porque, o filme não era de terror, mas alguma coisa me assustou... num outro dia, não tem nada a ver com a época do Gerchman, foi quando eu vi O Bebê de Rosemary. Mas o meu amigo, era um amigo, não é preconceito, mas ele era muito gay, e ele adorava filmes musicais, então ele disse, você tem que ver O Bebê de Rosemary. Eu fui sozinha na última sessão, eu tremia tanto no filme, foi quando a... não conseguia sair, quando eu saio, eu me lembro disso, passou um bêbado, um negro, não é porque era negro, eu me apoiei no cara, tipo assim, ei, assim tipo amigo, oi me diz como é que eu vou, porque estava desorientada, porque o filme tinha me abalado, mas nesse outro do Bergman... aí eu pedi para o Gerchman esperar, pedi ao Pedro para sair de lá, deixar as crianças dormindo, a gente morria de medo, morava no 17º andar, para vir me buscar, porque eu não tinha força para voltar para casa depois do filme do... e o Gerchman depois foi, eu só me lembro bobagens assim, mas são esquisitas. Mas o Gerchman deve ter tido um tempo bom de vendas, de trabalhos acredito, e ele era conhecido, claro, não tanto, mas era conhecido, eu não sei se ele trabalhou com galeria lá. Aqui já em 60 e... nessa mesma época, em 69, eu conheci aqui, vindo, visitando aqui o Rio de Janeiro, um cara, um colecionador de Nova Iorque, que exatamente foi parar em um lugar, quando nós estávamos nesses protestos a gente ia para a Praça General Osório, tudo era lá, levamos as bandeiras para lá, depois resolvemos, era todo mundo, se o Gerchman estava ali ou estava lá fora, eu não sei, mas resolvemos expor os nossos trabalhos, ao invés de galeria, eu me lembro que eu amarrei uma corda de uma árvore para outra, pendurei... o Vergara namorava a Leila Diniz, estava todo mundo contente, eu não estava nada contente, eu tenho fotos é muito engraçado, andei procurando. Aí acontece que veio esse cara, que agora está com 92 anos, continua sendo colecionador, ele ficou colecionador do Gerchman aqui no Rio...
CLARA: ...quem é?
ANNA: Ele se chama Harlan Blake, ontem eu estive com ele por acaso, não por acaso, é que ele vem na época do carnaval, ele é uma dessas pessoas que ficam apaixonadas, comprou um apartamento aqui no Rio, mas ele me contou uma coisa incrível, porque um dos quadros do Gerchman, há um ano atrás, o que o Jean Boghici procurou, ele, o quadro estava até no apartamento de Nova Iorque que ele tem, ele era um advogado muito famoso, eu não sabia, ele veio ali na praça, comprou as obras minhas, e aí o Jean veio procura-lo, disse que tinha um colecionador na Alemanha que queria comprar o quadro do Gerchman, ele vendeu, porque ele está se desafazendo, algumas coisas ele doa, outras coisas ele vende, porque está com muita idade e é solteirão e não sei mais o que. E então, e ele eu sei que ele levou outros colecionadores americanos para comprar trabalhos do Gerchman, agora, não sei como isso era 69 que é a época que quando eu voltei de lá, é depois disso que ele vai conhecer o Gerchman, não sei... de 70 em diante, eu não sei quando é o que o Gerchman volta para o Rio...
CLARA: ...72.
ANNA: Então, não sei como, ele também tem uma memória, ele me contou essa história ontem, do quadro do Gerchman, ele disse, “puxa, eu tive uma sorte, não é, porque eu ganhei um dinheiro, mas é porque eu gostava”, ele gostava muito do trabalho do Gerchman, comprou Antônio Dias também, comigo comprava aquelas coisas viscerais, e não sei mais o que. Então, Nova Iorque ainda não era uma abertura para os brasileiros, tanto que o Hélio não fez nada lá, não é que não fez nada, não fez nada que tivesse acontecido. Eu, em 75 quando eu volto lá com uma outra viagem que eu recebi, é que começo a falar do meu trabalho em galerias que lá estavam nessa experimentação também, mas aí eu não sei se o Gerchman volta para Nova Iorque ou se ficou sempre no Brasil, são coisas assim, sempre me lembro de... eu não sei quando é que ele deixa o Parque Lage...
CLARA: ...79.
ANNA: 79, muito tempo que ele ficou, é muito tempo, 79. Nem em 79 eu estava lá no parque, eu sempre me achava meio besta, achando que... eu já tinha feito essa experiência, então eu já estava com aqueles que tinham sido alunos, alguns, em uma outra experiência, que era tanto teórica como do meu trabalho, que vai caminhar através dessa turma mais jovem, mas ainda em uma distância que para mim ainda era... não era o aluno, não sei o que lá, onde vão aparecer esses pensantes, como Fernando e como Paulo, e que tomam rumos, definem de ser curadores, e outros que aí também acabam tendo uma história de alunos comigo, eu não me lembro nem quando é que eu vou para o parque, é 80 e tanto, quando não tinha nada disso, foi... o Gerchman não estava, não era nada disso. E fui assim, a gente de vez em quando, em uma história que leva tantos anos, a gente faz umas coisas assim feito uma mola, vai para trás e depois vai para frente. E aí eu do MAM, que não tinha condição de voltar para nada de lá, eu volto ao MAM em 75, não para dar curso, mas para influir na possibilidade de uma área para mostrar essa nova geração, eu quando digo eu, dá ideia, poxa Anna Bella tem um poder aí de decisão, mas é que o MAM, desde que eu tinha saído lá de 63, eu sai por solidariedade ao Frederico, mas não total, porque haviam outras histórias que eram muito chatas e que não tinham a ver comigo. Então quando eu vou lá para dar umas palestras de novo, 75, começo a ver esses artistas... Tunga era jovem, e outros assim, andando com os trabalhos, vídeo, que já estavam fazendo e não tinha onde mostrar, aí eu começo a influir, conversar com a diretoria, claro que eu... de constituir um espaço para mostrar toda essa situação experimental, conceitual e não sei mais o que, é claro que então, o que, vão dar o MAM para isso, imagina, não vão entregar. Então fazem uma área, aí sai aquela revista Malasartes, e em um dos números da Malasartes eles me pedem para escrever sobre essa área experimental, ao invés de eu elogiar, eu critico e digo, estão achando que o MAM pode emprestar uma área, e dizer, essa é a área experimental, brinquei aí e etc., quer dizer, eu faço um artigo um pouco mais sabe... agressivo, não, eu digo as razões... e vai, aí são as histórias dos anos 70, nas quais o... então, o Gerchman está sempre de alguma maneira acompanhando. Eu fiz uma exposição em uma galeria em São Paulo chamada Arte Arte, que era do Ralf Camargo, então o Ralf veio ao Rio, e fez a minha exposição, mas como eu era muito isolada, eu acho... no sentido... não é que eu era, ou eu ficava isolada, ou me isolava, porque aí é questão, é mulher, com filhos adolescentes, eu tinha muitas coisas aonde prestar atenção, foi um momento... muitas, então eu não tinha tempo para festa. Tem mais uma coisa, mas aí é um outro folclore. No dia 4 de abril de 1964, eu faço ano no dia 4 de abril, então... e me dava com Gerchman etc., o golpe foi no dia primeiro, então... mas naquele eu... então, eu tinha feito no ano anterior alguma reunião na minha casa, lá na Tamandaré, e telefonei para o Gerchman, como para outros para virem, eu disse que era para o meu aniversário, o Gerchman entendeu isso como código, falando sério, ele veio todo assim, veio, falando assim, “o que é, Anna? o que está acontecendo? Não, é aniversario?” Mas a gente já estava paranoica desde o início do golpe, essa foi boa, essa aí tem que ser incluída.
BERNARDO: Como é que era a personalidade do Gerchman?
ANNA: É meio irônico, bastante irônico, que é bem uma coisa... Não, mas era uma pessoa de conversa, de conversas assim, dentro do que é ser um artista, está entendendo? É uma pessoa muito envolvida, e também um pouco talvez exatamente com família também, com a Anna, depois com a sua mãe, envolvido familiarmente, você não vê isso no perfil de... apesar de que Vergara, eu não estou dizendo que... ou o Antônio Dias, mas não é. Havia esse lado familiar do Gerchman, mais do que isso, quer dizer, era isso mesmo, às vezes, com Mário Pedrosa e o Gerchman, a gente conversava, porque no MAM, tinha lá no jardim do MAM, as pessoas vinham para tomar alguma coisa no fim da tarde, e eu ia ali para o MAM, 70, 70 e tantos com esses meus cursos, e ali era um lugar de se reunir os artistas, quer dizer, isso acabou também provavelmente por causa do clima político, reuniões eram visadas, não podia haver, quer dizer, isso do Gerchman perceber no dia 4 de abril, é ele, é bem ele, antena dele, dá para gente rir, exatamente, mas era um pouco isso das coisas irem... artes visuais, os artistas da área visual, que faziam, fizeram o seu trabalho muito bem dentro do que era possível, e do que puderam fazer para significar uma arte envolvida na política, enquanto o momento político não é o político profissional, que continua fazer bandeirinha etc., tanto é que eu falei isso do Gerchman, ele quando vai para Lindonéia ele saca isso, todos eles saem dessas situação, eu também. Mas o envolvimento político dessas pessoas com boicote da bienal, aquilo pesou muito, contra a gente, mas aí eu volto a dar no caso Gerchman, mais jovem e com... pois é, o Gerchman era o único que tinha filhos na época, o Antônio Dias vai ter muito mais tarde a menina com a Iole. Então ele ia com a família para Nova Iorque, está entendendo como é que é? O significado era muito desses tipos.
Eu convivia com essas pessoas, mas não muito, porque eu ia a essas festas, tinha épocas de festas que juntava aquela gente toda, Chico Buarque, toda essa gente, e tinha umas meninas, tinha uma lá que eu não sei se o marido tinha um estúdio, tinha muito dinheiro, ela abriu em Botafogo uma casa, mas aí é todo mundo ali, eu também fui para ver o que era, aí deu uma de moralista minha, porque eu vi que ali era para as pessoas reunirem, o Chico, o Gerchman não estava, eu não me lembro, eu me lembro do Chico que parecia um lugar de... com quartos lá, e não sei mais o que, deixa eu ir embora. Tudo eu tinha de ir embora antes da coisa ficar complicada demais, tudo, passeata quando eu acompanhei esse menino que morreu lá no restaurante do Calabouço, não me lembro se foi isso, eu ia, partia de lá, eu vinha, aí vinha aquela multidão não sei o que lá, aí quando eu passei aqui pela Almirante Tamandaré onde o... me veio um pouco de juízo e disse, vai para casa, não vai até o cemitério, porque eu tenho 4 filhos. A outra vez o Mário Pedrosa, quer dizer, porque a gente, claro que aliciava um ao outro, Mário Pedrosa naquilo da igreja lá da Presidente Vargas, da catedral. Porque ali, claro, cada vez mais ia se provocando uma coisa também de rua, diferente dessas de agora, tem outros... tinha um ideal, tinha... a gente se avisava, olha, vai para lá, para catedral, mas eu fui, quando eu vi os caras chegando de cavalo, eu vim para casinha, completamente, eu disse, eu não fico aqui, sabe. Então tem essas coisas minhas, e aí não tem nada de especial, mas é que nesse sentido. Então eu falei um pouco do Gerchman, e eu gostei de falar, porque o Gerchman, como eu disse a ela, quando dá para eu falar da nova figuração, o Gerchman é um artista iluminado, iluminado não é estar bem, teve sorte, nasceu com a bunda virada para lua, que se diz, mais ou menos, é assim a tenacidade de compreender. Ele compreendeu aquele momento, outros também, eu também compreendi.
BERNARDO: O projeto está buscando essa memória de entender o que foi esses primeiros momentos do Parque Lage, a importância disso. Mas para chegar nesse lugar do Parque Lage, por se tratar de uma experiência muito física, corporal, de uma arte que tem uma rebarba dos anos 70 conceitual, um pouco ficou de obra, de trabalhos físicos, materiais mesmo daquele período, então a gente está tentando rastrear o contexto da arte, contemporânea aí da cultura, dessa arte aí inserida no Brasil, nos anos 60 e 70. Para isso então eu queria primeiro conversar com você, também um pouco para entender, para ajudar a esclarecer se o Gerchman, e essa geração dele e enfim, essa trajetória que eles tiveram nos anos 60 e 70. Assim, eu queria a gente começar conversando contigo, primeiro porque você tem aquele texto do Lindonéia, que você fala muito dessa relação...
PAULO SÉRGIO: ...do livro dos anos 60...
BERNARDO: ...do livro dos anos 60, exatamente. Você fala muito sobre essa questão de Lindonéia, e na Lindonéia sintomática assim, é bem clara as diferenças que existem da proposta da Nova Figuração, para o que era a Pop Arte...
PAULO SÉRGIO: ...exatamente.
BERNARDO: Eu queria que você pudesse descrever por gentileza.
PAULO SÉRGIO: Essa questão da diferença entre os artistas brasileiros que na nova figuração, conseguiram produzir uma obra mais rica, se dá exatamente por se diferenciarem muito da questão da Pop Arte, são poucos os brasileiros entre eles estão Antônio Dias e o Rubens Gerchman que se diferenciam, porque muitos ingenuamente aderiram aos mecanismos da Pop, os mecanismos da Pop pressupõe 3 coisas em andamento, do ponto de vista do pensamento, a razão cínica estava em andamento nos Estados Unidos, ou seja, há um predomínio da razão cínica, e quem alimenta a Pop é a razão cínica, o ato de se incorporar a Jaqueline Kennedy de luto, ao lado de uma lata de sopa, dentro de uma obra de arte, pressupõe uma razão cínica. Em segundo lugar, tem um outro elemento que só... a razão cínica só pode estar em andamento naquela época, hoje não, hoje ela graça todo mundo, mas naquela época nos anos 60, em uma sociedade de consumo avançada, como a americana. Então eles tinham tanto o chão, da sociedade consumo avançada, como é assim motivo de negar essa sociedade de consumo avançada através do cinismo, coisa que aqui no Brasil não tinha essa chão de sociedade de consumo avançada, e não tinha então em andamento uma razão cínica naquele momento, pelo contrário, nós estávamos as vésperas do golpe de estado, e depois do golpe de estado em primeiro de abril de 64. Então, naquele momento no Brasil, o contexto era muito diferente do contexto americano. Segundo lugar, os americanos da Pop, com aquela figuração muito forte, emblemática da sociedade de consumo, de incorporar, seja as páginas de jornal, de literalmente tal qual, as histórias de quadrinhos, literalmente tal qual estão na página da história em quadrinho, ou as mercadorias do supermercado, tal qual estão nas prateleiras de supermercado, estavam se batente contra um passado que uma pintura muito poderosa, que era o expressionismo abstrato, que tinha dado estrelas, nomes que pertente à história da arte do século XX, como Jackson Pollock, como Willem de Kooning, como Franz Kline, como Barnett Newman... Então existia um passado muito recente à Pop, e muito próximo à Pop, que era de uma pintura abstrata muito poderosa, muito forte que tinha transformado mesmo a linguagem da arte abstrata no mundo, que era o expressionismo abstrato americano. Os verdadeiros antropófagos das américas, que realmente deglutiram o que havia de melhor na pintura europeia, e devolveram de uma forma nova, absolutamente original que foram os grandes artistas do expressionismo abstrato. E abstração tinha se disseminado nos Estados Unidos, também entre muitos artistas menores, com isso quando se coloca uma lata de cerveja, uma lata de sopa, a bandeira americana, ou Jacqueline Kennedy, ou Marilyn Monroe, no museu ou na galeria de arte, você inverte o sinal, porque quem tinha figurado era a mancha abstrata, a nova figura da arte americana era a mancha abstrata, ou seja, que tinha firmado uma... criado uma gestalt da arte americana, que era nova figura da arte americana, se você inverte o sinal, coloca literalmente a figura de uma lata de sopa, você se abstrai do meio, você cria uma abstração em relação ao meio na medida em que introduz a figura. Então a figura era um sinal de abstração em relação ao meio que era dominado pela arte abstrata, e essa era a operação Pop, junto com a razão cínica, e o chão social econômico de uma sociedade de consumo avançada. Esses ingredientes não haviam no Brasil. Nos Estados Unidos haviam esses ingredientes, e no Brasil não haviam esses ingredientes, esses elementos não estavam em ação no Brasil, uma arte poderosa, abstrata forte, muito forte, foi com Jackson Pollock com Barnett Newman repetindo, e junto com isso também não tínhamos uma sociedade de consumo avançada, nos anos 60, no senso de 60, o Brasil ainda é mais de 50%, cerca de 52% de habitantes na zona rural, só 48% na zona urbana, para vocês terem ideia hoje, são 86% na área urbana, e 14% na área rural, no Brasil de hoje, então você ter um país que ainda era com a população predominantemente agrária, com uma industrialização que se iniciava apenas, em termos mais avançados... Você não tem esse chão sócio econômico da sociedade consumo avançada, então é o segundo ingrediente que falta. Então quando o artista brasileiro adere à Pop, e pega os mecanismos Pop e importa, funciona mal, fica uma arte meio esterilizada, porque não encontra nem a solidez socioeconômica sobre o qual se apoia a crítica do consumo, e ao mesmo tempo não encontra também o passado abstrato de arte abstrata muito forte, com qual se baseia aquela nova figura da sociedade de consumo, esses ingredientes não estão presentes no Brasil, os artistas que imitaram, ou reproduziram os procedimentos Pop, não conseguiram responder aquele momento brasileiro. Agora, o Rubens Gerchman não imitou os procedimentos Pop, ele incorporou os elementos da figura do cotidiano popular, mas com traços muito próprios, não é um ready made, não se trata de um ready made, ou a subversão do ready made como uma lata de Sopa Campbell, uma pintura, ou as caixas de sabão brilho amontoadas em uma galeria, não é um ready made, nenhum quadro do Rubens Gerchman. Ele pega elementos muito populares no momento, se seria Pop, seria por ser popular mesmo, os concursos de misses, jogo de futebol, ou no caso aí a Lindonéia, que seria uma notícia de jornal, mas ela não está reproduzindo uma página de jornal de jeito nenhum, e ele ao mesmo tempo ele dá uma linguagem muito pessoal aquelas figuras. Mesmo quando há multidão, os desaparecidos, ou mesmo não há vagas, são quadros que na minha memória dessa época do Rubens Gerchman nenhum se encontra em procedimento Pop, de reproduzir literalmente a página de jornal com o time de futebol. Se fosse um artista americano, ou um artista ingênuo brasileiro que quisesse gritar à Pop, reproduzia literalmente a página do jornal com o time não formado, o Andy Warhol usou muitos desses procedimentos no início da carreira, de pegar a página de jornal e reproduzir literalmente. Então isso dá uma diferença, e por isso mesmo a arte desse período do Rubens Gerchman se diferencia dos procedimentos Pop, como por exemplo, a arte de Antônio Dias desse período também se diferencia dos procedimentos Pop. Agora, tem artistas que colocaram em ação os mecanismos da Pop no Brasil, e esses que colocaram em ação os mecanismos da Pop pouco se fala deles desse período deles, exatamente por isso, isso é um dado. Em segundo lugar, quando o Rubens vai para os Estados Unidos, começa a trabalhar com a palavra também, ele também tenta dar um vigor, e isso tinha a ver com a questão arte conceitual na época, porque a linguagem tinha sido o tema principal dos artistas conceituais, mas no caso do Rubens Gerchman se diferencia também dos artistas conceituais que estavam trabalhando com a palavra e com a linguagem. Porque nesse momento os artistas conceituais americanos, estão fazendo um movimento primeiro, de reflexão muito radical sobre as condições de existência da arte naquela época. Em segundo lugar, tem um momento também de negação muito radical da arte enquanto mercadoria, para um momento a que... teorias, de arte conceituais, não eram passiveis de serem vendidas no mercado, e as exposições eram literalmente teoria. As exposições do Art Language de inglês, eles muitas vezes fizeram exposições que eram arquivos com fichas das discussões teóricas deles, sobre as condições linguísticas de existência da arte. Estavam muito alimentados pelo neo-positivismo, pelo positivismo lógico, por paradoxal que seja para um pensamento de hoje. Então essa situação do uso da palavra nesse contexto conceitual norte-americano, europeu, principalmente inglês, é uma negação muito radical da arte enquanto mercadoria, porque eles não produziam literalmente objetos vendáveis naquele momento, hoje não, hoje vende... são cotados e até panfleto daquela época é cotado em leilão, hoje tudo é... mercantilizou-se tudo que é possível na arte, na arte e no mundo, tudo é uma mercadoria, como é que chama o cara que faz a publicidade do candidato à política, que tem o nome no Brasil para isso...
BERNARDO: ...marqueteiro.
PAULO SÉRGIO: O marqueteiro, então o marqueteiro vende política, e tudo é tratado como mercadoria, mas naquela época a razão cínica não tinha se disseminado de tal maneira, e estava restrita a certos ambientes, e a certos mecanismos da sociedade consumo avançada. Então esse pessoal do Art Language, e outros da arte conceitual, muitos outros, que é por isso que dá razão a escreverem um livro sobre a desmaterialização do objeto de arte, ou seja, o objeto de arte literalmente se desmaterializa para se transformar em teorias, em conceitos e ideias, mas aí é um desmaterialização literal do... é um... simultaneamente é uma negação da arte enquanto mercadoria, porque aquelas ideias não eram passiveis de ir a leilão, de ir ao mercado, sendo pendurado em uma parede de galeria. Esse contexto é um contexto muito peculiar, da segunda metade dos anos 60, e início dos anos 70, esse contexto político ideológico no mundo desaparece muito rapidamente, então é os hippies vão dar lugar ao yuppies, e aí há um famoso retorno à pintura, arte enquanto mercadoria, o famoso retorno à pintura corresponde também a substituição do paradigma do jovem ocidental deixar de ser o hippie, para o paradigma ser o yuppie. Então, nesse momento eu acho que o trabalho de palavra do Rubens Gerchman se diferencia do trabalho puramente conceitual, porque ele insiste em uma pós-contundência plástica da palavra, a palavra adquiri uma dimensão escultórica, e tem contundência plástica, ou seja, ele não faz uma negação da existência material da obra. A mesma coisa em paralelo e um pouco diferenciado, bastante diferenciado, existe o uso da palavra pelo Antônio Dias, no momento em que o Antônio Dias abandona aquela questão da nova figuração, aqueles quadros são dispositivos muito tensionados de questões psicanalíticas, com questões políticas, com questões em uma espécie de circulação da libido do interior do quadro, chegando até o elemento político da guerra fria da época, o cogumelo atômico, que era o terror da época, ou seja, uma guerra nuclear. O Antônio faz na passagem da palavra, ele mantem a palavra em ação no interior de uma tela esticada, onde ela é incorporada como título do quadro, mas é incorporada como elemento plástico da obra. O uso da palavra do Rubens Gerchman vai ser uma questão mais escultórica, como que está recentemente exposta aqui no Man, o Lute por exemplo. E o Lute tem um conteúdo político imediato. Então eu acho que não se trata de nenhuma reflexão sobre filosofia da linguagem aquilo ali, aquilo ali era uma palavra de ordem, expressa plasticamente, uma palavra de ordem política, então há essas diferenças que tem que ser notadas em relação à dinâmica da arte americana, e a dinâmica da arte brasileira daquela época, eu acho que os artistas brasileiros dos anos 70 em diante, souberam resolver muito bem uma arte reflexiva, isto é, conceitual, uma arte que solicita o pensamento simultaneamente com contundência plástica, sem se abster de se manifestar plasticamente, como Cildo Meireles, o Waltércio Caldas, como o Tunga, como esses artistas que vieram posterior a geração do Antônio e do Gerchman, por exemplo.
BERNARDO: Você acha que... pegando esse final, o Gerchman mantem esse apego a matéria, ou seja, ele não abre mão do objeto plástico, da palavra, por essa relação que é o mesmo procedimento que ele tinha na nova figuração, ou seja, não bastava reproduzir o jornal, era necessário buscar o porta retrato do camelô, era necessário buscar algo que é mais físico também do que a Pop Art, assim me parece. Tem uma relação com o cotidiano, os objetos da pintura, do Antônio, do Gerchman por exemplo. Eles tem uma relação com a vida, com o material que está na vida, um pouco mais explícito do que por exemplo, na Pop Art, que está um pouco mais frio, o trabalho do Warhol que muitas vezes é um silk screen por exemplo. Ou seja, existe um trabalho de manipulação de materiais um pouco mais trabalhado, feito com mais esmero?
PAULO SÉRGIO: ...veja bem, eu acho que é o seguinte: nos anos 60 a parte material mais física, por exemplo, que aparece no trabalho de Antônio Dias, é a ambivalência da obra, ela não ser nem pintura nem escultura, ela é os dois ao mesmo tempo, na medida que ela se projeta no espaço, tem volume, cria espaço. As mesmas coisas... quando faz um ônibus, o Gerchman não faz uma miniatura de um ônibus, ele não mimetiza o ônibus real, ele inventa um ônibus que não existe na realidade, tal qual as histórias de quadrinhos do Antônio Dias não existem em uma página feitas de... do Roy Lichenstein poderiam existir em uma página de regista perfeitamente, as do Roy Lichenstein, aliás, do Antônio Dias não existem em uma página de revista, e no ônibus do Rubens Gerchman nem o edifício de apartamentos, do Rubens Gerchman que é, não sei o que lá de morar, eu me esqueci o nome, Caixa de Morar...
CLARA: ...Caixa de Morar, Elevador social.
PAULO SÉRGIO: Eles não imitam os edifícios, ele não faz uma miniatura da arquitetura real, como o Pop faz. O Pop tem uma mentalidade já no âmbito não mais digamos assim, de teoria do conhecimento da arte, como faz o Duchamp quando operava o ready made na segunda década do século XX, até 1920. Os ready mades do Duchamp, operavam em um sistema de pensamento de refletir sobre as condições de existência da arte no Ocidente, o que é arte, a pergunta é, o que é arte? Isso é arte? E isso era a questão. Na Pop, o ready made já está incorporado na razão cínica, ninguém está perguntando, aceito que é arte, a lata de sopa Campbell. O sabão brilho é literalmente a caixa do sabão brilho, que está lá na galeria, isso é estar chamando de frieza, são materiais que estão no dia a dia da vida do americano, absolutamente não é estranho o americano em uma lata de sopa campbell, nem o rosto da Marilyn, são materiais do dia a dia da vida também, por mais que o tratamento com silk screen, em certas obras apareça como uma gráfica fria para você, para o americano não aparece, porque é incorporado no dia a dia deles, aqueles recursos tecnológicos, entendeu? Claro, aqui também se fez silk screen naquela época, até o Scliar animou um grupo de artistas, que fizeram uns envelopes com... e a gente podia comprar, porque eram gravuras de baixo custo, feito em silk screen. Mas não tinha a escala, a escala de um silk screen da fábrica do Andy Warhol, como eles chamava o estúdio dele, onde o silk screen era literalmente uma operação ali, para negar o sujeito artista, porque o que o Andy Warhol está dizendo ali é, vocês não fizeram antes de mim, mas qualquer um pode fazer isso, porque é feito realmente em um procedimento industrial, qualquer um poderia ter pego o rosto da Marilyn, ou a lata de sopa, e fazer um silk screen dela, não fizeram porque não quiseram, porque aqui na há nenhuma artesania de Rembrandt, nenhuma artesania de um Velazquez, há uma inteligência. Então isso são coisas que parecem frias para a gente, mas na sociedade americana era do dia a dia, a lata de sopa fazia parte do dia a dia deles também, tal qual elementos do cotidiano que você vê em materiais que estavam na nova figuração. Mas na nova figuração eu acho que os materiais eram muito estranhos, o ônibus do Gerchman é muito estranho, o ônibus do Gerchman não se parecia com ônibus coisa nenhuma, era um grande brinquedo para gente grande, inventado pelo Rubens Gerchman, porque não tinha... não mimetizava a forma do ônibus, não tinha mimes direta de uma representação de um ônibus direto como um ready made seria. Nem tão pouco as línguas de sangue que rebordavam por fora dos quadros do Antônio Dias, não existia aquilo no cotidiano daquela maneira, uma coisa que poderia se aproximar em um detalhe de um cotidiano desse, e é uma exceção na série de bólides, é uma homenagem ao Cara de Cavalo do Hélio Oiticisica que tem realmente, literalmente a foto do Cara de Cavalo morto, retirada de um jornal no interior do bólide, mas já está desconfigurada uma situação de ready made. Porque toda a caixa do bólide já desmente a situação de reproduzir a página de jornal em uma superfície plana, em uma tela na parede, na medida que está no interior do bólide. Agora, tem artistas que eu não vou mencionar o nome, que tentaram desenvolver o procedimento Pop no Brasil, e que hoje em dia não tem a potência das obras que se diferenciaram da Pop.
BERNARDO: Aproveitando que você falou no Hélio, interessante que nos Estados Unidos eles tinham uma coisa de confrontar uma pintura anterior à eles, ou seja...
PAULO SÉRGIO: ...tinha, claro...
BERNARDO: ...no Brasil não me parece que aconteceu isso, me parece que foi ao contrário, de uma vontade de entender e mesmo de conciliar as experiências anteriores, o Neo Concretismo, se a gente pegar uma referência bem anterior mesmo...
PAULO SÉRGIO: Porque a história é muito diferente não é, você tem que...
BERNARDO: Não, mas eu pergunto porque assim...
PAULO SÉRGIO: ...não, veja bem, até... você está com uma exposição de Kandinsky agora aqui na cidade do Rio de Janeiro. Kandinsky começa a fazer pintura abstrata em 1912, 1913, isso é uma história, e a história da arte se desenvolve a partir da segunda década na Europa, com o construtivismo russo, com Malevich, e depois com outros grandes artistas, são capazes de desenvolver uma arte abstrata muito poderosa, para chegar até o Mondrian, o neoplatiscismo do final dos anos 20, dos anos 30. No Brasil, até 1949, 50, 51 e 52, os dois maiores artistas representantes da arte moderna no Brasil, que eram Portinari e Di Cavalcanti, ainda condenavam publicamente a arte abstrata, entendeu? Algumas experiências abstratas fez o Cícero Dias nos anos 40, mas essas experiências um pouco isoladas, que não vingaram no Brasil imediatamente, foram experiências de um artista brasileiro que morava muitos anos na França, e ao mesmo tempo estava realizando isso na segunda metade dos anos 40. Há uma defasagem, a sincronização que há hoje no mundo, não existia naquela época, hoje há sincronização muito grande. Eu acho que o repertório plástico da arte concreta, e da arte neoconcreta, ou seja, o abstracionismo geométrico rigoroso, da arte concreta, e da arte neoconcreta, vieram criar no Brasil pela primeira vez, um território moderno, continuo e consistente, onde independente dos artistas conversarem entre sim, porque os artistas conversaram desde sempre, as obras conversam entre sim, as obras em um exposição conversam entre si, agora, eu coloco um Guignard ao lado de um Pancetti, um Goeldi. São 3 grandes artistas, mas as obras não conversam entre si. São 3 grandes artistas, bom, põe lá, Ismael Nery, Pancetti, Guignard, Goeldi, são artistas fenomenais. Coloca os Di dos anos 20, são obras de arte fenomenais, mas as obras não conversam entre si, são... é um arquipélago. Até os anos 50, até o surgimento da arte construtiva, como chamam hoje, esse abstracionismo geométrico rigoroso dos artistas concretos, neoconcretos, a arte brasileira do século XIX moderna. Castagneto já é um artista absolutamente moderno, passando por Visconti, por todos eles até chegar os anos 50, você tem um arquipélago. Você não tem um território contínuo. A grande virtude do concretismo, e do neoconcretismo, foi criar um chão contínuo de diálogo e conversa, por isso esses artistas que vieram depois tinham uma relação muito importante com eles, há muitas razões, essa é uma apenas das razões. A outra razão é que nunca o concretismo, neoconcretismo, se impôs como uma arte brasileira por excelência, pelo mercado, e pelo sistema, pela ideologia do sistema, ou seja, não se vendia a arte concreta, e a arte neoconcreta, como se vendia a Polock, ou como se vendia Franz Kline, entendeu? Nem estavam nas paredes dos museus, entendeu? Esses concretos, aliás, até hoje na estão, raramente você pode ver uma sala no Rio de Janeiro onde é que você vai ver uma bela sala de artistas concretos, e neoconcretos, bela sala digo assim, com 20 obras cada uma, e em exposição permanente, não tem, o problema é essa, então, primeiro, eles não estavam lidando contra uma arte triunfante, eles reconheciam o poder daquela linguagem, os artistas brasileiros da nova figuração, reconhecia o poder da linguagem que lhes antecedia, mas não estavam lidando com os pais que passavam com a roda do carro em cima do pé deles, não havia uma relação edipiana, entre concretos e neoconcretos e a nova figuração, enquanto com a Pop havia. A primeira bandeira americana do Jasper Johns foi exposta em público, decorando uma vitrine de uma loja de departamentos que não existe mais, que era chiquérrima. E ele, o Jasper Johns], era vitrinista, e a forma de expor as primeiras obras dele era colocando na vitrine literalmente, da loja de departamentos. Hoje essa bandeira é um ícone da história da arte, mas naquela época foi decoração de vitrine de uma loja de departamento, 56, por coincidência o ano da morte de Jackson Pollock.
BERNARDO: Para falar um pouco na figura do Oiticica, que eu acho que o Oiticica é um cara que atravessa...
PAULO SÉRGIO: ...ele é mais velho porque ele é de 38...
BERNARDO: ...mas ele atravessa todo os anos 60, e vai acompanhar até os anos 70 esse pessoal, já se aproximando da contracultura...
PAULO SÉRGIO: Mas o Hélio Oiticica é um capítulo a parte, o Hélio Oiticica é um fenômeno a parte, que é um fenômeno para história da arte estudar, ou seja, porque ele muito jovem participou do Grupo Frente, com 16 anos de idade, você imagina, em 1954 ele participando com os melhores artistas que havia no Rio de Janeiro no Grupo Frente, Franz Weissmann, com Amilcar, com as duas Lygias, a Lygia Pape e Lygia Clark, um garoto de 16 anos de idade. Depois de ele fazer uma experiência neoconcreta muito original, na questão da saturação da cor e também na pesquisa espacial, porque aquelas... ele cria aqueles ambientes que são simultaneamente ambientes e pinturas, ele passa à experiências muito radicais, em uma releitura do construtivismo muito radical, que são os parangolés. As pessoas tendem a ver aquilo como uma brincadeira de passista de escola de samba, mas não é somente isso, aquilo são pinturas moles, a obra mole a Lygia Clark já tinha feito. Ele faz pinturas moles, ele pega uma pintura construtivista, e amolece ela. Muitas vezes, incorpora o título na obra, porque o título do parangolé está incorporado na própria obra, incorporamos a revolta. Então eu acho que depois ele tem a experiência dos bólides, que são objetos que ainda precisam, a teoria da arte, a história da arte brasileira precisa se deter para entender. Então é um fenômeno muito complexo o Hélio Oiticica, e ele realmente manteve uma relação, não por igual com todo mundo não, mas com artistas como Rubens Gerchman, como Antônio Dias ele manteve a relação, mas nada de paternal, absolutamente fraternal, absolutamente de igual para igual o tempo inteiro. Apesar de ele ter mais experiência porque era mais velho.
CLARA: Inclusive eles fizeram até um parangolé juntos.
PAULO SÉRGIO: O Rubens Gerchman e o Hélio... na época.
BERNARDO: Isso já vinha no Brasil essa ideia dessa mescla de arte e vida, antes já está no Oiticica, nos anos 60 e pouco, mas o Gerchman vai ganhar muito... isso vai ganhar muita força com o Gerchman em Nova Iorque.
PAULO SÉRGIO: Mas a arte e vida, fica uma espécie de rotulo genérico que incorpora tanto coisas poderosas como coisas muito débeis, coisas muito fracas, então esse arte e vida pode cobrir coisas muito boas, trabalhos muito importantes, e trabalhos muito ruins, porque esse tema, vinga até hoje, até hoje se estende esse tema. Então o que interessa aqui, é a gente se deter nas obras, que as obras são as materializações desses temas, quando estou falando da caixa de morar, quando eu estou falando do ônibus, quando eu estou falando dos desaparecidos, ou de não há vagas, que são temas do Gerchman, e de todos que eu estou citando aqui agora, de pinturas, ou de esculturas, objetos ou como quiserem chamar a coisa. Esses temas estão ligados ao tema da arte e vida já, é evidente, não há vagas é um tema do desemprego da época, os desaparecidos é um tema político da época.
BERNARDO: E a obra está na própria vida dele, e é o que é muito o que você estava falando da desmaterialização dos anos 70.
PAULO SÉRGIO: Existe isso, veja bem, mas existe também por parte de certos artistas muito poderosos nessa época em termos da arte e vida, muita demagogia, demagogia literalmente de político brasileiro de hoje, por exemplo, quando o Joseph Boeuys diz “todo homem é um artista” é claro que é uma mentira, mas é um gesto demagógico, bonito, de colocar arte na vida todo mundo que quiser pode ser artista, não pode, não é verdade, não é... se quiser ser artista e não tiver talento, e não tiver virtude para aquele ofício, e não tiver talento, não vai fazer arte nenhuma. Agora, uma pessoa dar cambalhota na praia e achar que está fazendo uma relação entre arte e vida, e isso se transformar em uma performance, estou falando até de um artista que eu admiro muito essa artista, o trabalho dela, mas ela tem uma performance que é dando cambalhota na praia, e está ligado a essa questão da arte e vida, as crianças vão á praia e dão cambalhotas, mas isso eu acho que não transforma aquela cambalhota em obra de arte, por ser feita por um artista. O que me interessa no trabalho dela é quando ela se materializa como obra de arte. Agora, essa história da performance é outra, entendeu? A performance para estar ligada a questão da arte, é muito difícil de ser executada, quando certas obras de performance, arremedam a dança, ela não é nem uma performance de artes visuais, nem é uma dança profissional, uma dança executada por um dançarino profissional, ela não é nada, entendeu? Então a questão da performance é uma questão muito importante na arte contemporânea, e está ligada muito a questão da arte e vida, muitas vezes, em muitas performances, ela está dependendo de se articular muito delicada e sofisticadamente com a questão da arte, e não com a questão da dança e nem do teatro, que são outros gêneros de arte. Então a performance exige e solicita, e sua disseminação muito grande está a partir da questão da arte e vida, onde isso pode ter tido início, início dos anos 50 com John Cage, os primeiros happenings que entrava-se em uma festa e acontecia o happening sem que ninguém esperasse, mesclando com a vida, você não sabia mais o que era festa, e o que era happening. Então isso é uma coisa que se arrastou nos anos 50 até hoje, isso exemplifica. Mas nos anos 70 se você for olhar, essa questão da arte e vida, ela é paralela a outras questões que são muito importantes, como essa questão do desenvolvimento de uma arte reflexiva, que é uma herança da arte conceitual, ou seja, os artistas passam a solicitar que haja um olho na obra, e outro no pensamento, ou seja, pedem um certo estrabismo, olha o que eu estou mostrando, mas ao mesmo tempo pensa no que eu estou mostrando, existem obras hoje que se entregam absolutamente de uma forma gratuita sem exigência de reflexão nenhuma, entendeu? Você não precisa de refletir muito para pensar o neopop de Jeff Koons. Quem perde tempo teorizando sobre aquilo, está tentando inventar coisas onde não há coisas, porque está tudo entregue ali direto como o que é, um coração carmin envolvido no laçarote dourado, ou um coelho de bola de aniversário, realizado, em um esmero fantástico, com uma colaboração de não sei quantos assistentes, de polimento de não sei quantas mil horas, isso daí tem tudo... mas você não vai ficar pensando muito e teorizando demais, sobre esse neopop que é o Jeff Koons. Mas ao mesmo tempo há artistas que solicitam uma reflexão, e muito, e essa reflexão pode estar tanto na pintura, quanto pode estar na escultura, como pode estar em instalações. Agora, a questão da arte e vida, a meu ver, quem realizou mais plenamente esse projeto foram os hippies.
CLARA: Pegando o estudo do universo das experimentações, queria trazer já um pouquinho para o Parque Lage... O Gerchman conviveu com todo esse universo, de estar aí na efervescência americana e aí vem para o Brasil, e aceita esse desafio dessa escola, que depois a gente entende que é uma escola transdisciplinar, de o tempo inteiro estar provocando essa mistura, seja a conferência espetáculo, enfim, a multidisciplinaridade...
PAULO SÉRGIO: Isso eu acho muito importante, que eu acho que o tema principal do nosso assunto de hoje, esse papel do Gerchman como educador, no final na segunda metade dos anos 70, porque eu acho que é em 76?
CLARA: 75 a 79.
PAULO SÉRGIO: 75 a 79. Eu peguei pouco, porque eu estava fora, vim para cá em 78... para preparar minha volta eu voltei em 78, mas fui para Paraíba, mas a gente teve contato, manteve contato... Agora, o importante aí realmente é a efervescência da escola, a vitalidade que ela teve naquele momento era interessantíssimo, porque os melhores grupos de teatro que haviam estreavam lá, não somente as peças de teatro, eu fui em umas duas, lá em volta da piscina. O Asdrúbal Trouxe o Trombone por exemplo, que lançou tantos talentos que estão até hoje aí, mas Asdrúbal Trouxe o Trombone, e eu vi peças dele lá. Eu acho que eu vi peça do nosso amigo de São Paulo, do José Celso, também teve uma peça lá, não teve? E eu vi essas peças. Junto com essa questão do teatro, tinha permanentemente uma abertura para um debate constante sobre a arte, e sobre os artistas, e o fato de ser uma escola livre, e isso é muito importante manter até hoje, eu acho que o Parque Lage é importante até hoje, por ser uma escola livre de arte, porque a escola... a questão do artista hoje, muitos artistas procuram academia para ganhar o sustento na maneira de ensinar, então são importantes esses cursos de artes formais, feito da EBA, UERJ, porque não que eu veja tantos artistas bem formados saindo de lá, mas pelo menos, muitos professores bons estão lá, garantindo o seu sustento, através da existência dessas instituições. Mas já o caso do Parque Lage é diferente, porque dá acesso a um jovem que quer se formar em arte, não tendo compromisso de seguir as disciplinas acadêmicas com os seus sistemas de créditos e pré-requisitos, então isso dá uma abertura nova. A importância do Parque Lage, da ocupação daquele prédio pelo Rubens Gerchman naquele momento, foi muito importante porque havia sido interrompido o ensino do IBA, do Instituto de Belas Artes existia na Praia Vermelha, que ocupava o antigo prediozinho do Exército, que era o antigo clube dos sargentos do Exército, e aquilo foi criado o IBA, o Instituto de Belas Artes, muitos alunos importantes e artistas importantes se formaram no IBA, que tinha como professores, por exemplo, Iberê Camargo, foi professor do IBA. Isso foi interrompido. Em 1975, quando Grisolli vai para o departamento de cultura e convida o Gerchman para recriar o IBA, o Gerchman tem primeiro a inteligência de não aproveitar o nome, Instituto de Belas Artes, e criar uma chamada Escola de Artes Visuais, EAV, isso já dá um diferencial muito grande, por causa do ranso que tinha o nome Belas Artes, isso tinha um ranso patético, tem um ranso patético mantido pela tradição, se justifica quando a escola é centenária, mas não se justificava na inauguração de uma escola nova em meados dos ano 70, então já começa uma diferenciação nesse tipo. Segundo lugar, o lugar, um lugar é privilegiado, você está no meio de um parque, junto à floresta da Tijuca, encostado na floresta da Tijuca, em um palacete como aquele para poder instalar a escola, você junta o lugar e já dando dois elementos novos. Terceiro, eventualmente o programa desenvolvido pelo Gerchman, que foi extremamente aberto, aberto a isso que ela estava chamando a atenção, que é a transdisciplinaridade, isso é muito importante, porque se fala disso o tempo inteiro, mas praticar é muito difícil. Por em prática a interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade é muito difícil, e o Gerchman consegui naquele momento, naquele período, me pareceu, a realização desses projetos de uma interação muito forte, por exemplo, entre artes visuais e teatro. Não somente porque levou as peças lá para dentro, mas pelo fato de artistas transitarem junto com os grupos de teatros na realização das peças, vocês não estão... você não tinha uma performancesinha de artista, quando tinha uma performance era um grupo como Asdrúbal Trouxe o Trombone realizando uma peça de teatro lá dentro. Aí você redimensiona a questão da performance em outra escala. Outra coisa que eu acho que é importante, sublinhar, que eu acho, era um público muito diversificado que você via nas conferências realizadas lá. Não era somente aquele clube que nós temos hoje dos interessados em arte contemporânea, era um público muito diversificado, ou seja, um público que você via na plateia de uma palestra lá, um público de diversas áreas realmente. Pessoas que eram da música, pessoal que era do teatro, pessoal que era das artes plásticas, participando efetivamente, então isso dava um diferencial muito grande às experiências, que hoje nós temos uma experiência muito fechada em guetos. O pessoal muitas vezes, da música não sabe... tirando as grandes estrelas, não sabem quem são os artistas que estão circulando hoje pelo Brasil, a mesma coisa vocês podem dizer para pessoal das artes plásticas, se perguntar o nome de 5 compositores eruditos contemporâneos, eles não vão saber dizer, entendeu? Apesar de algumas experiências, mantida essa herança do Gerchman, ter sido retomada com uma certa frequência. Acho que a grande vantagem do Gerchman, na escola de artes visuais, foi ter iniciado criando alicerces que são... tem o efeito de demonstração para os sucessores, ou seja, não é um crescendo de uma... que vai em uma gênese. É um chão muito solido, complexo, rico que serve de referência para os andares que foram montados, tanto é que a referência sempre se retorna nas discussões, sobre a Escola de Artes Visuais, á esse período do Gerchman, se retorna por quê? Porque ela não começou pequena, ela começou grande, ela começou importante já. Então esse fato de ter começado importante, complexa, com uma espessura muito densa, não é uma referência de uma origem remota, mas sim de uma origem que se faz eternamente presente, entendeu?
CLARA: Nossa, você acha que sempre volta isso é? Eu pergunto isso, porque a gente fazendo a pesquisa, não tem uma publicação, não tinha nenhum material áudio visual até então, então eu sentia essa...
BERNARDO: O Gerchman gravou entrevista antes de morrer, fez um depoimento, uma entrevista, ele que gravou para a irmã da Clara, um depoimento sobre Parque Lage. E ele fala muito que o grande barato para ele, era esse lugar onde as pessoas, os alunos que ele não chama nem os alunos, ele chama os usuários...
CLARA: ...e não são professores, são orientadores.
BERNARDO: Que essas pessoas conviviam ali, elas entravam de manhã e iam embora à noite. Aí o Hélio Eichbauer, que era o grande parceiro dele nessa escola, nesse projeto, fala muito da necessidade de alegria para poder produzir, para poder entrar em um estado de criatividade, de criação, e fala muito... e o Gerchman também fala isso, que o lazer era fundamental na metodologia de ensino deles, naquele momento, é por isso que eu falo isso, quando você nessa coisa de arte barra vida, porque todos os alunos contam que ficavam lá o dia inteiro, convivendo mesmo sem estar tento aula...
PAULO SÉRGIO: ...porque eram bem nascidos.
BERNARDO: Aí é a crítica, isso é o interessante.
PAULO SÉRGIO: Isso é minha situação, porque eu fiquei 8 anos na Europa.
BERNARDO: E é engraçado porque a nossa geração olha para trás assim, e fala é hippi. Então assim, porque às vezes, eu me pergunto, e é uma pergunta até que o Pedro trás essa pergunta sempre: esse Parque Lage, daquele momento, é possível existir, reeditar-se?
PAULO SÉRGIO: Eu acho que está preso ao ethos dos anos 70, acho que hoje uma escola de arte livre, tem que ser muito diferenciada daquela época, porque a atração do mercado é enorme hoje, não é a mesma coisa daquela época. Existem cursos na Inglaterra de arte, que uma das principais disciplinas, é como você defender seu trabalho junto ao marchand, e a outra disciplina importante é como fazer um belo portfólio, são mais importantes muitas vezes, as disciplinas para os alunos, do que terem um bom curso de história da arte, conhecerem muito a teoria da arte, conhecerem a arte contemporânea, para eles essas disciplinas, como uns certos que tem hoje no Brasil, tipo, de produção cultural, gestão cultural, as disciplinas que mais interessam aos alunos, é como preparar projeto para Lei Rouanet, como preparar projeto para editais, entendeu? Há uma presença de questão do dinheiro hoje, que não tem paralelo com aquele momento, não é uma novidade que arte seja a mercadoria por excelência, a commodity por excelência, isso não é nenhuma novidade. Talvez no Ocidente, talvez, é bem possível, que desde o Renascimento, a arte seja mercadoria por excelência. Seguramente no século XVII, passagem para o XVIII, ela já é a mercadoria por excelência, mais que trigo, e hoje, mais que petróleo, a arte é uma mercadoria, mas hoje há uma diferença em relação àquela época, hoje a arte é reconhecida como um produto conhecimento, e o conhecimento é o principal produtor de valor na sociedade contemporânea. Naquela época não era, era um trabalho convencional, o trabalho manual, até o século XIX, até metade dos anos 50 do século... até a metade do século XX, até os anos 50, 60, o trabalho manual, o trabalhador tradicional da linha de montagem da fabrica, era o principal produtor de valor, componente de valor em uma mercadoria, em um automóvel, a parte de gestão etc., deve entrar na composição de valor, invenção do capitalista entra na composição de valor, mas a parte do trabalho manual era enorme. Hoje o trabalho manual, é ridícula a participação dele em qualquer mercadoria. Essas máquinas, sem falar no software, que é puramente conhecimento, é uma das principais mercadorias do nosso tempo, e é produzido sem nenhuma parte material, física, a não ser o hardware do computador. Mas quando você pega mesmo o hardware das suas câmeras, o que tem aí de trabalho manual é irrisório em relação ao que tem de trabalho de conhecimento aí dentro, o trabalho do conhecimento do projeto dessas câmeras, os hardwares que estão aí dentro pensados, os softwares que estão aí dentro, para automatizar a câmera, tudo isso vale muito mais na composição de valor do produto final, do que a partir do trabalho manual, e a arte é produção de conhecimento por experiência desde que Leonardo daVinci sentenciou na segunda metade do século XV, que a arte é coisa mental. Então a arte é o paradigma das mercadorias, em uma época em que domina o conhecimento, então ela ser uma commodity por excelência no renascimento é uma coisa diferente dela ser uma commodity por excelência hoje. Hoje tem um chão social de infraestrutura econômica, onde o conhecimento é uma mercadoria efetivamente, participa da composição de valor, de todas as mercadorias importantes produzidas no nosso dia a dia hoje, tem um componente de conhecimento muito forte, então a arte sendo aquela que guarda ainda, a visibilidade do autor, que não é uma produção coletiva. A gente sabe que a arte depende de um autor, que todos os homens não são artistas. Então essa questão autoral, seja coletiva de um pequeno grupo, seja de um individuo, é muito importante em uma época em que o conhecimento é o principal produtor de valor econômico, e ela é o produto do conhecimento por excelência. Então o que você prefere, uma maçã de verdade, já que você gosta tanto de arte e vida, ou uma maçã do Cézanne? Isso é uma brincadeira com a minha mulher, disse só gosta de natureza morta, você não gosta de ver natureza viva, o que você preferia, uma maçã do Cézanne ou uma maçã de verdade da feira? Claro, a gente vende na hora, 250 milhões de dólares, embolsa 250 milhões de dólares e compra 100 fazendas de maçãs.
CLARA: A gente pode te perguntar, vou te pedir para você falar um pouquinho da Trilha da Trama...
PAULO SÉRGIO: A trilha... eu fui convidado pelo Gerchman, para falar sobre o trabalho do Antônio Dias, e eu estava... nesse momento eu estava escrevendo o texto que eu tinha escolhido como título A Trilha da Trama, que foi um textinho publicado depois no livro da Funarte, naquela sede que tem o livro do Gerchman, tem o livro Carlos Vergara, tem o livro do Wesley Duke Lee, do sobre o Meireles, tem o livro do Waltércio Caldas. Uma série chama A Arte Brasileira Contemporânea. E eu estava fazendo o texto para esse livro, com o título A Trilha da Trama, e por isso a palestra teve o nome A Trilha da Trama, porque eu estava falando sobre o que eu estava escrevendo, e foi interessante, foi engraçado essa... foi um grande amigo meu, se tornou depois grande amigo, a gente estava começando a nossa amizade, fui assistir a palestra, saudoso Mário Carneiro estava na plateia, e como eu comecei uma longa digressão sobre a história da arte, comecei na época das catedrais e falando etc., para chegar a arte conceitual, e ao trabalho do Antônio, naquele momento o trabalho do Antônio em 79 por causa do negócio da introdução do papel no Nepal, e ia dar uma grande virada na obra dele nesse momento, dessa palestra, e eu tinha acabado de ver os primeiros papéis no Nepal. E quando eu fiz, teve uma intervenção do Mário Carneiro que eu não me esqueço, tenho uma questão a colocar, “você aqui fez uma síntese da história da arte Ocidental toda, para culminar em Antônio Dias”, a história da arte toda, segue em direção do gótico... e eu gostei da provocação do Mário, que realmente eu ainda era um professor inexperiente, estava começando minha carreira naquela época, depois de anos de ausência do Brasil, em 78 e eu tinha saído em 69, tinha ficado 9 anos fora, eu voltei antes da anistia, porque meus pais estavam muito doentes, os dois morreram em 79, a minha mãe morreu em janeiro, e meu pai em dezembro, então eu antecipei minha volta. Antes da anistia teve alguns aborrecimentos de uns 6 dias de interrogatórios, mas tudo bem, esquece. E o importante foi que eu passando esse tempo fora, eu realmente devia ter acordado para uma dicção mais diversificada, mais diferenciada, realmente porque a partir dos anos 60 eu peguei a obra do Antônio, e comecei a falar só da obra do Antônio, e essa introdução que eu fiz histórica, realmente era uma digressão desnecessária, para... e a observação do Mário Carneiro era muito pertinente, um querido amigo.
PEDRO: O que eu acho que é legal dessa época, é justamente você ter sentado na sua palestra Mário Carneiro, você tinha pessoas...
PAULO SÉRGIO: ...pois é, o Mário Carneiro que é um dos maiores fotógrafos do cinema brasileiro e grande cineasta, e também artista, grande gravador e pintor. As gravuras dele eu me lembro, eu não conhecia ele ainda, a primeira gravura era uma coisa meio morandiana, primeira gravura que eu vi, foi em uma galeria que havia ligado aos cadernos brasileiros, ali na Praça General Osório, e quando eu vi aquela natureza morta, feita uma gravura sobre metal, eu nunca mais me esqueci daquela gravura, e viajei, anos depois quando eu voltei me tornei amigo do Mário.
BERNARDO: E como é que era então nos anos 60 aqui do MAM?
PAULO SÉRGIO: Eu frequentava o MAM o tempo inteiro por causa da minha mania de assistir cinema. Então a cinemateca do MAM, depois que foi para o MAM, porque lá antes era na ABI. Sabe onde é a portaria do MAM, onde você entra para ter acesso ao... não, a portaria para ter acesso á administração, aquela direita, dos escritórios, era ali naquele pedaço, era um lençol, só existia o bloco escola. O bloco de exposições só foi inaugurado em 67 depois da reunião do FMI, foi quando foi feito também um trevo, chamado trevo dos estudantes, que era onde tinha o Calabouço, aquele trevo ali do final do aterro, não tinha aquele trevo, e ali ficava o restaurante Calabouço dos estudantes. Aí mudaram o restaurante do Calabouço, teve aquela luta, acabou com morte do Edoson Luis depois, mas o MAM terminou em 67, inaugurou com uma belíssima retrospectiva do Segal, um texto do Ferreira Goulart no catálogo, que eu tenho o catálogo até hoje, e foi a primeira vez que eu via a retrospectiva de um grande artista, retrospectiva mesmo, porque a retrospectiva eu já tinha visto, retrospectiva de grandes artistas.
BERNARDO: O MAM era um ambiente também de convivência?
PAULO SÉRGIO: Exatamente, porque ali onde tem a cafeteria, onde tem a loja de design, aquilo ali, era um grande cafeteria, onde tem uma loja de design hoje e aquela parte da lanchonete hoje. Ali se reunia todo mundo, mas eu ia com um grupinho meu que ia assistir cinema, e via todo mundo lá, Antônio Dias, Rubens Gerchman e etc., mas eu não tinha aproximação, eu fiz alguns anos de análise para ficar falante.
CLARA: Você já estava aqui quando o MAM pegou fogo?
PAULO SÉRGIO: Pois é, eu recebi a notícia já em Paris, eu tinha voltado para Paris, porque isso foi em abril, essa palestra, eu já estava em Paris para preparar a minha volta, quando teve duas grandes notícias, o incêndio do MAM, e a morte do papa que durou pouco... aquele papa João Paulo primeiro, que durou pouco tempo, foram as duas grandes notícias que me chocaram, um papa que dura um mês sei lá, e o incêndio do MAM, quando eu voltei o MAM tinha... mas eu vi uma grande exposição aqui, em 1977, cheguei em 77, e voltei em julho de 78 para o... logo depois teve o incêndio no Man, junho de 78 eu voltei para Paris, arrumar as malas e vim embora. Mas aí quando teve o incêndio do MAM, já exatamente nesse intervalo que eu estava em Paris, e que foi terrível, foi chocante porque...
CLARA: Dizem que deslocou um pouco o eixo do MAM para Escola de Artes Visuais, que inclusive foi muito solidaria...
PAULO SÉRGIO: ...o próprio Centro Cultural Candido Mendes recebeu muitas exposições importantes, por causa exatamente do incêndio do MAM, foi muito importante para o Centro Cultural Candido Mendes, que preencheu uma lacuna de exposições de artistas, Cildo Meireles fez o Fiat Lux, o sermão da montanha, lá na Candido Mendes, a Anna Bella Geiger fez uma exposição importante naquele período, Tunga fez uma exposição importantíssima, chamada Pálpebras, e logo depois fez o Ão, na nova galeria, José Resende fez exposição no Centro Cultural Candido Mendes. Então você tinha uma programação intensa, que procurava esses locais, tanto a Escola Artes Visuais, quanto o Centro Cultural Candido Mendes que tinha sido criado exatamente um pouco antes do incêndio do MAM, no final de 77.
BERNARDO: Como você descreveria a personalidade do Gerchman?
CLARA: Pode falar, sem censura.
PAULO SÉRGIO: Que isso, o Gerchman era um carioca típico, primeiro, bem carioca, ele nasceu no Rio de Janeiro?
CLARA: Sim.
PAULO SÉRGIO: Ele era bem carioca. Eu conheci o Gerchman um pouco antes, o Gerchman eu conhecia um pouco separadamente. Eu tinha conversas com ele, de vez em quando, porque ele morou na Rua Professor Estelita Lins, e eu morava na Rua General Glicério com meus pais, e eu descia e via o Gerchman, e dava para puxar papo, conversa com ele, porque com ele era mais fácil dar linha, do que com outro, porque ele era afável, falador, esse negócio do carioca típico que eu estava falando. E segundo lugar, tinha um lado de não pousar de artista, e ser um cidadão comum, que tem muito artista que pousava de artista, até hoje tem, a persona...
PEDRO: Hoje em dia tem até uma matéria na faculdade...
PAULO SÉRGIO: E então ele tinha essa outra coisa de não pousar de artista, de se apresentar como o seu igual, então... eu era poucos anos mais moço que o Gerchman, o Gerchman é de 42?
CLARA: Sim.
PAULO SÉRGIO: de 1942, eu sou de 46, eu só tinha 4 anos de diferença, em relação a ele. Então, nós tínhamos uma convivência fácil, que foi retomada depois quando eu voltei, quer dizer, eu tinha uma... conversava com o Gerchman, o negócio do cinema nesse período, da cinematecado MAM, eu quero chamar atenção com isso, que levava também essa mistura de gente no MAM, entendeu? Tem o pessoal do cinema ia e frequentava o mesmo lugar que os artistas plásticos frequentavam todo dia. Eu convivi com o Gerchman até ele sair do Rio doente, no último encontro nosso, foi junto do Centro de Arte Hélio Oiticica, ainda me lembro como se fosse hoje, eu me lembro, ele estava dentro de um carro preto de um amigo, aí me chamou, aí a gente se falou, e ele morreu alguns meses depois, foi naquela ruasinha do lado do Centro de Arte Hélio Oiticica. Foi a última vez que a gente se encontrou na vida.
BERNARDO: Quero começar você contando como que você chegou ao Parque Lage naquele período dos anos 70.
CELSO GUIMARÃES: É. Vamos. Tem uma coisa que antecede que ninguém sabe. Em 1975, 76 lembra uma Veja na Alemanha, porque nessa época eu estava na Alemanha me formando, me formo em 76 e em 75 estava com um grande amigo meu conversando e 76, no meio de 76 pra 77, sai uma reportagem sobre o Parque Lage que o Gerchman tinha assumido tá. Deve ter sido por essa época mais ou menos. E que o Instituto de Belas Artes tinha modificado de nome e tal, eu falei, “poxa, que coisa bacana, não sei o que”. Esse amigo meu que não vou citar o nome, que é uma pessoa conhecida, ele falou assim, “não, Celso, é muito bom você tá voltando. Bom pra você ir dar aula”. Eu disse, “só tem artista de ponta, não vai ser um carrapato saindo recém-formado que vai dar aula lá”. E passou. Me formo em 76 no meio do ano tá, 77 eu volto para o Brasil em março e nós temos o Gerchman, era conhecido de uma prima de minha esposa, ela fala com Gerchman que eu tinha voltado, que mexia com fotografia e não sei o que, ele disse, “manda ele passar lá no Parque Lage”. E eu não dei bola, não passei. Passaram bem uns 30, 40 dias, um dia eu peguei um ônibus, estava aqui nas Laranjeiras, peguei um ônibus e, eu tá, eu vou até o Parque Lage. Daí fui no Parque Lage entendeu. Cheguei lá disse, “eu sou, queria falar com o Gerchman tá, o seu Rubens Gerchman, não sei o que, eu sou o primo da fulana”. Aí ele, seu Celso, demorou a vir aqui cara, entendeu. Aconteceu inclusive uma coisa trágica tá. Tinha acabado de falecer o rapaz que dava aula de fotografia. Ele disse, “nós estamos precisando de um cara pra pegar a turma, porque não tem ninguém. Fala com o Roberto Maia. Vai lá falar com o Roberto Maia que a gente tá precisando de você agora, fala lá com o rapaz”. Daí eu fui lá no Roberto Maia né, as pessoas não sinto, isso é que eu, uma conversa que nós tivemos antes Clara, as pessoas, não sinto, mas quem era o braço direito do Gerchman era o Roberto Maia, tá. Ele era o grande braço direito da coisa, era assim, o Golbery do Parque Lage. E o Roberto Maia daí me atendeu, eu disse, “Roberto, sou Celso, sou da fotografia, não sei o que e pá. “Celso, porra, a tua turma é terça-feira e quinta-feira, você começa”. “Mas você não quer ver meus trabalhos?”. “Cara, acreditamos em você”. Eu, claro, então, vamos lá. E eu parti, comecei, eu comecei assim, no Parque Lage tá. E era muito engraçado né, porque era Roberto Magalhães, eu já conhecia na área de artes, o Rubens e uma série de outros artistas, Celeida, a Celeida eu não conhecia de nome, mas já tinha referência, tinha quem mais? Tinha, olha, uma série de generais da arte né lá dentro pra lembrar os tempos da época da ditadura né, e eu disse, “vamos dar o máximo e saí para dar início aquela coisa que eu não sabia que ia ser minha carreira tá”. Eu era designer tá, me formei em Comunicação Visual, na Alemanha e tive uma especialização em fotografia junto a um dos maiores cabeças da área de fotografia que é o Otto Steinert na Alemanha, e entrei, caí de paraquedas no Parque Lage, no meio daquelas feras e foi assim, agradabilíssimo né, principalmente por que o Gerchman ser uma pessoa bastante alterado, mas ao mesmo tempo muito positivo. Ele não tinha, ele não, como dizer? Ele era explosivo, mas ao mesmo tempo amável entende. Ele tinha os dos lados. Ele não queria, a peteca estava na mão dele e ele tinha que responder tá, com qualidade dos trabalhos e isso que ele queria e sabe, a nossa convivência foi assim, durante os 2 anos que ele esteve 77, 78 né, que ele esteve à frente do Parque Lage. A convivência foi a mais maravilhosa possível. Roberto Maia, ele, apoio, nós fizemos vários eventos e era divertido né, o mundo era outro tá. Era uma coisa assim, apesar de todas as dificuldades que o país se encontrava, esse final de ditadura, essa coisa, o mundo era outro. O mundo era mais agradável. Eu acho que hoje o mundo tá muito ruinzinho tá. Tirando, fazendo uma comparação. Talvez para os jovens que não tiveram oportunidade de fazer uma, terem essa referência, talvez seja bom, mas na minha idade hoje, eu considero que o mundo tá pior endente. Nós temos mais facilidade, nós temos mais tudo, mas também tem uma coisa que é a falta de direcionamento. O Parque Lage tinha um direcionamento, na época tinha o direcionamento, ela tinha um por que, estava fazendo aquilo. Outro dia não sei quem me falou, “lá o Parque Lage é assim, uma Bauhaus Brasileira”. Eu discordo tá. Pode ser na intenção ser uma Bauhaus Brasileira, mas na formação, ela não tinha voltando um pouco ao lado da pedagogia em que algum tempo atrás vocês perguntaram. Ela não tinha aquela formatação tão estruturada que uma Bauhaus tinha, tá, mas tinha um direcionamento, uma intenção, uma vontade de colocar a arte tá, no seu devido lugar dentro do Rio de Janeiro. Tornar o Rio de Janeiro, de novo um polo cultural, e isso com certeza na contemporaneidade que se propunha o Gerchman, ele conseguiu. Tanto que as pessoas tá, a forma com que, a dinâmica com que o Parque Lage tinha em receber em dar oportunidade a todos de trabalharem tá, hoje já não se vê mais tá. É diferente. A coisa tá bem diferente. E é o pioneirismo né, o preço do pioneirismo e eu posso falar que o resultado foi muito bom. Eu tenho certeza que foi muito bom. Tanto que as consequências, geração 80 e aí pra frente às diversas tribos que vieram posteriormente entendeu, são oriundas daquela época e isso deu dinâmica a arte no Rio de Janeiro que é um local bastante complicado em termos de arte. Muito fechado entendeu, muito restrito, mas naquela época não, naquela época era aberto tá. O que aconteceu no Rio de Janeiro aconteceu no Parque Lage. Era extremamente interessante tá. Era dia e noite. Até outro dia minha esposa falou que, “naquela época você sumia”. Entendeu? Eu não sumia, estava trabalhando. Só quem trabalhava entende, de manhã não, mas de tarde e a noite e de noite nós ficávamos batendo papo até 1, 2 horas da manhã tá, e conversando a respeito do dia a dia né, das nossas propostas, essas coisa todas e isso fazia com que eu sumisse mesmo de casa e ela daí um dia reclamou a respeito desse tipo de, eu estava começando, eu tinha que estar onde estava ocorrendo à coisa, não podia deixar sair um mero professor burocrata de funcionário publico né, vai lá dá aula e vem embora. Não. Havia uma continuidade e as oportunidades é que geravam as diversas ações tá. Eu acho que por aí que a coisa transcorreu durante a época.
CLARA GERCHMAN: Eu vou te pedir pra você falar mais do Roberto Maia. É porque a gente não tem muito depoimento mesmo do Roberto. Eu tenho né, do afetivo a memória normalmente do Roberto ter sido um grande amigo primeiro, um grande amigo do meu pai e segundo um grande colaborador né e a gente tem pouca, conseguiu pouco material. Então, se você, como vocês eram amigos e colegas de profissão né, desse período, seria interessante se você pudesse falar um pouquinho mais dele.
CELSO GUIMARÃES: É. Roberto, foi uma das grandes figuras que eu conheci quando eu retornei. Roberto Maia, foi sabe, uma pessoa extremamente dinâmica culturalmente, de cultura elevada, de alto conhecimento, de poder de solução. Isso talvez foi uma das coisas que o Gerchman sempre tomou o Roberto Maia como, além de serem amigos, como o braço direito dele, que qualquer coisa que tivesse que se solucionar dentro do Parque Lage, Roberto Maia assumia tá. E as diversas ações que nós tivemos, por exemplo, laboratório fotografia, a primeira coisa que eu cobrei foi um laboratório de fotografia. Roberto Maia, na mesma hora, ele era arquiteto né, ele “Celso, vamos resolver isso, vamos ver o que é que você quer”. “Eu tô precisando disso e disso, quero fazer”. “Então, vamos lá, vamos montar um laboratório”. E montamos um laboratório tá. Precário tá, mas extremamente eficiente. O precário aí não é de precário de qualidade, não. É precário de, sabe, não era uma Alemanha que eu estava chegando, mas era um laboratório onde eu tinha a funcionalidade tá, e a minha disposição aquilo que havia de necessidade. Então, esse tipo de coisa era o Roberto Maia. Exposição internacional de fotografia tá, Roberto Maia, “vamos fazer, Celso, vamos lá, vamos pegar? Alemanha, olha a Alemanha tá cheia de exigência”. “Vamos sentar pra conversar”. Aí o Roberto, como arquiteto entendeu, ele resolveu um problema que era o problema de espaço, porque a Alemanha, exigia da gente uma exposição didática. Porque a exposição tinha a proposta deles, elas tinham uma sequência, tinha princípio, meio e fim e que as pessoas tinham que entrar e ter essa continuidade porque ela se propunha a isso. Então, nós não tínhamos espaço. Tínhamos espaço, mas não tinha o espaço para aquela proporção de fotografias que era tudo formato a zero, 118 por 96 é um monstro de fotografia, aqueles painéis belíssimos, coisas que a gente não tinha no Brasil, montado. Olha, altíssima qualidade, todo preparado pra coisa e Roberto Maia com a sua capacidade arquitetônica disse, “não, vamos cobrir o Parque Lage”. Daí cobrimos o Parque Lage com uma paraquedas, porque o paraquedas tem a facilidade o seguinte, ele bem intencionado, se chovesse a água não atravessa, ela bate e escorre é como o guarda-chuva né, e aí fechamos. Fechamos aquela piscina, aí forramos a piscina e criamos um espaço maravilhoso. Tencionamos cabos de aço tá, foram tencionados cabos de aço e criamos verdadeiras galerias de onde a pessoa entrava e percorria. Então, isso foi à capacidade, era a capacidade de uma pessoa que lida tá, com um lado arquitetônico tá, e essa era a dinâmica, tá. Nós não deixávamos a peteca cair tá. Não tinha jeito. Tive a exposição, tive outra exposição que eu levei para o Parque Lage lá da fotografia na Feira de São Cristóvão. Nós tivemos várias exposições de artistas, fotógrafos e outros artistas em que problemas surgiam, mas nós resolvíamos tá, e devido a minha, esse meu relacionamento que eu tive que foi profícuo né, com o tempo né de participar, de está lá sempre atuando, eu tava participando sempre das reuniões tanto com o Gerchman, quanto com o Roberto entendeu, a respeito do que é que nós íamos resolver, do que ia ser resolvido. E isso tinha uma coisa bacana do Gerchman, ele precisava, “você resolve pra mim”. Então, administrativamente, ele dava aos seus administrados entendeu, a oportunidade de dar continuidade àquilo que ele estava pensando que queria fazer e isso é bom, entende. Não sou eu que faço e vocês são só uns meros reprodutores, não. Vocês fazem e isso aí vai contar pra mim, tá. Hoje a gente, depois desses 38 anos que eu dou aula na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a gente sente falta da universidade e desse tipo de coisa. As pessoas não delegam tá, porque acham que vão perder e é o contrário, as pessoas quando delegam é porque elas é que vão ganhar, e o Rubens fazia muito bem isso, sabia muito bem. Inclusive tem uma passagem de um professor que está até hoje lá, eu vou contar uma passagem, que quando ele chegou ao Brasil tá, não vou falar o nome, porque vocês já devem saber quem é, ele foi preso, perdeu os documentos. Quem foi tirá-lo da cadeia foi Gerchman entende. Foi tirá-lo da cadeia, com problema sério, um problema muito sério, porque roubaram os documentos essas coisas todas e ele quando era esse tipo de coisa, ele tomava a frente e ia fazer. Ele não deixava ninguém, ele assumia a responsabilidade dessas coisas. Isso é muito bom. E o Roberto Maia, voltando ao Roberto Maia, na hora lá de dentro na dinâmica lá de dentro, ele também sabe, dava todo apoio ao Gerchman em relação. Uma época terrível, primeiro que a gente recebia de três em três meses, entendeu. Ninguém recebia salário para o aluguel, era de três em três meses. Era pequenininho tá, mas tinha uma coisa bacana, nós tínhamos o prazer de estar lá. Um prazer que você não tem em qualquer lugar tá. O prazer de tá numa comunidade que todos também eram iguais. Ninguém, inclusive numa das exposições que nós tivemos no Parque Lage, aparece lá à lista do salário. Todo mundo, o Roberto Maia, ganhava 3 mil réis a mais do que eu, como diz o outro, “três coisinhas, três qualquer dinheiro daquela época a mais”. Tá. Então, ninguém era, tava lá porque um ganhava mais, não. Todo mundo era igual tá. Era a condição de aulas que nós dávamos de aulas e qual eram nossas funções lá dentro. E isso fazia com que houvesse harmonia entre todos entende. Tinha a turma que era, não eram artistas contratados, eram pessoas que eram funcionários do estado né, que tinham umas coisinhas lá, umas encrencas, mas a coisa, ninguém era menosprezado por ser isso ou ser aquilo. Todo mundo trabalhava igual tá entendendo. Os que eram do estado trabalhavam lá, porque tinham os que não eram do estado, estávamos trabalhando, fazendo nossa proposta, tínhamos nossas salas entendeu, e não sei. Não tinha, não era um local de desavença era um local de construção. Quando o MAM pegou fogo tá, foi à primeira coisa que nós fizemos foi resolver o que é que nós iríamos fazer tá, em nome de uma situação. O que é que o Parque Lage iria fazer entendeu, pra aquela perda né, por aquele desgaste né, que a cidade estava sofrendo com a queima do MAM, com a queima do artista uruguaio, com os seus quadros, aquela coisa toda e a passeata saiu da onde? Saiu do Gerchman tá, e eu tive o prazer de fotografar, vocês têm fotos minhas aí dentro da coisa, do CD, da passeata e foi assim, teve uma repercussão muito grande tá. Então, isso é que valia tá. E sabe, o prazer né, quer dizer, você ia para o Parque Lage com prazer. Não tem uma memória tá, do Parque Lage que não, que tenha me dado um desconforto ou alguma coisa de desagravo tá. Mesmo recebendo de três em três meses né, a coisa não era por aí, era proativa.
CLARA GERCHMAN: E essa coisa super linda assim, que tinha, que a escola de alimentava de si mesma assim, por exemplo, os alunos a fotografia, fotografavam a aula da Celeida, os alunos de designer diagramavam sabe, tinha uma, né. Parecia muito.
BERNARDO: Então, a interdisciplinaridade.
CLARA GERCHMAN: Interdisciplinaridade.
CELSO GUIMARÃES: Interdisciplinaridade existia, mas tinha a turma que estava sempre lá no Parque Lage, quer dizer, aquela turma do, só não dormia lá dentro, porque a porta era fechada e botavam pra fora, mas ficava lá o dia todo, entende. E essa turma participava bastante, entendeu. Eu fiz duas exposições lá, eu fiz a parte de diagramação, eu tinha a minha área de fotografia, a gente saía pra fotografar, eu fotografei muito o Parque Lage, enquanto estive fotografei muito tá, todos os eventos possíveis né, principalmente os dias de minhas aulas, eu saía, estava sempre com uma câmera e aluno a gente provocava a descobrir entendeu, dentro do Parque Lage situações, pra não ter que sair, ter um motivo, criar um motivo tá. Isso era extremamente proativo entende, era dinâmico dentro da escola tá. A outra coisa que eu via bastante interessante em relação a essa integração, essa interdisciplinaridade tá, era nós participarmos junto com outros professores. Não tantos, eu tinha muito contato com a Celeida Tostes, com os alunos da Celeida, tinha contato com o próprio Roberto. Roberto dava linguagem, eu dava fotografia mais laboratorial, mais técnica tá. Alunos dele vinham pra mim e os meus vinham pra assistir então, tinha toda uma facilidade tá. Não era uma coisa entanque tá. Esse aqui é meu esse aqui não. E eu não sei, tem uns aí Marquinho Bonisson, que é artista, tem vários aí, tem vários perguntam, vira e mexe eu encontro um aluno meu que foi da minha época tá dando aula lá no Parque Lage, tá dando aula lá no Fundão e Clara, são muitos anos a gente acaba não tendo todo mundo na cabeça, mas a geração que foi criada, a geração, o empurrão que o Parque Lage deu tá, aí sim se ele tiver, puder fazer um paralelo com a Bauhaus, foi o empurrão que o Parque Lage deu no Brasil como a Bauhaus deu né, nos seus primeiros anos entendeu, que não tinha nem diploma e não tinha nada na cultura e no sistema acadêmico alemão. E o Parque Lage, não tinha essa proposta tá, ele era mais aberto né, e por isso que se você pedagogicamente você pode até fazer uma comparação de algumas áreas, mas não na situação como acadêmico como foi Alemanha e o Parque Lage. Eu acho que o Parque Lage foi muito mais aberto tá, menos restrito, foi Latos Menos Strictos né, em termos de arte. Havia muito mais essa dinâmica, era mais dinâmico tá. Não se resumia a um mero diploma ou era uma coisa, se resumia era o seguinte, vamos fazer criação, aqui é a área de criação tá, e aí cada um tocava o seu escaninho né, que é como eu chamo as suas salas, as suas aulas, bastante pessoas como até o Jaime que era o escultor entende, tradicional entendeu, Jaime Sampaio, ele atuava com carinho junto com a dinâmica que o Gerchman estava impondo. Então é por aí que o Parque Lage teve a sua importância dentro do estado do Rio de Janeiro e quem sabe no Brasil. Isso é que foram fotos minhas com meus alunos. A primeira turma, engraçado que na primeira turma é até bom rever isso aqui, nós tínhamos duas turmas. Tinha a turma da parte da tarde e a turma da noite. A parte da tarde eram estudantes universitários, senhoras que queriam aprender fotografia, não sei o que, e a parte da noite eram os profissionais que chegavam com seus paletós e botavam nas costas da camisa e que queriam aprender fotografia. Então, profissionais lá fora, mas lá dentro eram os estudantes de fotografia, aquelas pessoas que tinham a imagem como objeto tá, e se interessavam. Aí aparece diversas pessoas, inclusive a Cláudia Saldanha, que foi fazer. Hoje eu estava vendo uma fotografia de uma pessoa bacana, o Mark, que era um inglês né, fotografando a filha do ai Meu Deus....
CLARA GERCHMAN: Joaninha?
CELSO GUIMARÃES: Não. Do Meu Deus, deu branco agora.
CLARA GERCHMAN: Daqui a pouco volta.
CELSO GUIMARÃES: É. Daqui a pouco volta. E tava vendo fotografia sabe, pessoas que passaram, tinham arquitetos, tinha uma outra arquiteta também amiga minha que hoje é colega no Fundão entendeu, foi minha aluna, era estudante de arquitetura e era a turma da noite entendeu, que eu chamava a turma do palito tá. Que chegava botava o palito assim na cadeira e íamos para o laboratório pra fazer fotografia. E eu tinha a dinâmica em levar aparelhagem pra lá, levava spot e coisa, aí nós fazíamos e como era noite, aí vamos fotografar fazer retrato, vamos fazer mexer com luz artificial, essa coisa toda tá. Aquilo tudo sentado, alguém pegou minha câmera e, na época que eu tinha o bigode preto entendeu, o Gerchman, na aula dele, esse aqui foi quando eu fui botar meu primeiro, foi a primeira vez que nós botamos tablado, porque teve um show de música lá, nos botamos um tablado. Aí o tablado virou a obra do seu Gerchman entende.
CLARA GERCHMAN: Acho que foi para o Verão a Mil, não foi.
Celso: Não. Não me lembro o que é que foi. Foi um tablado que foi colocado pra banda de rock, pra banda de shows entende, essa coisa toda. Depois nós fechamos. Quando na exposição como eu contei, nós fechamos isso tudo.
CLARA GERCHMAN: Vocês, você acha, vocês eram muito jovens, vocês tinham assim, consciência, tinham noção da dimensão dessa escola e dessa, por que, por exemplo, vocês falavam de cultura, ciclo do negro, primeiro show, como é que é? De guitarra elétrica, primeira exposição mundial de fotografia, enfim era muito a vanguarda quer dizer, aquele momento e aquele espaço.
CELSO GUIMARÃES: Eu acho que não se tem, acho que ninguém tem noção desse valor entendeu, de responsabilidade que hoje a gente olha pra trás e se dá a ele tá. Nós não tínhamos. Ninguém tinha. Nem o próprio Gerchman tinha. O que o Gerchman queria era atuar como diretor e fazer e tinha a dinâmica entendeu, e que ele queria que a coisa tivesse a dinâmica que ele tava propondo para que a arte a contemporaneidade naquela época, década de 70, final do moderno né, se tornasse ali um polo. Agora a gente achar que a gente sabia, não tem noção, eu acho que é impossível. Como não tem noção se o quão importante eu fui quando eu fui pra Escola de Belas Artes, nesses 38 anos. Talvez não tenha sido importante, talvez não. Tanto espaço, tantos né. Quantas pessoas já se foram, se aposentaram e a gente não guarda nenhuma lembrança de algum evento. O Parque Lage a gente guarda, porque apesar de nós não sabermos na época tá, sabia-se que nós estávamos em um polo de fomento. Existia esse polo entendeu, de fomento da arte. Isso a gente tinha certeza de que, isso nós sabíamos. Agora se essa repercussão de valor né, da coisa em relação ao Brasil, em relação à arte brasileira, ela eu acho que, ela é uma consequência é um produto tá, de uma referência que foi implantada através da ideia tá, da modificação do Instituto de Belas Artes pra Escola de Artes Visuais, essa coisa toda. Celeida era uma figura. Isso aqui nós saímos daqui e fomos lá para Bento Ribeiro, pra uma olaria em Bento Ribeiro pra comprar barro, Celeida e eu. “Vamos lá?” “Vamos lá, Celeida”. Aí fomos pra lá. Ela não dirigia então, eu tinha carro, eu que levei a Celeida. Chego lá ela começa, mete a mão no pote, cata e vai fazendo a suas intervenções e aí começa a catar os caquinhos e ela dá e o porteiro lá, estava fazendo o pote, ela enfiou a mão quis fazer um pote também e, uma figura.
Isso aqui foi o forno que a Celeida fez tá, do lado de fora. Nessa época, isso foi no primeiro ano, eu cheguei em março, em setembro eu fui roubado. Roubaram todas as minhas câmeras Hassel, (Nikon), essas coisas todas. Entraram na minha casa no terceiro andar, aqui nas laranjeiras e roubaram. Aí eu comprei uma Instamatic e fui fazer essas fotos. Aí eu andava com Instamaticzinha, não tinha outra era a Instamatic. Aí comprei uma Leica de um aluno que não queria, achava muito complicado fotografar com Leica, daí eu comprei a Leica dele, o Mark, inclusive esse inglês tinha ido a Nova Iorque, mandei comprar um fotômetro pra mim, botamos de mão e eu, a Leica, comecei fotografar com a Leica-M3. É. Mas isso aqui não. Isso aqui é Instamatic. Instamatic mesmo. Foi uma Instamaticzinha na maior qualidade.
BERNARDO: Como é que eram essas ações da Celeida com a escola?
CELSO GUIMARÃES: Ela queimava as peças, ela fez um forno pra queimar as peças, porque nós não tínhamos forno. Lá no Parque Lage, não tinha forno entende. Então, ela construiu esse forno. Esse menino aqui, eu não sei o nome dele, ele é chileno e ele era engenheiro e ele que calculou pra Celeida a estrutura, toda a estrutura pra ela poder fazer o forno pra queimar as peças entende. Era do lado, atrás, você olhando em frente ao Parque Lage entre a Cavalariça e o Parque Lage no cantinho lá, aí tava tudo, limpamos lá e fizemos o forno. E a Celeida que é muito engraçada, porque a Celeida, nós estávamos lá fazendo o barro a Celeida de botas, parecia uma madame entendeu. Muito figura. E isso aqui foi nossa, foi o evento que eu realizei. Nós fomos, foi uma proposta de irmos fotografar no domingo a Feira de São Cristóvão, domingo ou sábado, qualquer coisa assim, tá, e nós fotografamos no sábado seguinte não, 15 dias depois nós fomos para o Campo de São Cristóvão esticamos uma série de barbantes lá e dependuramos as fotos entendeu, e fizemos uma exposição, uma metro exposição né. E as pessoas que tinham sido fotografadas estavam lá e aí nós levamos, mandei fazer que todo mundo fizesse uma cópia pra dar pra pessoa e as pessoas chegavam e a gente dava a cópia entendeu, pra elas da coisa. Aí foi uma comoção né, quer as pessoas, “olha lá fulano, não sei o que”. Lá na feira e chamava a pessoa pra vir entendeu. E nós fizemos, eu fiz uma série de fotografias e estão guardadas até hoje. Eu acho que vou botar na, botar junto desse grupo aqui que são fotografia de todos é que eu não sei o nome deles e tem umas que estão com nome atrás e os outros não. Essas fotografias tá, nós levamos para o Parque Lage e fizemos uma exposição no Parque Lage, onde nós convidamos o pessoal da feira pra ir ao Parque Lage tá, e ver a exposição no Parque Lage. Sair do Campo de São Cristóvão e ia fazer a exposição no Parque Lage. Aí levamos esse trio que ela tocava lá na feira e nós levamos e convidamos eles para a exposição lá no Parque Lage. Eu não sei se você tem Clara, a reportagem que saiu no O Globo sobre a exposição? Quem chama? Quem fez se não me engano foi quem Meu Deus? Quem era o articulista do O Globo? Não. J.B. era o, não era o Walmir Ayala, não. Era o Frederico de Moraes.
Ele até fala, ele botou entre aspas, “a grossura tá, da exposição”. Porque nós fizemos, não era grossura, era o que nós tínhamos entendeu. Porque paralelo a nossa exposição tava ocorrendo uma exposição sofisticadíssima de moda tá, e a grossura nossa era o nosso preto e branco com peixe, cabeça de boi e o escambau que tinha lá na Feira de São Cristóvão né, em relação a outras, não foi à grossura do trabalho foi à espontaneidade entendeu. Ele até fala, “não era a, essa espontaneidade que foi a nossa exposição”. E com o xaxado lá dentro e na porta da frente tinhas as madames entendeu, toda sofisticada né, com a exposição do outro colega. Foi muito bacana por sinal.
CLARA GERCHMAN: Como é que vocês conseguiam material pra trabalhar, essa, o negativo?
CELSO GUIMARÃES: Era nosso. Comprava. Você comprava, inclusive um dos problemas que até estava vendo que era rebu né, que a gente chama de rebu né, rebobinado. A gente comprava um rolo de 30 metros tá, eu tinha uma maquinetazinha pra rebobinar e daí a gente pegava cartucho de 35mm velho e nem sempre o cartucho tinha uma peliculazinha de feltro ali e, às vezes, aquilo arrebenta arranha o filme todinho. Aí se fizer com muita rapidez arranha o filme. Aí eu tava vendo aquela linha preta entendeu? É justamente o filme rebobinado tá, mas nós comprávamos filme rebobinado, nós comprávamos, nós fazíamos. A situação que a gente fazia era a mesma que até eu implantei na UFRJ, o negativo a gente compra o filme rebobinado, eram 30 metros e aí você faz vários, umas 10, digamos umas 10, mais ou menos uns 10 cartuchos de 36, mais ou menos, 8, 10 tá, e dividia a lata tá, para as pessoas poderem comprar e ter mais filmes e saía muito mais barato tá. Tinha essas impropriedades entendeu, que a gente só sabia quando a coisa não aparecia na coisa àquela linha preta de arranhado né, mas faz parte. Hoje com o computador não tem problema, a linha preta some toda, a gente limpa tudinho, não tem problema tá, mas essas facilidades nós não tínhamos na época era retocador e retocador é um porre né. É um pincelzinho que você fica lá fazendo aquela coisa, experimenta o tom e passa na língua e passa sabe, no pratinho branco e fica né, aquela coisa e eu já não gosto, não faz parte das minhas lembranças. Eu apaguei tá. Eu continuo comprando filme, com fotografia, tô usando filme, fotografo, boto num belo de um scanner, passo para o computador e daí vou trabalhar no computador tá, que ainda considero ainda que fotografia através do filme ainda é melhor do que essa coisa pasteurizada que dá o digital né, mas e não tem graça. O digital pra mim é o seguinte, o digital não tem graça tá, ele serve pra você trabalhar a área gráfica, quando você pega a fotografia e transforma ela em foto imagem, como hoje eu chamo, ela é fantástica. Agora fotografia mesmo, daquela fotografia que a gente tradicional que a gente tinha né, ampliar com grau, não sei o que, é muito ruim. Não tem a menor chance de eu gostar, mas tudo bem, isso é problema meu. E aí a gente comprava né, o filme o revelador daí que o Parque Lage sedia né, a parte de, nós comprávamos o químico e eu preparava todo o laboratório né, o revelador, o fixador, o interruptor, essas coisas tradicionais tá, tanto pra filme quanto pra papel e nos fazíamos lá 1 galão de 5 litros mais ou menos, 1 galão de 5 litros tem uma incoerência né, 1 depósito de 5 litros né, e aí fazíamos já pra uma grande quantidade pra poder todos trabalharem e daí funcionava. Funcionava. O papel as pessoas compravam o seu papel né, porque uns gostam perolados, outros gostam brilhante, outros gostam não sei o quê. Eu estipulava sempre o papel naquela época era mais radical né, a fotografia mais com tendências jornalísticas, cunho documental entendeu, sempre papel brilhante tá. Apesar de eu pessoalmente usar sempre papel mate tá ou semi-fosco né, nem o mate. E com isso eu, mas quando era documental era papel brilhante. Então, é bem tradicional mesmo. É a minha escola né, mas é por aí, coisas assim. Mais alguma coisa?
PEDRO: Eu achei superbacana. Você tem alguma coisa que você se lembre que você gostaria de deixar registrado aqui para posteridade?
CELSO GUIMARÃES: Registrado para posteridade?
PEDRO: Ou alguma uma história curiosa, alguma coisa que você se lembre assim, de história com Gerchman?
CELSO GUIMARÃES: História curiosa?
PEDRO: É. Lá no Parque Lage.
CELSO GUIMARÃES: Eu sou um péssimo contador de história, eu não.
PEDRO: Daquelas noites alucinantes no Parque Lage.
CLARA GERCHMAN: Os morceguinhos.
CELSO GUIMARÃES: Não. Os morceguinhos, não. Os morceguinhos a gente não pode contar entende. Tem a coisa do, tem o João Grijó, quando apareceu né que é um artista falecido já, português e João Grijó era muito gozado, porque ele era todo calmo, figuraça e não tem nem uma história, mas o ato dele que ele trabalhava com polvo. Polvo entende, polvo pra ele, polvo é um dos bichos mais inteligentes que existe na natureza e ele ficava contando os experimentos do polvo que ele ia para o aquário lá de Portugal né, em Lisboa, pra ficar vendo o que é que o polvo fazia, qual era a coisa entende, era uma figura. Isso são atos né, do polvo e aí que eu vim, inclusive a descobrir né, que o meu filósofo predileto que é o Flusser, ele escreveu um livro chamado Vampyroteuthis Infernalis, que é sobre polvos gigantes né, abissais, e ele faz uma relação entre o homem e o polvo que nós descendemos da mesma linhagem do polvo. O polvo vai para um lado e o homem vai para o outro né, e ele faz a coisa. Isso me recordou muito tá, quando eu entrei mais a fundo pra estudar o Flusser. É o João Grijó que falava do polvo entendeu, e a gente ficava de sacanagem com ele entendeu, com aquele caso que o polvo fazia. Aí depois aparece aquele polvo na Alemanha né, que tirava o time que ia ganhar, sorteava né. E foi uma passagem extremamente interessante do João Grijó. Um belo de um artista que passou pelo Parque Lage que veio para o Brasil, se erradicou aqui e faleceu estupidamente né há uma década atrás mais ou menos e eu tive o prazer de conviver com ele. Fazia parte de comunicação visual dele, de exposições que ele fez entende. A Celeida, tem a Nelly. Nelly Guttman também que saíram todas do Parque Lage né, que foram alunas da Celeida, da Nelly, a Maria Vasco e tem uma série de pessoas, de pessoas bacanas. Tem que conversar. Lembrar as coisas é muito complicado, pega a gente de surpresa, mas lembrar aqui.
BERNARDO: E você acha que o mundo pode voltar a ser agradável como era naquela época ou já era?
CELSO GUIMARÃES: Não. Já era. Eu não sou pessimista, não. É que isso é uma geração entendeu, uma educação que o Brasil perdeu. Nós perdemos essa educação tá. Não estou dizendo que vocês não tenham educação, por favor, vocês são mais jovens né, mas o tipo de educação, o tipo de, as gerações anteriores, até a geração, até década de 70 entendeu, que sei lá, 50, 1950, 60 mais ou menos tá, dezoito anos, nasceu no início de 60, viveram apesar de uma época extremamente apertada que foi a da famosa ditadura militar, tinha humor. Eu acho que nós perdemos o humor. O carioca perdeu o humor entende. O Rio de Janeiro perdeu o humor. Tem muita coisa boa interessante? Tem sim. Mas você não faz mais um Ziraldo, você não faz mais um Henfil, você não faz mais ninguém. Você não aparece, são poucos e quando aparece tem aí o politicamente correto que não te deixa, e nós éramos esculhambados. Nós somos de uma geração esculhambada entendeu. Não tínhamos o politicamente correto tá. Isso que nós perdemos, essa espontaneidade. É por isso que eu falo que, claro que hoje tem coisas belíssimas, tem coisas como eu falei tem coisas belíssimas entendeu, uma máquina fantástica como essa que vocês não precisam ter aquelas câmeras de um tamanho de um bonde, você pega uma máquina fotográfica hoje você filma entende, com uma qualidade maravilhosa tá. E tudo hoje, eu vi um cara fazendo um casamento e o cara tava com uma D-11 né, da Canon né, apoiada, ele com flash em cima, com uma mesinha e não sei o que, a máquina aqui e ele com o tablete olhando só o que é que a máquina, entendeu? Um cara sozinho chega ali, antigamente você via um bando de gente pra fotografar pra filmar entendeu, os rebatedores aqui e o cara sozinho com uma câmera. Então, a facilidade tecnológica é fantástica, mas ela tem o seu preço né. Isso é que eu acho que nós perdemos entendeu, o lado da invenção da criatividade, não dessa inventiva sem ser acadêmica. A inventiva de você sabe, o Brasil ainda tem muito disso, lá fora menos tá. Você aqui é como se diz, você quebra o galho, você sempre tá quebrando o galho, sempre fazendo alguma coisa adaptando alguma coisa, mas não tem mais humor entendeu. Humor no Brasil, eu acho que o Brasil perdeu o humor. Isso que me incomoda muito quando eu vou dar aula, as pessoas não entendem entrelinhas, quando você fala as entrelinhas, as entrelinhas entende, que você solta uma brincadeira no meio de uma coisa séria, isso, às pessoas, não conseguem mais captar.
BERNARDO: Mas sempre num tom de fala de burrice também né?
CELSO GUIMARÃES: Também. Isso daí também tem esse.
BERNARDO: Isso ficou um pouco.
CELSO GUIMARÃES: Tem.
BERNADO: Já foi mais cosmopolita?
CELSO GUIMARÃES: É. Já foi mais cosmopolita, justamente.
BERNARDO: Já foi mais inteligente.
CELSO GUIMARÃES: É. Eu tô falando que tá ficando mais burro. O termo é esse, tá ficando mais burro tá. Não só a cobrança como também o volume de pessoas né. O Rio de Janeiro era bem menor né, o Brasil era bem menor. Eu, quando conversamos e as pessoas falam, “não sei o que, e pá”. Isso em 1970 eram 70 milhões tá. Você bota aí 40 anos depois, triplicou. Se não chegou a isso está quase isso entendeu. E tinham 350 anos, 340 anos, 400 anos eu diria, 450 agora, pois é, 400 anos 70 milhões, 450 anos, nós temos o triplo. Então, você não consegue mais ter aquele mesmo ambiente que nós tínhamos tá. Isso não é o mal do Brasil, não, por favor, eu acho que não é o mal do Brasil, é o mal do mundo tá. Alemanha, eu morei nove anos na Alemanha, aquilo lá é um horror entendeu. Não como país e coisa, mas em termos de falta de humor. Alemão só tem humor quando bebe entendeu e tudo pra eles é trabalho tá. É trabalho, mas você pode fazer um trabalho com humor. Eu sempre parti do princípio o seguinte, se eu for trabalhar carrancudo, se trabalho for pra mim uma coisa de ficar com cara séria, eu não trabalho. Prefiro não trabalhar. Porque daí eu vou tá trabalhando brigando. O trabalho pra mim, tem que ser alegre, tem que ter alegria, tem que ter vontade e aí eu volto ao Parque Lage, a gente trabalhava com alegria no Parque Lage entendeu. Tinha essa coisa do sensível, muito mais importante do que o lado carrancudo né, aquela coisa, “já que você só tá trabalhando e só tem artistas tudo sério, não”. A gente faz um trabalho sério, mas a gente faz com humor entende, e aí é essa falta eu acho que isso que tá me cansando aqui. Não é a tecnologia, não é a quantidade de gente é a falta sabe, de humor a falta de inteligência mesmo. Eu acho que é por aí. A falta, você falou certo, a falta de inteligência entende, as pessoas estão curtas, leem pouco, têm pouca provocação entendeu. Você tinha, na minha época tinha um Pasquim que você rolava de rir entendeu, rolava de rir. É um grupo de escritores fantásticos e hoje não. É uma coisa assim, é um pastel. Pastel. Parece coisa de pastel. É como diz, “perdeu”. Perdeu. Tá bom. Tá bom.
MARCOS FLACKSMAN: Escola de Artes Visuais, EAV. Deixa eu falar um pouquinho de como eu conheci o Rubens. O Rubens, eu conheci, se não me engano, nem me lembro qual foi a data. Eu comecei profissionalmente em 1964. Para as pessoas não fazerem imediatamente cálculos e acharem que eu sou uma pessoa provecta, eu não sou uma pessoa provecta, eu realmente sou, já sou um adulto, mas eu comecei muito cedo e foi no teatro. Então, e a cenografia para mim, a minha aproximação com a cenografia foi por uma paixão pelo teatro, e uma paixão pela liberdade, na verdade. Vamos falar claramente, porque dentro dos grupos teatrais, você exercia numa sociedade mais repressora do que é hoje, bem mais repressora do que é hoje, mas liberdade. Então eu estava à procura também disso. Além do que dentro das artes em geral, eu não gosto de misturar o meu trabalho, eu acho que o meu trabalho não faz parte da cadeia de artes plásticas. Eu não me considero um artista plástico. Tenho bastante implicância com os artistas plásticos inclusive. Mas esse espaço do mundo irreal, eu acho que é um ponto comum entre nós. Quer dizer, nós éramos todos jovens, bem jovens, nós éramos todos de esquerda, nós estávamos diante de um momento muito explosivo da política nacional. Parecido com esse aqui, mas esse aqui é menos, é mais aparelhado, entendeu? Lá era menos, era mais, era mais perigoso. Tanto que houve a revolução, a revolução não, o golpe de 64. Quer dizer nós estávamos engajados numa revolução e nós éramos todos muito jovens. Eu por exemplo, ao mesmo tempo comecei em cenografia, e no teatro na verdade, eu fazia parte de um projeto do governo que era a alfabetização com o método do Paulo Freire. Isso tudo já é bem antigo. O método Paulo Freire, a gente estabeleceu, tinha o famoso 11º andar do Ministério da Educação e Cultura, que era onde hoje é o prédio do Capanema. E o 11º andar ocupou, foi ocupado pelo método de alfabetização. Bom, nesse período, em 60 e poucos, eu conheci o Gerchman, conheci o Vergara, conheci o Roberto Magalhães. A primeira vez que eu fumei maconha foi com o Roberto Magalhães. Incrível não é?
CLARA: Em boa companhia.
MARCOS FLACKSMAN: Em boa companhia. E outras pessoas dessa mesma época, o António Dias. Conheci o António Dias que era daquela turminha de 68, da famosa exposição de 68 e tal. Depois disso, esse pessoal se engajou numa, quer dizer, eu me profissionalizei no teatro e esse pessoal de artes plásticas, o Vergara é sócio desse atelier até hoje. O Vergara é meu sócio até hoje, como se fosse meu irmão, e o Gerchman estava permanentemente em contato. Acompanhei a construção do atelier lá na Barra, na Barrinha, tive várias vezes com ele lá. E quando, eu fui para a Europa, eu fui para a Europa em, no final de 67 com uma bolsa de estudos do governo francês complementada por uma bolsa de estudos do Itamaraty. Coisa fina. E meu irmão, o Alberto, ele tinha ido para França. Ele foi preso aqui em 66, pouco antes do AI-5, a gente conseguiu um habeas corpus e tiramos ele do país. E ele foi embora. Ele foi embora para lá no começo de 67 e mais para o final de 67 eu fui, e fui com as bolsas, e fui com passagens, eu ganhei um prêmio da Air France, me deram passagens, em suma, eu fui lá para a Europa, passei 5 anos lá. Eu tive um gap desses 5 anos que foi entre 68, um gap grande, entre final de 67 e princípio de 70, quer dizer, 1 ano e pouco eu fiquei no Brasil, ganhei de novo uma passagem de prêmio da Air France, e aí voltei e fiquei até 73. Voltei com o Daniel que tinha 1 ano na época. Quando voltei, isso foi em 73, as coisas já, quer dizer o AI-5 já não tinha um efeito tão maldoso, tão violento. Mas ainda não se respirava nenhum tipo de liberdade, aliás na minha opinião não se respirou nenhum tipo de liberdade até o final da ditadura. Porque tem pessoas, o próprio Glauber, que era maluco, dizia "não, porque o Golbery é um gênio da raça” e lá na Europa, porque estava delirando, falava "não, porque o Geizel é um sujeito empenhado na abertura...", empenhado porra nenhuma, era um torturador alemão filho da puta, torturador, escroto da pior espécie, como todos eles foram, como todos esses generais foram. Eu tenho horror dessa gente. E quando o Gerchman foi convidado, se não me engano pelo próprio Grisolli.
CLARA: ... pela Lina, indicação da Lina Bo Bardi.
MARCOS FLACKSMAN: É, indicação da Lina Bo Bardi. O Grisolli se não me engano, não sei se ele já era secretário de cultura ou não...
CLARA: ... ele estava na secretaria de cultura.
MARCOS FLACKSMAN: O Gerchman foi convidado, o Gerchman foi convidado para fazer o quê, existia um instituto, que era um instituto do governo, se não me engano, provavelmente, que ocupava um prédio, não sei exatamente qual era o prédio, mas naquela área toda militar ali da Praia Vermelha que era um instituto de belas artes, e esse instituto de belas artes, nunca cheguei a conhecer mas pelo que eu soube era um instituto que servia muito as pessoas que queriam aprender, e é ótimo, maravilhoso, eu não tenho nada contra sabe. Mas os alunos não eram exatamente jovens e eram essas pessoas que, ou faziam isso para se divertir, ou para ocupar o tempo, ou como curso complementar ao de belas artes, um exercício do curso de belas artes que era uma coisa que privilegiava a pintura, a pintura de observação, a pintura ao ar livre, era lindo, espetacular, não tenho nada contra isso. Só que era muito pouco. Então ele teve a concessão de um lugar que eu acho chave para que isso tenha acontecido, o fato de ter ido para o Parque Lage, ocupado o Parque Lage. E o Gerchman chamou uma série de pessoas que ele conhecia em áreas ligadas às artes em geral. Eu fiquei com uma oficina de cenografia da qual eu vou falar mais detalhadamente em seguida. Mas, eu encontrei pessoas como o Gastão Manuel Henrique por exemplo, que eu conhecia porque tinha trabalhado com a mulher dele, que nem me lembro do nome dela. Que era uma atriz maravilhosa que trabalhou comigo num grupo amador em Niterói. Fizemos uma Electra, ela fazia a Electra, não me lembro o nome dela, vou me lembrar. Então eu conheci o Gastão que era casado com ela, era amigo do Vergara também, amigo do Gerchman e tal. O Roberto já disse que conhecia e tal. Quando nós entramos para a escola, essas pessoas, nós fizemos várias reuniões, então várias dúvidas pairavam, quer dizer, a gente sabia, quer dizer eu não tenho curso de pedagogia, nem nenhum de nós. Daquela moçada ninguém. Não sei se a Heloísa Buarque tem curso de pedagogia, mas acho que não tem porra nenhuma, ela fez curso de letras se não me engano. Então, a dúvida que pairava era a seguinte, como é que você faz um curso, como é que você monta uma escola livre. Porque essa palavra era indissociável, quer dizer, tudo nós colocávamos a palavra livre do lado. Porque o grande anseio nosso era essa coisa de você ter coisas, de você ter escolas e convívios e espetáculos tudo livre, livre de censura, livre de limites, livre de tudo. Nós estávamos no final dos anos, logo depois do final dos anos 60 que foi uma época mais revolucionária e libertária que houve até hoje. Hoje, eu não vejo nada semelhante nessa geração dos meus filhos. Eu tenho filhos que vão de 42 a 17 anos, ou 18 anos de idade. Quer dizer eu tenho um range e não vi, não vi na geração deles. É uma geração muito mais tranquila digamos assim. Quando ele chegou lá, as minhas dúvidas eram as seguintes, como é que você faz, quer dizer, na verdade, a cenografia, vou falar um pouco da cenografia propriamente dita, o que é que era a matéria do curso. A cenografia, ela para mim, e na época mais ainda, mais do que tudo, ela era uma matéria ligada à dramaturgia e não à arquitetura, ao desenho ou à pintura. A arquitetura, o desenho, a pintura ou qualquer outra intervenção espacial para mim era o instrumento. Servia como instrumento. Tudo bem, até aí muito bonito, lindo, que espetáculo, que espetáculo, é um instrumento, espetacular. Bom, mas é verdade, então eu me lembro que durante muito tempo quando lidei com isso, dei oficinas e dei com as pessoas, as pessoas me perguntavam, "é importante você fazer arquitetura para você ser um cenógrafo?", porque o cenógrafo, o arquiteto, hoje existe o diploma de cenografia da UNIRIO. Porque não existia, e da UFRJ, porque não existia, o cenógrafo era um marginal como outro qualquer. E o arquiteto poderia exercer a cenografia, mas como nunca se exigiu assinatura para coisa nenhuma, qualquer um pode exercer a cenografia. Mas a cenografia era essa coisa de você, partindo de, para mim, partindo de uma dramaturgia, ou seja, partindo de uma ideia que não precisa ser literária, mas é uma ideia dramática, que envolve o ser humano obrigatoriamente, que envolve o ato teatral, partindo do ato teatral, ou da dramaturgia, ou da literatura dramatúrgica que existia, ou seja do que for que você quisesse, você pudesse pensar o espaço aonde ela se dava. Então esse era o objetivo da oficina de cenografia. Então o que é que nós fizemos lá, o que é que nós fazíamos no Parque Lage, que era um espaço de liberdade, quer dizer, a gente fazia o seguinte, a gente fazia leitura dramática. Então basicamente o que a gente fazia era leitura dramática. Na minha oficina, nós fazíamos leitura dramática. A gente escolhia uma peça, uma delas que nós fizemos e que eu tenho resultados. O Hélio até pegou, o Hélio digitalizou e botou na exposição, que era, nós escolhemos, A Senhora dos Afogados que é uma peça complexa do Nelson Rodrigues que era um cabotino. Eu dirigi A Serpente que era a última peça dele. Eu vou ficar na, se alguma coisa vai, se as pessoas vão se lembrar do meu nome por algum motivo, vai ser por isso, é incrível. Que foi uma montagem com a maior dificuldade, que foi feita, a peça foi recusada por vários atores e atrizes da época que tinham condições de montar, e a peça é espetacular, e nós fizemos. E nós, e a Senhora dos Afogados que é uma outra peça lateral dele, você nunca viu, nem ouviu falar em montagem, já foi montado, já foi bastante montado, mas não é das peças preferenciais dele, era uma peça que tinha na sua estrutura muito da tragédia grega. Eu vou fazer um parêntese aqui para falar um pouquinho do Nelson Rodrigues. Ele teve lá na escola vendo a exposição. O Nelson, ele era além de uma pessoa com um humor absolutamente impagável, e ele era, ele não dava colher de chá, ele era uma pessoa irascível, radical, então, ele se classificava como reacionário e tal. Tudo isso era uma grande farsa, era uma grande cortina de fumaça. E eu vi o Nelson dando, um dos personagens dele, era a estagiária de calcanhar sujo, você sabia disso? Quer dizer, ele tinha vários personagens da obra dele. Uma das personagens era essa famosa estagiária do calcanhar sujo que andava de sandália, estava sempre com o calcanhar sujo, ele falava que era da PUC. E tinha outros personagens. Tinha um personagem que era o cunhado. O cunhado era um personagem terrível, que era um cafajeste de bigodinho, que era o cara que dava um beijo no cangote da viúva, que era viúva do irmão. Então, o irmão morria, então no velório, ele ia lá e dava um beijo no cangote da viúva. Esse era um outro personagem dele, em suma. O Nelson Rodrigues era uma figura especial e nós escolhemos o Nelson Rodrigues que eu estava em contato com ele na época, foi uma felicidade que eu tive de encontrar e estava montando um espetáculo. Tinha montado um espetáculo dele, não me lembro qual foi a data, se foi um pouco antes ou um pouco depois que eu montei o espetáculo dele. Mas, nós fizemos. Então o que é que a gente fazia. Qual era a metodologia, a metodologia que não existia era a seguinte. Primeiro eu tinha uma tese, que era uma tese ilustrada com humor, porque eu também tenho essa qualidade, que muitas vezes é considerada defeito, que eu não levo a sério. Não consigo levar a sério, nada. Nada, absolutamente nada. Nem a doença. E nem a dor. Não consigo levar a sério. Por que eu acho que a saída do ser humano é a saída pelo humor. Por que sem humor é impossível. Você não vive. Não acredito que você consiga sobreviver. E se você sobreviver, você sobrevive amargamente. É uma sobrevida muito desagradável. Então, dentro, a gente fazia o seguinte, a gente fazia uma leitura da peça como se faz na mesa, como os atores fazem na mesa. Ou seja, liamos a peça, falávamos dos personagens, falávamos dos subtextos, da psicologia dos personagens, do que aquilo significava. Isso tudo era se não me engano 25 alunos, com todos ao mesmo tempo. Eles podiam se juntar, fazer trabalhos conjuntos, ou fazer trabalhos independentes. E eu ao mesmo tempo dava para eles uma ideia da história, do desenvolvimento dos espaços cênicos, que são, qualquer espaço é um espaço cênico. Mas, tem os padrões, então eu queria que eles conhecessem, então isso era um pouco o lado didático, então tinha, a gente vinha lá do teatro grego, passava pelo teatro romano, vinha embora, vinha, passava pela época medieval, passava pelos pré-clássicos, passava pelo teatro de ópera, e todos esses, todas essas fases do teatro deixaram heranças arquitetônicas, heranças arquitetônicas que a gente considerava, e os historiadores e os críticos, eu não sou crítico, consideravam que eram herança da dramaturgia da época. Então o teatro grego, que é o teatro mais espetacular que já foi criado, era uma herança da tragédia e da comédia grega. Tinha comédia grega também, as pessoas só conhecem tragédia, mas eles tinham comédia também. Que era muito pertinho da tragédia, era encostada na tragédia, como é na vida real. A comédia está encostada na tragédia. Bom, e aí, eu fazia um exercício com eles que era quase uma terapia de grupo. Eram pessoas, era absolutamente heterogêneas , tinha gente jovem, tinha pessoas mais velhas, tinha algumas madames digamos assim, sem usar o pejorativo, ou seja, senhoras mais velhas que vinham do antigo instituto de arte, e eu propunha o seguinte. Vou contar para vocês um cliché do cinema americano que todos vocês, eu dizia para eles, que vocês já viram. Qual é o cliché do cinema americano que você já deve ter visto também que é espetacular. Que é o cara, o Gene Kelly tem um filme assim, vou me lembrar, que é um artista pobre, que mora geralmente num puta, que a gente sabe o que é ser pobre em Paris, ser pobre em Paris você está fodido, você mora na rua. Mas o cara era pobre e morava num apartamentinho todo maneirinho com claraboia e tudo, com piano, e ele tinha um problema que ele não conseguia se inspirar. Ele tinha possibilidade de fazer alguma coisa e ele não conseguia se inspirar, então todo o dia sentava no piano e fumava, e ficava divagando, sentado no piano. Então eu dizia para eles o seguinte, "não quero ninguém sentado no piano, não é assim que funciona, isso é mentira, isso é cinema americano, eu quero que vocês façam o seguinte, em cima das conversas que nós tivemos durante esse tempo todo, do que vocês disseram e do que vocês sentiram a partir da leitura da peça, cada vez que vocês tiverem um insight na rua, está pegando o ônibus, está fazendo coco, está comendo, está namorando, está fazendo o que for, está fazendo feira, se você tiver um insight, você anota a imagem, o que é que te levou em termos de imagem a fazer o insight. Isso, então a gente ia recolhendo essas ideias, as pessoas traziam...
CLARA: ... inserir o cotidiano não é?
MARCOS FLACKSMAN: Dentro do cotidiano, ou seja, eu não queria que as pessoas parassem um momento para se concentrar no trabalho da escola. Não tinha trabalho da escola. Eu falei, ou isso está na, ou vocês conseguem colocar esse sentimento de criação dentro da vida de vocês, e que não atrapalhe a vida de vocês, ou vocês não, parar não adianta, parar e sentar no piano é coisa de cinema americano, não funciona. E como resultado disso nós tivemos, eu não me lembro quantos, mas, sei lá, 20 ou 15 trabalhos diferentes sobre o mesmo tema. Completamente diferentes. Quer dizer, a mesma peça, discutido pelo mesmo grupo gerou 15 cenários diferentes, e eles podiam escolher os espaços. Um dos espaços era o próprio Parque Lage, ali aquela área da piscina. Mas eles podiam escolher um teatro grego, eles podiam escolher a italiana, um teatro de ópera, etc. e tal. Então esse é o trabalho que a gente desenvolvia lá. Quando acabou o primeiro ano ou o segundo ano, não me lembro mais, eu comecei a ter algumas dúvidas a respeito da didática. E aí, me lembro que foram reuniões que a gente teve com as pessoas todas lá e com o Gerchman também muito, eu falei muito com Gerchman então, meio, meio fodidos porque o que acontece é o seguinte, tem um desnível muito grande dentro da turma, então eu acho que a gente podia dentro da escola ou num convenio com a escola ter um curso básico. Então eu comecei a achar que devia ter um curso básico, que era um curso básico de você falar um quadrado, e as pessoas saberem o que é um quadrado. Se não é uma cagada, aí é uma confusão, se você vai, se você tem de começar explicando o que é um quadrado, eu não tinha tempo para eu fazer as coisas que eu queria fazer, porque eu não queria falar de geometria, eu queria falar de dramaturgia. E eu tenho uma formação de arquiteto, sou arquiteto formado, e tenho uma formação geométrica muito pesada. Fui professor de geometria espacial, essas coisas, então a gente, a geometria para mim era muito importante para a projeção espacial, mas não era importante para o ato de criação. Era uma ferramenta que dava, então, aí eu, no meio dessa, em meio a essa, essa discussão dos cursos básicos é que a escola foi fechada. A escola foi fechada, foi um ato, que eu me lembre foi um ato de autoritarismo, com argumentos que não eram falsos, não é.
CLARA: Como assim foi fechada? Invadiram?
MARCOS FLACKSMAN: Não, fechada, não, foi fechada, o seu pai foi mandado embora, não me lembro exatamente como aconteceu, mandado embora e fecharam. E trocaram a direção, e entrou lá um cara para fazer uma escola padrão. O teu pai montou o gabinete dele lá no banheiro da Besanzoni Lage. Quer dizer, então, esse espirito libertário e aberto da escola, e um dos argumentos é que as pessoas fumavam maconha no parque e dentro da escola, o que era verdade, eu mesmo fumava. Então não tinha... foda-se e daí, qual é o problema? Não tem problema nenhum. Bom, e, mas hoje não pode, imagina naquela época, imagina na época inclusive com regime militar. Então, quando eu cheguei na escola, eu encontrei uma, por que o Gerchman, o teu, que o Gerchman tinha convocado uma porção de pessoas que eu já conhecia com, éramos todos bem jovens. Eu já conhecia o Roberto Magalhães, eu já conhecia o Gastão Manuel Henrique, eu já conhecia o Vicente Formiga, eu já conhecia, era meu colega de turma, os 2, o Vicente e o Roberto foram meus colegas de faculdade. Conheci o Roberto, conheci lá a Celeida e conheci outras pessoas que eu vou esquecer agora, mas a Astréia mesmo que eu falei com você, a Astréia foi engraçado porque a Astréia dava desenho a mão livre, modelo vivo, e ela fazia isso do lado da piscina. Não me lembro se o modelo era nu, mas provavelmente devia ser, como a gente faz até na Escola de Belas Artes, e eu me lembro que eu fiz a aula dela, ás vezes quando eu saia mais cedo fazia a aula dela, desenhava, adorava, era uma oportunidade de desenhar junto com outras pessoas, e num período que ela teve que fazer, sei lá que porra que ela teve que fazer, eu substituí ela como professor de desenho a mão livre lá. Eu adorava a escola, quer dizer o tempo que eu podia e eu fazia, nessa época era um profissional bastante atuante na área de cenografia já, fiz espetáculos grandes que me tomavam muito tempo, e estávamos começando esse atelier aqui também, que não era aqui, esse já é o quinto ou sexto endereço dele, mas nós começamos a montagem desse atelier coletivo também, e nesse atelier coletivo estava o Vergara, estava o Manuel Ribeiro, estava o Sebastião Lacerda... Então era um atelier amplo, também era um atelier coletivo e tal que ia contra todas as regras possíveis de uma montagem, de um funcionamento de uma empresa. Nenhum de nós nunca tinha tido uma empresa então. E a gente teve esse atelier. Dentro da escola, existia um obrigatório, não era nem, não dependia de você, um obrigatório convívio com as outras pessoas e as outras áreas de atuação, então por exemplo, o Hélio que é um cenógrafo consagradíssimo e é provavelmente o único sobrevivente que eu conheço de um período em que a cenografia era discutida em alto nível e que era, são pessoas cultas digamos assim. O Hélio é uma dessas pessoas, sempre foi, e já era quando jovem, e o Hélio fez a oficina do corpo lá. Então eu tinha contato um pouco com a oficina do Hélio, tinha contato com a oficina da Astréia, entrei para ver a aula do, eu nunca esqueci, não fui aluno, uma pena não ter sido, eu não tive tempo, mas eu nunca esqueci das aulas do Roberto Magalhães ensinando a usar lápis de cor. Eu uso muito lápis de cor nos meus desenhos e muita coisa do que eu ouvi o Roberto falar. E as oficinas de litografia e de gravura que o Vicente fez lá, as oficinas de fotografia do Roberto que foi mestre de gerações e gerações e gerações de fotógrafos e era arquiteto também. E convívio também com uma área, que era uma área mais de pessoas que conviviam lá, que acharam lá o seu espaço de convivência, como o pessoal da Nuvem Cigana, da poesia, a Heloísa também, eu não me lembro exatamente do que ela fazia, mas ela tinha umas coisas, uns encontros filosóficos, e ela patrocinava muito essa área da poesia libertária, da poesia não publicada, da poesia marginal, etc e tal.
CLARA: A gente vê que o espirito da época é muito o lazer, a importância do lazer também.
MARCOS FLACKSMAN: Era, e é importante também, e era o seguinte, a desclassificação do academicismo na formação, quer dizer, muitos de nós tinham formação acadêmica. Eu por exemplo tinha formação acadêmica, vou traduzir isso, vou abrir um parêntese, formação acadêmica que eu estou dizendo é que eu tinha diploma superior, de escola superior. O Hélio tinha estudado cenografia lá com o Svoboda, lá em Praga. E eu não sei, o Gastão não sei se ele é engenheiro, era uma coisa assim, não sei se ele é engenheiro, várias pessoas que tinham formação acadêmica, mas tinha outras que não tinham formação acadêmica. E o que a gente queria era juntar as pessoas em torno de ideias criativas. Era isso. Ideias criativas que podiam ser de apresentação de poesia, ou seja, da área da literatura, que podiam ser da área da performance, que é uma coisa que eu por exemplo, sou desconfiadíssimo, até hoje. Quando se restringe às artes plásticas. Outro dia eu fui ver uma exposição que estava em cartaz, eu não queria identificar muito não, mas tinha uma obra que era assim, que era umas caixas de som, assim em torno, devem ter custado uma baba porque eram boas caixas de som, todas interligadas, eu não me lembro exatamente o que tinha do lado, tinha umas coisinhas do lado mas era tão insignificante que eu não me lembro nem o que é que era e fazia um zumbido, esse zumbido que você quis eliminar agora para gravar, era esse zumbido. Então você dentro da galeria, quer dizer, tinha outras obras, você ficava ouvindo aquela porra. O Tunga estava lá, e eu falei para o Tunga, "Tunga porra não é possível, cacete, porra, vocês têm de fazer uma depuração não é possível porra", sabe. Então é uma coisa. E vi artes conceituais, de amarrar barbante como se fosse aqui, botasse um prego aqui, passasse um barbante para lá, um barbante para cá, um barbante para lá, amarrasse na escada, puxasse para cá. Não tenho nada contra, eu sou a favor, maluco é maluco e tem de ficar solto a meu ver, entendeu. Não pode morder as pessoas, se está mordendo as pessoas tem de tomar um remédio para não morder as pessoas. Mas se não está mordendo as pessoas deixa solto entendeu. Mas não, em suma, tem limites. É por isso que eu te falei que eu acho que a cenografia é uma arte ligada à dramaturgia e não, mais à dramaturgia, e não às artes plásticas propriamente ditas.
CLARA: Você falou da sua origem do teatro, "eu venho do teatro". O Paulo Afonso Grisolli foi um grande parceiro, Secretário de Cultura na época e ele apoiou muito enquanto ele pode, a escola. Eu queria que você falasse um pouco mais dessa oportunidade de trazer mesmo, a questão da encenação, o teatro para a escola, porque acho que você tem essa grande contribuição. Eu queria que você falasse da importância de trazer a dramaturgia para a escola, porque a escola é de artes visuais, aí você tinha um amigo que era o Paulo Afonso Grisolli, você veio, a sua formação vem daí, como é que isso...
MARCOS FLACKSMAN: O Grisolli era dessa geração um pouco anterior a nós. Eu conheci o Grisolli quando comecei a fazer teatro amador, depois nos juntamos, fundimos 2 grupos, um era o nosso grupo chamava Grupo de Orla, o outro era um grupo mais ligado à esquerda, eu acho que chamava-se Grupo da Bibsa de onde vieram Moisés Achemblate e mais outras pessoas que, Hilário Stanislau quer dizer atores também, e o Grisolli, então nós fundimos esses 2 grupos e fizemos, primeiro um grupo chamado Teatro Mabembe, e que a nossa intenção era fazer teatro e espetáculos para o operariado. Nós estávamos em 1963, então nós fizemos uma Electra que nós levamos por exemplo na siderúrgica, é essa? Não, não, não em Volta Redonda é a siderúrgica, não. É. Vamos lá, milhares de operários, a gente fazia o espetáculo no meio dos operários e tal. E uma versão de Electra de Sófocles. E era uma versão modernizada, então as bigas na verdade eram carros de corrida e não sei o quê, eu tenho vagas lembranças. A mulher do Gastão trabalhava com a gente nessa época. E quando eu fui, depois disso nós fundamos aqui no Rio de Janeiro um grupo que eu acho que é um grupo importantíssimo na história do teatro carioca. Nós fizemos muito poucas coisas porque foi um teatro muito breve, mas nós fizemos Sartre, nós fizemos o Mortos sem Sepultura , trabalhei no Mortos sem Sepultura com vários atores que ainda estão vivos por milagre, um deles é o Peréio, o Aldo de Maio que já não está aqui mais, o Ary Koslov, a Têtê Medina, quer dizer, já eram pessoas que depois iam seguir com o teatro, e o Grisolli dirigiu como o Maciel também dirigiu. E depois então, na obra, na obra de reurbanização ali no Largo da Carioca esse teatro que era um barracão, era um barracão, é o teatro que eu mais gostei de trabalhar na minha vida. Era um barracão de madeira, e uma arena de 3 lados. Era espetacular. E aí, então na verdade, a gente tinha teatro, eu tinha teatro na veia. Eu tinha teatro na veia, e eu tinha feito experiências, tinha feito pouquíssimas, mas já tinha feito algumas experiências no teatro que me mostravam que o teatro era um espaço de liberdade. Por que é que o teatro era um espaço de liberdade? Por que era um teatro da recriação. Você, quer dizer, o universo teatral, ele era separado, obrigatoriamente por uma questão de linguagem mesmo do universo real. É o universo da dramaturgia, o universo da invenção. Então, lá dentro da escola, eu acho que isso, eu nunca fiz um espetáculo dentro da escola, eu queria muito fazer. Eu vi espetáculos que foram montados lá que eram sensacionais. Espetáculos em cima da piscina, montar um palco em cima da piscina. Nunca tive recurso para fazer nada disso, mas eu acho que, e também as apresentações musicais, as apresentações de, as leituras de poesia e as performances, e as projeções de cinema que a gente fazia lá, eu te contei que eu vi lá um show do Tim Maia. Eu vi lá um show do Tim Maia, eu e a torcida do Flamengo, tinha gente pra burro lá, tinha gente pra burro, era um futum inacreditável, quer dizer você. Tinha o palco montado do lado de lá da piscina e aquilo tudo era coalhado de gente. Eu vi projeções de cinema lá, eu vi, assim como vi filmes do Santeiro, vi filmes do Rosenberg e tal, eu vi filmes do Glauber lá, vi muita coisa, e a projeção era feita lá em cima, tipo eu estava lá em cima, perto da torrinha lá em cima, a tela, sensacional, era um espaço de experimentação, e as pessoas, e era um espaço de convívio. Evidentemente, que quando você faz isso, você tem sempre um flanco muito aberto então, quer dizer como é que você separa o mendigo do libertário, entendeu? Então tinha um pouco demais de gente que ficava por ali, jogada, largada, se drogando, deitada pelos cantos. Então isso era uma questão que a gente tinha de lidar e de uma certa maneira na minha cabeça o que se poderia fazer não era fechar ou proibir mas, de ter um pouco mais de controle, pelo menos nos horários em que a gente estava trabalhando, porque a pintura sempre foi, continua sendo feita hoje, era feita em baixo com luz natural, feita em baixo dos arcos. Então eu falei dessas pessoas que eu conheci, quando entrei lá e reconheci essas pessoas todas e foi uma frustração enorme quando acabou, eu me lembro, quando, eu tenho lembranças assim incríveis de reuniões lá dentro do banheiro, onde é a sala do teu pai, da sala do Gerchman, a banheira da Besanzoni e a gente levava muito a sério isso. Eu tenho, eu não me lembro de tudo, quer dizer é muito tempo, entendeu, mas eu tenho, eu sei que eu tenho material de entrevistas que eu dei lá na escola sobre o meu trabalho fora da escola e dentro da escola da época.
CLARA: E você acha que vocês tinham noção da importância e da qualidade desse trabalho que vocês estavam fazendo lá, porque era um time de primeira, todo o mundo passou por lá. Até hoje passa. Mas todo o mundo...
MARCOS FLACKSMAN: ... eu acho que a gente, eu não sei se a gente tinha noção da importância, essa coisa da noção, até hoje eu não tenho noção da importância para falar a verdade. Quer dizer, não sou eu, eu acho, não tenho como falar da importância disso. Eu acho que tinha algumas importâncias evidentes e físicas e mensuráveis, como por exemplo de ser um espaço de exercício da liberdade. O que era uma coisa, hoje por exemplo, você sai, quer dizer uma das coisas que falaram dessas manifestações ridículas que houveram, as 2, uma patrocinada pelo PT com sanduiche não sei quê, todo o mundo de vermelhinho, camiseta, deve ter sido distribuída, todo o mundo uniformizado. A gente não estava uniformizado, gente era contra uniformizar as pessoas, nós éramos absolutamente, isso era o nosso mundo do outro lado. Quem andava uniformizado estava do outro lado. E essa manifestação ridícula das pessoas uniformizadas também de camisa da seleção é ridículo. A gente não tinha nada a ver nem com um, nem com outro entendeu? Nós éramos libertários, nós éramos a favor da liberdade individual e nós éramos aficionados e devotos e, da liberdade de criação. Nós estávamos ali para estimular as pessoas a criar livremente em vários segmentos ligados a maior parte deles, às artes visuais. Por que era uma escola de artes visuais.
CLARA: E você tem algum causo?
PEDRO: Eu queria perguntar uma coisa a respeito disso. Mas quando você fala nós, quem eram essas pessoas? Era um grupo grande, você acha que esse sentimento que você chama libertário ecoava na tua geração, ou era uma coisa circunscrita a essa galera?
MARCOS FLACKSMAN: Não, não era uma coisa circunscrita, o que acontece é o seguinte, tinha pessoas, eu por exemplo fui contratado, eu devia ganhar uma miséria mas não importa. Todos nós ganhávamos. Mas a gente, nós fomos contratados, eu era contratado para fazer isso, eu tinha horário, a minha oficina tinha horário, tinha de ter, é impossível, como é se reúne as pessoas. Mas as pessoas circulavam, então o pessoal, o núcleo de professores, a gente não chamava de professores, a gente chamava de, não me lembro se coordenador...
CLARA: ...encenadores?
MARCOS FLACKSMAN: Não, era coordenadores de oficina, ou estimuladores, a gente não queria usar, porque nunca fui professor.
CLARA: O meu pai falava que os alunos não eram alunos, eles eram usuários, e que os professores não eram professores, eram orientadores, esclarecedores...
MARCOS FLACKSMAN: ... é, orientador também é, orientador não gosto muito não, eu prefiro coordenador, mas de qualquer maneira, não importa. Tinha um grupo de pessoas que coordenavam e organizavam essas oficinas e função de um resultado requerido, quer dizer, eu exigia o trabalho das pessoas como tem que ser numa oficina dessas, agora, respondendo à sua pergunta é o seguinte, independentemente deste grupo de professores que por uma coincidência de repente, ou por competência do próprio Rubens ou por sorte, era um grupo altamente criativo que depois durante a sua existência continuou a viver da sua criatividade, quer dizer, não sei se 100% mas muito perto de 100% das pessoas envolvidas. Mas não só isso como aglutinava o caráter da escola, o clima, a atmosfera que reinava na escola, aglutinava muita gente, tanto que eu me lembro que quando abria inscrições para essas oficinas, eu tinha, sei lá, eram centenas, e a gente podia, eu tinha um limite de 25 pessoas, senão não entrava dentro da sala, as pessoas ficavam do lado de fora, então. Mas aglutinava não só nos horários, não só em torno das oficinas, era em torno da ideia libertária, em torno da ideia da cultura, então dali surgiram, isso na exposição do Hélio, que foi montada agora na Casa Daros, mostrava. Surgiram daí publicações, publicações de poemas, teses, as pessoas falavam, você vê eu sou verborrágico, todo o mundo lá era, tem gente mais verborrágica do que eu, por incrível que pareça. Então todas as pessoas tinham discursos, e tinha essa coisa um pouco do período e do, que seria um período que se eu tivesse de escolher uma ilustração, usando o meu exercício, para esse período eu usaria aquele cartaz famoso do Hélio Oiticica que diz "sou marginal, sou herói". Quer dizer, eu não me achava um herói, mas eu me achava um marginal. Nós todos nos achávamos marginais, mas não eram marginais que iam assaltar você por exemplo na porta do Parque Lage. Isso a gente não fazia. Mas éramos marginais porque a gente queria poder exercitar todos os tipos de artes ligadas às artes visuais, porque era uma escola de artes visuais com liberdade total de escolha, quer dizer não existia nada que seria enquadrado dentro de cânones didáticos existentes ou de cânones inventados por uma nova esquerda digamos, ou um novo pensamento. Quer dizer, não era uma igreja também. A gente não fundou uma igreja, quero deixar claro, porque se não, às vezes junta essas pessoas, "mas você é um gênio", "não o gênio é você", "não, olha ela, ela é gostosa, gostosa e gênia", "mas que coisa, quantos gênios, nós somos todos gênios, aí vira uma Igreja Universal do Reino de Deus. Não tinha nada disso, ninguém se achava gênio, ninguém se achava porra nenhuma e não era uma igrejinha, então, o fato de não ser uma igrejinha, acabava atraindo para lá muita gente que se manifestava lá e que não era de lá. Os próprios poetas marginais encontraram no Parque Lage na época uma casa, que eles não tinham mas nenhum deles, que eu me lembre, nenhum deles, quem andava por lá e dava umas aulas não sei exatamente qual era o curso dela era a Heloísa que patrocinava por causa daquela coisa das letras, patrocinava um bocado esse pessoal. Muita gente surgiu na época e teve ligações assim, uma delas, a Ana Cristina César por exemplo que é uma poetisa pouco conhecida e que teve uma exposição razoável montada no Instituto Moreira Salles e tal, ela nunca esteve lá, nunca deu aula, mas ela fazia com certeza parte dessa atmosfera que vinha, essa lufada de ar que vinha da Escola de Artes Visuais. Causos, eu tenho, eu me lembro, as memórias que eu tenho assim era, uma das memórias que eu tenho era das projeções noturnas de cinema que eram absolutamente espetaculares, sensacionais, aquilo ficava lotado. De alguns momentos de espetáculos que eram performances e declamações de poemas e maluquices em geral, porque tinha muito maluco solto lá. Não prendíamos os malucos nem reprimíamos os malucos, então tinha muito maluco. E também desse show do Tim Maia. Esse show do Tim Maia ficou na minha memória gravado assim, porque foi o único show ao vivo do Tim Maia que eu vi na minha vida, foi lá. E ele deu um show, e ele fez todo um número que ele fazia, não sei provavelmente não cobrou nada, e ele, todo o número que ele fazia nos shows profissionais, toda essa coisa, o retorno, o palhaço, não tem som, bota som, ele fez todo esse número lá, eu não, isso foi inesquecível. Ele fez esse número todo lá. Estava lotado, apinhado de gente, e depois o Parque Lage para nós não era só a casa. Era o parque. Nós não, quer dizer, não tínhamos muito como ocupar aquilo de uma maneira mais, quer dizer se nós estivéssemos na Inglaterra ou no Japão teríamos ocupado de forma muito mais efetiva mas de certa maneira é um território ocupado por nós. E eu acho também que esse momento em que o Gerchman, na verdade, pode-se dizer que o Gerchman foi quem criou essa escola. E criou esta maneira de se instituir uma escola livre. Isso foi criação dele, que exigiu uma certa coragem, ele provavelmente teve muita porrinhação burocrática, que eu desconheço, outras eu conheço, mas uma chateação sem fim, mas por outro lado, era uma coisa que a gente não precisava fazer esforço, não era uma atitude ideológica, não era uma atitude revolucionária digamos assim. Era, mas não era, quer dizer, não era uma atitude de grupo revolucionário armado por exemplo, que nós tínhamos uma palavra de ordem. Ninguém tinha palavra de ordem porra nenhuma, ninguém tinha nada, mas nós tínhamos essa coisa dentro da gente que nós tínhamos conquistado um espaço de liberdade junto com pessoas que a gente considerava que eram jovens como nós, e que nós considerávamos que também queriam conquistar a mesma coisa e queriam explorar a mesma coisa, e isso aconteceu durante um período, isso foi uma centelha. Foi uma centelha que eu acho que deu frutos, podia ter dado mais. Hoje em dia eu desconheço o funcionamento da Escola de Artes Visuais, não sei como é que funciona, tive lá rapidamente outro dia conversando com uma moça que não é mais a diretora. Foi umas diretoras. Me pareceu muito simpático e tal, e de vez em quando me dá vontade de voltar para lá para desenhar naqueles corredores, entendeu? Memórias afetivas. Mas era, era uma coisa, quando a Clara chegou aqui, a Clara falou, é "não você pode falar da coisa técnica, pode falar da coisa afetiva". Todos nós tínhamos uma relação extremamente afetiva com aquela, com aquela escola. Muito afetiva. Muito afetiva porque falava, falava do nosso espirito, falava de quem nós éramos. Eu chegava lá, me sentia muito mais protegido como se fosse num útero, do que dentro do teatro. Eu sempre me senti muito protegido dentro teatro. Eu entro no teatro e me sinto muito protegido. Deve ser assim com os cardeais que não são pedófilos, que de entrar numa, que é raro, mas de entrar numa igreja e se sentir protegido. Eu sempre achei, eu quando entro numa igreja, não sou católico não, mas de vez em quando eu entro numa igreja, e quando viajo entro muito em igreja, e algumas sinagogas grandes que tem na Europa e tal, você, eu tenho o mesmo sentimento de proteção. Quer dizer, você está num lugar sagrado entre aspas. A escola para nós como o teatro para mim, como um set de cinema para mim, sempre foi um lugar sagrado.
BERNARDO: Como é que era o Gerchman? A pessoa, o ser humano Gerchman, o amigo?
CLARA: Pode falar mal.
MARCOS FLACKSMAN: Não, não vou falar mal. O Gerchman era uma doce figura como diria o Nelson Rodrigues. Era um sujeito que, altamente inquieto, criativamente, e isso é um vírus que dentro da minha geração atacou todas essas pessoas de quem eu falei. Inclusive a mim. Então, eu por exemplo, tenho, eu já estou com 70 anos, eu jamais, se você me dissesse, "eu tenho um, conheci um cara de 70 anos, para mim hoje, eu diria puta merda esse cara deve estar deitado no chão, ele não deve se mexer. Para mim 70 anos era uma pessoa morta. Uma pessoa de 70 anos era uma pessoa que, se não tivesse morrido, já devia ter morrido. Hoje em dia, quer dizer, eu espantosamente, como eu disse no começo aqui. O Peréio também, o Peréio está com 74, isso é uma coisa anti, isso vai contra a natureza o Peréio estar vivo. Mais do que, eu também, eu, a minha sobrevivência vai um pouco contra a natureza, Então a gente tinha, essa primeira, esse olhar jovem e imortal. Nós éramos jovens e imortais. E isso era indiscutível. E nós éramos jovens e imortais que transitavam, que admirávamos, e eu tenho a certeza que o Gerchman também, que admirávamos a cultura. A herança cultural. Quer dizer, a gente não abria mão de beber na herança cultural. Ele foi para os Estados Unidos, eu fui para a Europa, eu estive lá com ele lá em Nova Iorque, então nós nunca abrimos mão disso, nós nunca fomos estado islâmico, a gente não, eu nunca tive vontade de pegar uma marreta e sair marretando a Vênus de Milo lá no, entendeu, nunca tive essa vontade. Eu posso não ser um adorador do David, de ficar meu Deus, ficar de joelhos. Não fico de joelhos, mas a herança, todos nós, e o Gerchman também, prezou a herança cultural e transformou a herança cultural. E o Gerchman tem uma coisa, embora ele não tivesse feito teatro, não sei se ele fez alguma cenografia, acho que fez, acabou fazendo, mas o Gerchman tinha essa coisa também de focalizar um pouco esse exercício que eu disse que eu fazia que era a coisa do cotidiano e do insight do cotidiano, ele focalizava no cotidiano. A arte dele era uma interpretação de uma visão do óbvio, do simples. Não era você inventar um ser que não existe, eram os seres que existiam, então ele falava das pessoas, dos criminosos, das pessoas que tinham cometido crimes espantosamente, quer dizer, levados pelo mistério, o futebol, a sexualidade, e essa coisa do Concretismo também, essa coisa que ele teve uma fase muito concretista, na época, nos anos 70 principalmente, essa coisa do ar. E a estética, ele era um esteta de mão cheia, quer dizer, ele era um criador de mão cheia, quer dizer era um artista. Então, eu acho, e ele era uma cândida figura com as angústias que todos nós tivemos a vida inteira. E nele eu sentia muito forte, de vez em quando, eu não era tão próximo do Gerchman assim, mas eu encontrava sempre ele e sentia essa angustia muito forte, que era a angústia da subsistência. Ele também teve muito filho. Quantos filhos o Gerchman...
CLARA: ... somos 4.
MARCOS FLACKSMAN: 4. Eu tenho 5. Então a gente também, ele também tinha muito filho e a gente sempre teve essa, como é que a gente vai subsistir, quer dizer, como é que eu vou sobreviver. Você pinta uma coisa, ou você cria uma escultura, como é que você dá um valor para aquilo. Você sabe quanto é que custa o saco de arroz. Porque isso o mercado determina quanto é que custa, uma latinha de Coca-Cola. Mas o seu trabalho é muito complicado. Então, ele, eu acho que ele, como várias pessoas, eu inclusive, sempre fomos, tivemos um bom pedaço da nossa ansiedade ligada a isso, à subsistência. Embora, eu vivi na França, trabalhei na França também, trabalhei em escritório de arquitetura na França para subsistir e tudo. Você tem muito mais proteção profissional, principalmente se você tem formação acadêmica nos países mais civilizados, digamos assim, países de primeiro mundo. Mas eu nunca senti muito falta disso não. Eu acho que no fundo, o fato de você não ter nenhuma regulação, quer dizer para você ter uma contrapartida, você tem de ser regulado. Hoje em dia para fazer qualquer coisa e você poder ser patrocinada, você tem de passar por uma seleção de, por uma aprovação sei lá de quem. Tem um zé mané, um cara, sei lá quem porra esse cara é, o que é que ele tem na cabeça, se não é só merda, que vai pegar o seu projeto e vai aprovar ou não vai aprovar. Eu já tive projeto que eu entrei, projeto de livro que eu não fiz, infelizmente, uma das coisas que eu lamento, projeto de livro do meu trabalho, mas que eu queria fazer como eu queria fazer. Então entrei, tinha uma moça editora, uma moça de literatura de livros de arte que se interessou, então montou um projeto, fizemos um projeto. Isso foi lá para o Ministério da Cultura e eles disseram que não, que não valia o que eu estava dizendo, que valia tanto. Aí eu liguei para a FUNARTE e falei "olha, não sei quem foi o palhaço que disse isso, mas faz o seguinte, manda a mãe dele trabalhar aqui, manda a mãe dele fazer o livro, aí a mãe, tem de vir a mãe dele entendeu, porque pelo visto ele não está, então esse tipo de coisa, quer dizer, quando você, a gente tinha muita ansiedade pela sobrevivência mas ao mesmo tempo, a gente, quer dizer, botava as mãos para o céu se a gente pudesse ter contato, acesso direto ao consumidor. Que é um consumidor que normalmente você não tem acesso direto. Quer dizer, quem faz artes plásticas tem acesso através de galerias, de atravessadores de todos os tipos e tal. E quem faz teatro está fodido, então. Aí é através do produtor, e se você quer produzir suas coisas como eu gostaria de fazer um espetáculo, eu queria agora, eu tenho um projeto pessoal agora, para você ter uma ideia, montar um espetáculo simples, uma peça que já foi feita no Brasil há 50 anos atrás de um autor americano, genial, que se passa logo depois da crise econômica nos Estados Unidos. Então, é uma coisa que é bem parecida com o que a gente vive aqui hoje. Parecida até a página 2, mas é parecida. Então se passa dentro de uma sala, de um apartamento, de classe média baixa digamos, de uma família judia lá no Bronx. Eu falei para os meus filhos, eu queria fazer um espetáculo para vocês verem, para vocês poderem ver como é que a gente fazia teatro. Como era o nosso teatro. Eu fiz teatro a minha vida inteira. Meus filhos foram criados com isso. Meus filhos foram criados com o dinheiro que eu ganhei fazendo teatro. Não foi fazendo arquitetura. A minha arquitetura, que eu gosto muito de arquitetura do espetáculo, foi sustentada pelo teatro. Eu me lembro que a minha família na época que eu disse que ia fazer teatro, "vai viver de quê", aquela, aquele dramalhão que se jogavam no chão e tal, estava cagando, foda-se, mas eu, aí quando foi da arquitetura, "meu Deus, Mazeltov, agora sim, está salvo". Salvo, o caralho. Eu para fazer arquitetura é porque eu me dei bem no teatro. Tinha trabalho sem parar no teatro e com isso eu pude fazer arquitetura, quer dizer, é um polo invertido. Mas eu acho que o Gerchman tinha esse traço também, quer dizer, ele tinha o seu valor de mercado mas, e ele trabalhou com essas coisas todas, eu nunca conversei com ele sobre a coisa do empresariado, das artes plásticas mas eu sei porque eu tenho gente em casa que sofre com isso. Era um sujeito, era um sujeito especial, era uma pessoa especial porque era um artista, era libertário, era engraçado, que é que precisava mais, e era bonitinho até o Gerchman. O Gerchman era bonitinho, tinha uma cara de galãzinho e tal, se dava bem. O Gerchman...
BERNARDO: ... fazia sucesso com a mulherada.
MARCOS FLACKSMAN: Se dava bem.
CLARA: 4 filhos.
MARCOS FLACKSMAN: Se dava bem, se dava bem. A gente em geral, nós nos dávamos. Porque nós éramos muito jovens, nós éramos muito garotos.
CLARA: Você tinha 30 no Parque Lage? Papai tinha 33.
MARCOS FLACKSMAN: Em 70 e...
CLARA: 5.
MARCOS FLACKSMAN: 5. Em 70? Espera aí, 44 e 10. 54, 64, 20, 74, 31, eu tinha 31, eu era 1 ano mais novo que o Gerchman e 1 ano mais novo que o, eu era o mais novinho, eu era o mais novinho de todo o mundo. Hoje eu, quando comecei no cinema em 67, fui fazer um filme com o Leon Hirszman, eu não sabia nada de cinema, nada. Por que é muito irresponsável. As pessoas são muito irresponsáveis. Então, eu fui fazer, aprendi muito, aprendi muito com um cara que é meu amigo até hoje que é um fotografo absolutamente sensacional, e mora em Paris, o Ricardo Aronovich aprendi e tal, mas a gente começou muito cedo. Eu tinha 21 anos de idade. Era muito cedo, a gente começava muito cedo a fazer as coisas. Eu me profissionalizei e ganhei esse prêmio de viagem com, eu tinha 20 anos. Então, essa minha geração toda começou muito cedo. É uma característica dessa geração. E em 68 que teve, e aí é uma outra conversa, mas que a escola está muito envolvida nisso como reflexo disso, em 68, houve um movimento libertário, um movimento que explodiu no mundo inteiro. Começou em Chicago, nas universidades, depois foi Londres, eu estive no Swinging London nos anos 70, o teu pai foi para Nova Iorque nessa época também, e neste período foi um período onde a arte brasileira produziu o Tropicalismo, tem muita gente que esteve na escola, ligado ao Tropicalismo, eu inclusive fui ligado, marginalmente, mas fui ligado ao Tropicalismo. E então, a escola, esse movimento, era um movimento de alta efervescência entendeu? Era de uma alta efervescência cultural. Com essa geração. Claro que tem outras gerações, as gerações estão aí, tem agora a geração de agora, mas o que eu conheço, a geração que eu conheço foi essa e era altamente explosiva. Não era uma geração de, e nós gostávamos de tudo, nós gostávamos de tudo, realmente, e éramos libertários em geral, em todos os tipos de comportamento também. E foi isso que fez com que a escola, um dos motivos que fez com que a escola fosse fechada, infelizmente.
PEDRO: Posso fazer uma última...
MARCOS FLACKSMAN: Pode.
PEDRO: É só por que isso é uma parte na nossa pesquisa que é um tanto nebulosa, que é o Gerchman em Nova Iorque. Você falou que...
MARCOS FLACKSMAN: Estive lá.
PEDRO: Se você conseguir lembrar qualquer coisa assim...
MARCOS FLACKSMAN: ... olha eu me lembro assim, eu me lembro do loft, me lembro do loft dele, achei meio escuro o loft dele. Falei para ele, era um loft grandão. E me lembro que nessa época ele estava nessa fase concreta dele, ele estava fazendo o ar por exemplo, eu me lembro, no chão do estúdio. Um outro que depois ele botou na água, eu não me lembro como é que ele fez, porque teve uma época de super 8 também, foi uma época em que as pessoas começaram a, tinha uma enorme produção de super 8. O próprio Gerchman deve ter feito super 8, todo o mundo fez super 8 na época, então se misturava muito. E foi uma época em que a Fábrica do Andy Warhol funcionava lá em Nova Iorque também. Então tinha essas rupturas barra pesada, que lá era uma, era barra pesada, aquilo ali era uma suruba 24 horas por dia. O Gerchman não era assim não, não tinha nada disso não, mas quer dizer, isso existia, e de uma certa maneira era caldo da mesma cultura. Eu reencontrei, estou me lembrando agora que reencontrei o Gerchman anos depois, tivemos um convívio agradável e rápido também, quando o António Pedro foi secretário de cultura do Brizola, da época do Brizola, ele foi secretário de cultura de Volta Redonda, eu junto com o Caique Botkay fizemos um, tentamos arregimentar pessoas e fazer, estabelecer uma espécie de curso de cursos livres também. Só que era em Volta Redonda, é 2 horas e meia daqui. E fizemos isso, e eu me lembro que na época do ter estado com o Gerchman que montou um, não sei nem se existe ainda esse... ainda existe? O do, o painel dele ao ar livre lá...
CLARA: ... foi 88, 89.
MARCOS FLACKSMAN: É, pois é, já foi anos depois. O último, quer dizer aí a gente esteve junto bastante. E encontrava ele por aqui, por ali, e falei com ele pouco antes dele morrer, e ele evidentemente não acreditava que ia morrer, e eu também não acreditava que ele morreria sob hipótese alguma, a gente não estava na turma que podia morrer, nós estávamos eliminados dessa turma que podia morrer. Mas já morremos vários. Não morri eu ainda, mas morremos vários infelizmente. E ele foi um deles, eu fiquei bastante triste, bastante sentido, mas, e ele estava em São Paulo na época porque ele estava fazendo tratamento lá, então eu vi ele muito pouco, falava pelo telefone, o ultimo telefonema que ele me deu longo, o último dos ultimas, as últimas vezes que ele me ligou foi para falar da Clara. Que a Clara estava com interesse em artes cênicas, ele queria que eu desse uma guarita, tomasse conta um pouquinho, pai é pai. E eu...
CLARA: ... e eu vim fazer seu curso.
MARCOS FLACKSMAN: É, ela veio fazer meu curso, me conheceu e desistiu rapidamente desse convívio mais estreito, mas ela sabe que eu sempre gostei muito do pai dela.
CLARA: Ney, era uma pouco o que a gente começou a falar de forma desordenada lá embaixo, que já foi ótimo. Mas, ouvir um pouco o seu depoimento sobre esse encontro que vocês tiveram em 75, que foi frutífero...
NEY MATOGROSSO: Eu só não me lembro como é que começou essa história. Eu só me lembro de estarmos nós 3, eu, o Gerchman e o Luiz Fernando, conversando já sobre o assunto. Mas eu não me lembro como começou. E aí marcamos de ir lá prá Filgueiras que era um sítio que o Fernando tinha lá na Baía de Sepetiba. E o Fernando escolheu o lugar que, em determinada hora do dia, surgia uma ilha de areia, no meio da Baía. E quando ela surgia, não tinha nenhum vestígio humano, não tinha nada, só tinha sirizinhos e bichinhos que andavam e aves que vinham comer esse bichinhos que surgiam, esses caranguejinhos. E lá a gente ficou muitas horas. Eu comecei a cavar uns buracos para eu entrar como se fosse um bicho, tudo porque a gente entra na onda do lugar. Tinha aqueles caranguejos saindo da terra. Aí eu disse, “que tal se a gente fizesse um buraco e eu dentro do buraco?”. Foi uma das ideias, mas nós fotografamos muito mais que isso. E foi o que acabou ficando na capa do disco. Era um buraco e eu dentro do buraco saindo como um bicho estranho. Nós experimentamos muitas coisas ali. Ele decidiu por aquela foto, levou a foto e apareceu com um projeto de capa que eu achei maravilhoso. Era um papel normal, bege, sem tratamento, rústico. E aí surgiu o tal do símbolo. Ele já veio com aquele símbolo. Que eu vi o símbolo, já gostei da ideia. Disse, “o que é esse símbolo? A gente vai botar um símbolo desse.” Aí ele disse, "não, ele tem um significado, ele significa água do céu pássaro". Eu disse, "mas não é um significado explícito, água do céu pássaro?" Mas eu gostei da estranheza. E ficou sendo o nome do disco Água do Céu-Pássaro. Depois, durante o show, as pessoas conheciam e se referiam como Homem de Neandertal, porque era a música que abria o show e era mais reconhecível. A primeira tiragem, quando você abria e tirava aquela faixazinha com meu nome recortado, tinha um pó de incenso dentro que caía. Mas era um cheirinho muito bom. É muito interessante poder fazer essas coisas porque ninguém mais perde tempo fazendo isso, um artista como o Rubens fazendo uma capa de disco. Eu não sei nem se ele fez outra antes, ou se depois deve ter feito. Mas prá mim aquilo era um prestígio ter o Rubens fazendo a minha capa. Eu era um cantor que estava recomeçando, tinha saído dos Secos e Molhados, era o meu primeiro trabalho sozinho, e ter o Rubens fazendo a minha capa prá mim era um prestígio enorme.
CLARA: Ele como artista gráfico gostou muito da parceria. Marcou pra ele.
PEDRO: Esse disco seu tem uma coisa que acho que faz um paralelo interessante com o trabalho do Rubens. O Rubens tinha voltado de Nova York, tinha fundado a Escola do Parque Lage, não sei se ele já estava no Parque Lage nessa época ou ainda não.
CLARA: Acho que não, um pouquinho antes.
PEDRO: Um pouquinho antes. Mas o Rubens vinha muito com essa ideia que ele chamou de nova geografia que era como se fosse uma inversão dos polos, um olhar voltado prá América do Sul, tirar o protagonismo do Norte.
NEY MATOGROSSO: Que era o meu também. A gente tinha essa afinidade, voltar para América Latina.
PEDRO: O quê que tinha nessa época? Por que você acuou não só no seu trabalho? Como essas temáticas aconteceram, digamos, em várias cabeças pensantes daquele momento de uma forma orgânica? Não sei se era uma coisa que vocês combinavam fazer...
NEY MATOGROSSO: Não tinha nada combinado. Na verdade, eu tinha aquele figurino com os chifres nas costas. A ideia era que se eu fizesse assim, ele subia, se eu soltasse, ele caía como uma asa prá trás. Era de pele de macaco. Eu disse para o artesão que fez aquela roupa prá mim, "olha, eu quero umas asas de chifre, só que eu quero aquele chifre que faz isso." E ele foi atrás desse chifre, conseguiu e fez a roupa que tinha um efeito, era um impacto aquela roupa. Então, era cada um fazendo uma coisa, mas o meu interesse era América Latina. Ainda mais naquela época, eu tinha horror dos Estados Unidos. Eu sabia que os Estados Unidos eram os responsáveis pela ditadura no nosso país. E eu canto em espanhol no disco. Então, era uma coisa muito voltada mesmo para cá, para a América do Sul. E acho que então calhou com o que ele pensava e juntou tudo isso. Foi tudo muito prazeroso. Todo o nosso encontro foi muito prazeroso. Depois disso, nós ainda fizemos um ensaio fotográfico na Floresta da Tijuca com o Ivan Cardoso. Eu mostrei prá ela uma foto que tem lá embaixo. O Ivan tem muitas fotos desse ensaio que nós fizemos que foi muito engraçado. Eu tinha uma tanguinha de pele de onça que eu usava no início do show, só ela, claro, com tapa-sexo por baixo, mas era só uma tanguinha. Depois eu vestia uma calça de pele, porque não tinha essa coisa de politicamente, não existia isso. Podia usar pele de animal, não existia isso. E aí nós fomos e ele queria que fosse só com aquela tanguinha. Eu disse, "tá bom, eu fico só com ela." Quando chegamos lá no meio da mata, tinha uma árvore imensa, meio inclinada. Ele disse, "você sobe nessa árvore?". Eu disse, "subo." E aí fui igual a um macaco, subindo naquela árvore e o Ivan fotografando para ele. Porque estávamos nós 3, eu, o Rubens e o Ivan. E eu gostei muito desses dois contatos porque era tudo muito solto, na hora surgia. Ninguém veio com nada preparado. A única coisa que veio preparada era o meu figurino. Na hora em que eu vestia aquele figurino o que ia acontecer ali ninguém sabia. Nem ele, nem eu. E fomos inventando. E nas fotos, também. Quando ele pediu prá eu subir na árvore, eu disse, "claro que eu vou subir na árvore". Era uma árvore enorme. Eu disse, "subo sim." Só que eu não subi assim. Ela era assim, eu subi igual um macaco, me agarrando por ela e subindo. E tem as fotos que o Ivan fez ali, a que eu tenho eu estou no meio de umas folhagens que as pessoas nem entendem que é uma pessoa. Ali está mais evidente porque ele coloriu. Então, a minha pele tá colorida. Quando você via a foto, você não entendia o que era, você via que tinha um rosto de uma pessoa no meio de umas folhas. Aí você começava a prestar atenção e via que tinha um corpo seminu também, camuflado.
BERNARDO: Eu queria tentar buscar um pouco antes desse momento da foto pro disco, da viagem, pedir prá você tentar lembrar como foi esse contato, como você conheceu o Gerchman.
NEY MATOGROSSO: Eu já falei prá ela lá embaixo, eu não lembro como foi. A minha memória já é daí. Eu não sei como ele chegou, por via de quem ele chegou. Eu tenho impressão que foi pelo Luiz Fernando que era o fotógrafo. Porque a Lulli era envolvida com Artes Plásticas, estudou na ESDI, o Luiz Fernando, também. Então, eles tinham uma ligação com Artes Plásticas. Eu tenho impressão que foi por aí que nos aproximaram eu dele.
BERNARDO: Você tinha alguma ligação com Artes Plásticas também antes?
NEY MATOGROSSO: Não, eu não tinha ligação, mas sabia muito bem da importância do Gerchman na Tropicália, aquilo tudo a gente sabia, mas eu não tinha um contato com Artes Plásticas. Mas eu achei ótimo porque eu quando era criança desenhava muito, eu queria ser pintor. Meu pai vetou. Ele disse que não queria filho artista. Então, prá mim me aproximar de um artista plástico, um pintor como ele era uma coisa quase que natural porque eu tinha um anseio por isso.
PEDRO: A gente tem falado com artistas dessa época e todos são unânimes em dizer que era uma coisa que hoje em dia é mais difícil. Acontece em outro plano, mas tinha um convívio muito íntimo entre artistas de música, artes visuais, poetas. O que você acha que propiciava esses encontros?
NEY MATOGROSSO: O que propiciava esses encontros era uma praia no Rio de Janeiro chamada Posto 9. Todas as pessoas se encontravam no Posto 9. Qualquer artista, qualquer intelectual você encontrava na praia. Isso acabou. Mas houve uma época em que era um trânsito de artistas de todas as áreas na praia. Seu pai frequentava a praia?
CLARA: Pouco...
NEY MATOGROSSO: Mas ele fazia parte daquele contingente que frequentava ali, mesmo que não fosse um frequentador, mas certamente era amigo da maioria das pessoas ali.
CLARA: Sim.
NEY MATOGROSSO: É.
CLARA: E você teve alguma passagem lá no Parque Lage, algum show que acabou fazendo...
NEY MATOGROSSO: Eu fiz um show no Parque Lage sim. Eles taparam aquela piscina. Qual era o show? Como é que eu não lembro que show que era. Foi maravilhoso porque era um lugar total liberdade. A coisa que a praia oferecia que era total liberdade em todos os sentidos, o Parque Lage também oferecia, em todos os aspectos, para as pessoas que frequentavam os cursos. E fui fazendo show lá, que beleza, que cenário maravilhoso. Do meu cenário mesmo eu usei pouquíssima coisa. Era o Destino de Aventureiro, o show que eu fazia no Circo Tihany. Eu fui fazer lá dentro. Então, usei apenas uns cenários. Num determinado momento, quando abriam as paredes de alumínio, tinha um céu estrelado que era d´um tecido preto com lantejoulas. Usei apenas esse céu estrelado como cenário do show no Parque Lage.
BERNARDO: Sabia que no ano de 75, ano dessa capa, o Gerchman andou se embrenhando pelos interiores do Mato Grosso, que ele tinha um projeto de fazer um balé?
NEY MATOGROSSO: Não, não sabia.
BERNARDO: Em 75, ele fez uns super oito. Tem muito material dele lá no interior, muito desenho dele. Ele foi falar com os índios também, tem umas fotos...
CLARA: Ele faz umas pesquisas com poesia também. Vocês tiveram juntos lá em alguma?
NEY MATOGROSSO: Mato Grosso, não. Eu falei prá ela também que ele filmou essa sessão de fotos que nós fizemos. Tanto que eu pedi pro Joel ir atrás dela prá ver se tinha isso com ela porque era muito interessante ter imagens desse ensaio fotográfico. Ele filmou, mas não achou em lugar nenhum.
BERNARDO: Tem essa questão que o Pedro está falando do Torres Garcia, dessa nova geografia, dessa busca. Mas Gerchman também estava muito preocupado, que é uma coisa que também os outros artistas falam, porque era um momento de entender o Brasil. Prá entender o Brasil era necessário voltar pro mundo e entender a sua própria origem, a origem do povo. Então, Gerchman me pareceu muito preocupado com as raízes dele. Eu acho que isso era um sentimento coletivo, não era?
NEY MATOGROSSO: Meu sempre foi, a começar pelo meu nome que evocava a um Centro-Oeste totalmente desconhecido então. Quando falava Ney Matogrosso, as pessoas já assim, "Mato Grosso?” Quê que era Mato Grosso? Eles achavam que era índio e cobra, não existia nada além disso. A referência era essa. Meu avô era argentino, minha avó, paraguaia. Quer dizer, eu não tinha como não me voltar para isso porque tá no meu sangue. No primeiro disco, eu já cantei Coubanakan Coubanakan, que era uma música que fez muito sucesso na década de 40. Espanhol, eu canto sempre em espanhol, eu gosto, é a única língua que eu ouso cantar porque eu gosto e entendo. Então, não canto em outra língua a não ser português e espanhol. Mas eu acho que era um momento daquela ditadura escrota, horrorosa. E a gente tava querendo se entender dentro daquilo tudo.
CLARA: Pois é, e vocês foram tão ousados. Vocês conseguiram um espaço de liberdade maravilhoso.
NEY MATOGROSSO: Sim, por incrível que pareça. Um dia desses, eu vi o Mautner falando uma coisa que eu fiquei tão encucado. O Mautner disse eu vi num programa, numa série que o governo brasileiro, o governo militar permitiu aquela liberdade, aquela liberação aqui na Zona Sul e nessa praia especificamente como uma experiência. Eu gostaria muito que ele me explicasse mais, já que ele sabe disso. Porque, paradoxalmente à ditadura, nós tínhamos uma liberdade que não temos mais, porque as pessoas nem querem ter. Elas são muito mais preconceituosas hoje em dia do que eram, têm um pensamento muito mais conservador. Eu acho hoje os jovens muito mais conservadores, a mentalidade de uma maneira geral é muito mais conservadora do que nos anos 70, quando a gente viveu o auge da permissividade, da loucura e da liberação. E fico muito abismado das pessoas não ansiarem por esse tipo de coisa, estarem satisfeitas com a mediocridade, o que é uma pena.
PEDRO: Na verdade, de todas as pessoas que a gente entrevistou, pessoas maravilhosas assim como você, grandes artistas, a gente conseguiu ter acesso a eles, muito porque todo mundo tinha simpatia pelo Rubens, e todo mundo, é unânime isso e isso para mim é o maior ponto de interrogação, eu não consegui entender ainda na verdade. Tudo bem, os hippies viraram yuppies, mudaram para Wall Street, como disse o Jards Macalé quando a gente foi entrevistá-lo.
NEY MATOGROSSO: Sim
M: Mas o mundo mudou e tal, mas o que aconteceu com as pessoas?
NEY MATOGROSSO: No meio do caminho teve a AIDS. No meio do caminho teve a AIDS, então tudo que tinha se alcançado de liberdade a AIDS fez voltar, porque houve... não sei a idade de vocês, se vocês sabem que isso quando surgiu a imprensa divulgava como um câncer gay. E eu pensava comigo e eu falava quando as pessoas vinham falar comigo sobre isso, eu dizia assim, "gente, isso não existe. Não é um vírus de porra nenhuma no mundo que seja restrito a um grupo de pessoas". E logo logo vimos que não era um câncer gay, porque as mulheres começaram a ter também, então era uma coisa que... aquilo dali... muitos gays casaram naquela hora, olha para você ver a loucura que a coisa... o tamanho da coisa, porque era um preconceito enorme, porque qualquer gay estaria contaminando as pessoas de uma doença, de um câncer gay. Isso nunca existiu. Isso nunca existiu, mas isso foi criado e divulgado. Então eu penso que nesse momento houve um retrocesso enorme do qual as pessoas não se recuperaram até hoje. Eu acho que a grande causa é essa. Imagina, uma doença que atinge a sexualidade do ser humano? O que nós exercitávamos mais naquele momento? Era a nossa sexualidade. Não existia tabu, não existia proibido, sabe? Mas eu acho que a causa é essa, foi essa.
CLARA: É uma pena.
PEDRO: É. Eu, que tenho 33 anos, eu fui muito reprimido por esse aspecto.
NEY MATOGROSSO: Sim, imagina, essa geração toda.
PEDRO: Fui mesmo.
NEY MATOGROSSO: Mais do que as de agora. Porque as de agora ignoram a doença, porque não viram, não sabem e acham que é mais fácil, que é melhor conviver doente tomando um remédio, eu não acho, eu acho que se você pode ter saúde, opte pela saúde. Imagina, não é um sacrifício enorme usar uma camisinha. Mas... então tá, vocês são a geração que sentiu mesmo a cacetada da história. Do, "não, volta, não vai para frente mais, não pode mais ir para frente".
CLARA: Eu queria voltar um pouquinho só no que a gente começou a falar um pouco da América do Sul, América do Norte, porque eu acho isso muito interessante como vocês estavam pensando as mesmas coisas.
NEY MATOGROSSO: O Sangue Latino já era uma letra que falava isso, explicitamente dizia, "os ventos do norte não movem moinhos", que a censura implicou com isso. A censura implicou. Nós sabíamos na época do Projeto Condor, aquela história lá dos militares a gente sabia disso, isso não era segredo. Hoje em dia falam disso como se tivessem descoberto uma coisa que ninguém sabia. Nós sabíamos, nós todos sabíamos disso, que todas as ditaduras foram insufladas pelos Estados Unidos da América. Por medo do que aconteceu com Cuba. Eles tinham medo de perder o controle sobre a América Latina.
CLARA: É, porque o meu pai está justamente voltando dos Estados Unidos, ele fugiu daqui por causa da ditadura com filho pequeno, enfim, aquela coisa, foi para Nova York e foi um desbunde, a gente vê que na formação dele como artista com a comunidade latino-americana...
NEY MATOGROSSO: Sim, e com o desbunde mesmo, que era uma coisa que na América também existia, esse movimento hippie, libertário e de liberdades, isso existia lá e cá. Agora, lá era muito maior, porque lá era...
CLARA: Você esteve lá, você foi junto em algum momento com esse grupo?
NEY MATOGROSSO: Não, não, não. Eu não queria nem conhecer os Estados Unidos, eu era tão... era tão louca essa coisa na minha cabeça que eu estudava inglês, eu escrevia, eu lia e eu entendia, eu nunca consegui falar. Eu tenho um bloqueio de falar, porque aquilo para mim era a última submissão, era falar a língua deles. É doido, porque hoje em dia eu acho que me atrapalha, mas eu não consegui. Eu não queria contato com aquilo, porque aquilo significava o opressor.
CLARA: E você tem alguma coisa que você gostaria de falar, de repente sobre o meu pai, o homem, um caso, sabe alguma...?
NEY MATOGROSSO: Olha, nós não tivemos assim muita intimidade, a gente fez esses 2 trabalhos e éramos assim, eu achava que ele gostava de mim e eu gostava dele, então a gente ficou assim, amigos que se cruzavam de vez em quando assim, se encontravam nos lugares, era muito agradável estar com ele, havia afeto entre nós, mas a gente não podia se considerar amigos, a gente não conviveu, a gente não, não... não conviveu. Por razões...
BERNARDO: Mas como é, assim, uma outra coisa também nesse comparativo das gerações que me chamou atenção era a capacidade, como se fosse a inteligência criativa mesmo, ou seja, havia uma precariedade muito grande de material e tecnologia de tudo que se produzia muito pouco, era quase a coisa do Glauber, uma câmera na mão uma ideia na cabeça, era o mínimo necessário para se fazer.
NEY MATOGROSSO: Sim.
BERNARDO: E a forma como você descreveu isso era muito... a forma que você descreveu os trabalhos que você fez com o Gerchman me parece muito isso, é muito, "vamos lá".
NEY MATOGROSSO: Sim, sim, era isso.
BERNARDO: "Vamos fazer".
NEY MATOGROSSO: Eu acho que a mentalidade que comandava era essa, "vamos fazer do jeito que a gente puder fazer. Como der a gente faz". E resulta em uma estética, resulta em uma coisa específica que vocês vão lá e reconhecem que não foi feito agora. Embora tudo fosse muito bom, muito interessante. Não tinha a tecnologia disponível que tem hoje, mas se fazia. Existia criatividade, existia maneiras de você olhar para as coisas.
BERNARDO: Porque o Gerchman parece uma figura, esse homem meio renascentista que pensava uma situação artística de diversos ângulos ao mesmo tempo, desde a indumentária, não sei o que, entoa ele me parece uma pessoa muito criativa, muito capaz de realizar e muito enérgica nesse sentido, "vamos, vamos". Você consegue lembrar como era essa questão criativa dele no trabalho, como era essa atitude dele?
NEY MATOGROSSO: Não tinha... era tudo livre, ele dizia assim, ele me soltou naquela ilha... primeiro chegamos a um acordo que poderia cavar buracos para aquele ser surgir como aqueles caranguejinhos que estavam surgindo ali, aquele ser surgisse de dentro do mar com uma roupa de couro, de chifres, sei lá, e surgir de um ninho no chão assim. Mas aquilo eu ficava solto, eu ficava solto e ele ficava solto e poucas coisas repetimos, repetimos uma sequência toda de fotos que era assim, eu correndo em direção a uns pássaros que saíram voando e eu parecia que ia voar junto com eles. Mas com muita liberdade tudo, muita liberdade tudo. Eu ficava na verdade me exibindo. Eu ficava me exibindo para o fotógrafo. Que era um fotógrafo com quem eu tinha muita intimidade, que era o marido da Lulli e que eu já tinha fotografado muitas vezes, então com ele eu fiquei na frente do Gerchman à vontade com o Luiz Fernando como a gente ficava, sabe, no Pantanal só eu e ele.
CLARA: Você pode descrever para a câmera, que você descreveu para mim antes, essa indumentária que você falou da crina, você falou que parecia uma asa.
NEY MATOGROSSO: Olha, era uma roupa que tinha muitos materiais, tinha umas pulseiras de pele de macaco, que era uma tirinha de pele de macaco cortada, que o pelo vinha até aqui assim, eu tinha umas pulseiras de dente de boi, eu tinha um colete que prendia esses chifres de carneiro, que era de pele de macaco também, de pele de macaco, depois eu fiz uma outra de pele de bode, que também era uma pele comprida. E na parte de baixo eu não usei nada, eu só usei um tapa-sexo. Eu tinha uma parte que era de couro de boi, assim, todo tiras e para lá a gente não usou, porque não havia necessidade, porque era dentro da água. Mas era uma roupa muito, muito interessante, porque misturava tudo, na cabeça tinha um osso que era tirado da barriga de uma tartaruga que tinha umas prontas, aquilo era uma barriga de uma tartaruga, o osso da barriga da tartaruga. E tinha crinas de cavalo também, era tudo misturado, era tudo... o que interessava era que ele realizasse uma imagem entre o animal e o humano, mas que também pudesse ser... porque um animal e humano, mas não tem chifre e pele, chifre nas costas. Também isso, era um hibrido, mas um hibrido que não existe. Que não existisse.
PEDRO: Então pra gente concluir eu tenho 2 perguntas, não seriam perguntas, mas primeiro se você acha que existe, se essa nossa geração atual, contemporânea, existe um antídoto para essa caretice.
CLARA: Calma, Pedro, vai dar tudo certo.
NEY MATOGROSSO: Não, eu estou falando assim, da sociedade brasileira.
PEDRO: Não, mas é porque eu sinto um certo desespero.
NEY MATOGROSSO: É uma coisa assim que eu fico assustado, eu fico abismado com as opiniões das pessoas, eu digo, "meu Deus do céu, acende as luzes das cabeças, pelo amor de Deus, não vamos ficar assim". Mas isso tudo é consequência do que a gente... dos impulsos, dos governos, teve a doença, que foi o corte, mas ai depois veio o Collor, cocaína, então já era uma outra mentalidade. Era uma outra mentalidade, hoje em dia não sei nem o que é mais, porque eu já me afastei disso há muito tempo, mas eu não sei nem o que se toma mais. Mas naquela época era LSD puro, que era uma experiência transformadora, que eu acho que se a humanidade não fosse tão medrosa, estariam usando LSD na psiquiatria. Porque o que se revelava para o ser quando ele tomava aquilo era uma coisa que 10 anos de análise talvez funcionasse igual. Mas nem isso mais é igual, quer dizer, entoa eu não sei, não tem como refazer uma ponte, não tem como. É tocar o barco, agora, eu acho que tocar o barco seja em que circunstância for, com liberdade, não tem outra palavra, não tem outra ideia que precise ser mais seguido mais do que a liberdade. De expressão, liberdade. Liberdade. Com ela você alcança muita coisa.
PEDRO: E aí para concluir assim, esses últimos acontecimentos, você que falou com essas palavras mesmo, falou que era muito escroto na ditadura, como você vê essas últimas manifestações, por exemplo, o pessoal pedindo a volta da ditadura?
NEY MATOGROSSO: Acho que quem pede uma coisa dessas é porque não sabe o que foi, não tem consciência do que se tratava. Não tem. Eu um dia desses peguei um taxi que o motorista me falou isso. Eu disse, "pelo amor de Deus, sai dessa, você não sabe o que você está falando. Você não sabe o que foi, você não pode estar nem cogitando apoiar uma coisa dessas, porque você não tem noção do que foi". Mas, dentro da minha perspectiva de que as pessoas têm que ter liberdade, eu acho que as pessoas têm que se manifestar. Mesmo que dessa maneira, mas tem que ter o direito de se expressar, de se manifestar. Eu não acredito que isso vá mudar o rumo da história, mas eu acho que as pessoas têm o direito de expressar o que elas pensam, o que elas sentem. E nós vamos ver o que fazemos com essas informações, não é isso? Não acho que eles serão um gatilho que vai modificar a história. Não acho mesmo.
BERNARDO: Qual foi o teu primeiro contato com o Gerchman, como é que você começou essa amizade, como é que vocês ficaram amigos?
ANTÔNIO: Bom, exatamente isso que eu me lembrei hoje. Eu vi uma primeira exposição do Rubens, na Galeria Vila Velha, na Barata Ribeiro, ali nas imediações da Galeria Menescal, mais ou menos. Era uma galeria de, era uma loja de antiquariado, mas não só a Dona Ruth lá, uma pessoa que curtia o que tinha de novidade assim, no ambiente na época, como também o irmão dela Harry Laus, que era “Coronel do Exército”, mas era crítico de arte do J.B., penso Jornal do Brasil, se não e falha a memória. E então, foi à primeira exposição que eu vi de só desenhos do Rubens, né. O espaço era pequeno então, ela apresentava quase sempre desenhos, assim mesmo, os desenhos do Rubens eram bem grandinhos e assim, para o que você via na época e imediatamente eu notei um traço completamente diferente, naquela época talvez um pouquinho próximo demais de Dubuffet entendeu, mas digo, “não, mas esse cara aí tem um modo de fazer nas mãos que é diferente”. E daí começamos a nos ver e ele era layout man lá da Manchete, eu também fazia esporadicamente esse trabalho entendeu, assim como Roberto Magalhães era ilustrador da Senhor, como eu também né. O Vergara eu já conhecia da rua. Já me perguntar assim, “como é que pode você vir do nordeste e depois viver em Copacabana?”. “Digo, mas aconteceu né”. Então, aconteceu também de eu topar com o Vergara 4 anos mais velho do que eu, com 15 anos, me dando peteleco porque eu era paraibano. “Olá macureba”. Bom, isso é pra dizer que nós muito cedo começamos a nos encontrar a trocar ideias né, seguimos também. Quando o Rubens casou foi com uma moça que já era minha amiga antes de conhecê-lo né. Quando a Anna Maria chegou da Venezuela, nós fazíamos o mesmo turno no Atelier do Goeldi né. Mas o Rubens, sempre teve um traço muito forte, muito pessoal na pintura né. Eu aprecio demais mesmo aquele período dos anos 60 dele, porque é uma coisa muito autêntica é uma coisa muito, a parte que é muito ele né, quer dizer, o traço, às vezes, é meio rude, meio. Tô pisando sério aqui, forte aqui, mas é muito pessoal e capitava muito bem o espírito da época entendeu, além de transmitir outras coisas, outros pensamentos que você, o que é que é quando se falava sobre Arte Pop? Aquilo ali parecia mais o camelô mesmo da Rua da Alfândega né, “O conserta-se relógios”. Né? Mas a coisa das identidades assim, “o louro, quer encontrar moça pequena, mas de lábios carnudos”. Que eu acho que tem o seu ponto alto quando ele faz aquela coisa da Lou, né? Aquela “Série da Lou”, e com as referências que ele faz com a história da arte brasileira então, com Tarsila, com Abaporu... Acho isso realmente um capítulo singular na história da arte brasileira, desse período. Único mesmo assim, não tem é meio difícil, como eu escutei ainda a pouco que alguém apareça com um traço igual ao dele, entendeu? É uma personalidade muito forte no modo dele manejar os elementos da pintura assim, forte mesmo. Tanto que quando anos depois ele repreende um pouco aquele estilo, já não é mais o mesmo cara, já não é o mesmo pincel, já não é mais a mesma tinta. Você identifica logo ou pelo menos eu. Então, tivemos uma convivência contínua, até 66, quando eu resolvi ir pegar uma bolsa que me davam na França e o Rubens em seguida teve o Premio Nacional, do Salão Nacional, o prêmio de viagem ao estrangeiro e foi para os Estados Unidos, onde trocamos algumas cartas daqui pra lá, de lá pra cá. Depois eu fui encontrar com ele lá por 79 por aí, deve ser. Não, 69 ou 79? 69, 70 é por aí. Fiquei até hospedado lá com ele. Depois teve um período mais lá adiante quando ele mudou para o Atelier na Bowery, que nós fizemos um mutirão, um monte de brasileiros quebrando paredes e derrubando o que era um local de, uma espécie de hotel do exército da salvação da noite, entendeu? Você caía ali, “buft”. E tinha um lugar com 1 quarto e 1 banheiro coletivo. A gente tentava descobrir o que é que era o pavimento, porque só uma vez que caiu um martelão enorme assim, “Pum”, e quebrou uma espessura de 1 centímetro mais ou menos, “é madeira embaixo”.
BERNARDO: Eu queria voltar então para o início desses anos 60, esse início, por que como que era a convivência entre vocês, quais as preocupações de vocês já que não tinha um mercado de arte do jovem artista como tem hoje né.
ANTÔNIO: Não.
BERNARDO: E eu queria que você comentasse como é que era isso, como é que era essa coisa toda de produzir arte né naquela época com ditadura, sem mercado né? Optar por isso e como é que vocês dividiam essa angústia e talvez falar pra mim, um pouco da, se você puder, por exemplo, não sei, porque eu queria entender também um pouco da importância que tinha Jean Boghici pra você nesse momento assim.
ANTÔNIO: Pra te dar uma ideia de como às coisas aconteciam. Então, em 63 Loiro Pérsio, que era um artista na época assim, de renome aqui né e que expunha no Tenreiro, na Rua Barata Ribeiro, ali perto do bairro Peixoto, assim, quadros grandes de 2 metros, 3 metros, entendeu. Tinha se tornado meu amigo de saídas noturnas de bar e não sei o quê. E aí quando ele viu que eu estava em uma situação de penúria mesmo, ele disse, “não, eu vou te trazer aqui uma pessoa”. E trouxe o Tenreiro, que olhou uma pasta minha cheia de desenhinhos e colagens pequenas assim e tal, ele me disse, “tá bom, então, eu vou te passar todo mês são tantos lá, não sei o quê”. Não vale nem a pena falar quanto era, porque na inflação não ganhou muito. Mas ao mesmo tempo que a gente fez esse acordo eu disse pra ele, “olha lá, mas o meu trabalho tá se modificando nesse momento eu tô num processo de mudar um pouco a minha figuração, essa coisa, não vai ser exatamente isso e tal”. “Não faz mal, você continua trabalhando, eu vou inaugurar com você a loja de Ipanema”. Ele ia fechar aqui e abrir em Ipanema. Foi no final de 63 ou mais ou menos ele veio lá em casa pra ver o que era e eu dei os trabalhos. Ele disse, “eu não posso abrir com isso, vão quebrar minha loja”. Eu digo, “mas você fez esse acordo comigo esse tempo todo e tal, não sei o quê”. “É. Mas deixa pra lá, deixa pra lá, não tem nada a fazer. Não vou poder fazer isso com você”. E o que ele já tinha comprado ele deixou pelo o que ele tinha pago e tal. Nesse momento quando apareceu em 64 o Jean Boghici, que levou ainda um tempão pra realmente fazer uma exposição, levou quase 1 ano inteiro, não, por exemplo, você vai fazer uma exposição e acabou, o resto é problema seu entendeu. Bom, ele fez uma exposição aqui em dezembro de 64, não vendeu nada. Nada, nada. Então, pra não dizer nada, vendemos 1 desenho ou outro, 2 talvez, em situações muito curiosa. E depois o Jean me disse, “bom, não são meus, mas se você me der permissão eu os levo pra França e faço uma exposição”. Porque ele inaugurou 2 meses depois com tudo vendido e isso foi muito bom pra mim, certamente, mas indiretamente pra toda a turma que estava em volta né, que seja maiormente de maneira mais participativa o Rubens né, o Vergara e o Roberto Magalhães. Era muito difícil o mercado né, não existia mercado, entendeu. Quando eu tirei o “Prêmio da Bienal de Paris” uma das maiores galerias francesas mandou, veio à proprietária conversar comigo que por acaso falava brasileiro, porque tinha crescido aqui. Ela me perguntou, “Quantos trabalhos você faz assim, por ano?”. “Não sei, uns 4”. Não dá, entendeu. Mas era a medida da minha economia, o que é que eu podia comprar de material na época, entende. Num certo momento eu comecei a trabalhar com poliéster e eu guardava uma pessoa num quarto extra que eu tinha que ficava ali durante a noite. Um dia essa pessoa me esperou voltar pra casa e disse, “olha, a minha segurança me disse que a polícia sabe que você tem plástico “. E aí por acaso eu conhecia bem essa história do C-4 dos franceses e, “nada disso. Eu trabalho com poliéster, você bota um pouquinho mais de reagente e ele esquenta e pode aquecer muito, mas não chega né”. No dia seguinte eu dei tudo pra uma pessoa, porque a barra pesava de vez em quando. Bom, eu quando fui embora, eu por um lado senti um grande alívio, poder ir numa praça assim, respirar e saber que não estava com problema de ser seguido ou não né, com quem eu ia ver ou não né, com quem eu ia me encontrar ou não né. E eu e o Rubens, continuamos sempre a nos frequentar o tempo inteiro, não tinha nem como né. Apesar de algumas diferenças vez por outra, por isso ou por aquilo né, que não vale nem a pena acordar, porque não eram muito significativas além do momento ali, eu acho que ele foi uma pessoa importantíssima nesse período, entendeu. Foi importantíssimo o trabalho que ele fez em torno, importantíssimo o trabalho que ele fez em volta da EAV. Importantíssimo também em todos os contatos que ele pode estabelecer pra gente ter uma situação cultural melhor. Nesse ponto de vista o Rubens era muito aberto né, mais do que do ponto de vista pessoal. Então, é assim.
BERNARDO: Como é que era pra você assim, a época até para o Antônio, porque vem com o Rubens lá atrás né, nos anos que trabalhou com ele, ele ficava muito “P” da vida com a ideia de ser Pop, de confundir o trabalho dele, de vocês, na época com cola, o padrão da figuração. O Vergara, também falou pra gente agora na época que também ficava “P” da vida que não era nada de Pop. Mas te incomodava esse chavão de você serem Pop?
ANTÔNIO: Sempre me incomodou. E nesse ano agora já inaugurou no Walker Art Center “Pop International” e mais adiante vai inaugurar na Tate Modern também uma exposição sobre o Pop. Eu estou em todas duas, mas já expliquei que não sou o Pop. Mas o que eles querem é exatamente mostrar uma versão diferente do Pop ou do que eles acham que é Pop.
CLARA: O Gerchman também está nas duas, vocês estão juntos?
ANTÔNIO: Não é? Então, eu acho que continua não ter o menor interesse ser Pop ou não. O que é importante é mostrar que nós temos um ponto, uma marcação nessa linha de desenvolvimento. Eu digo assim, porque não é que eu acredito que exista progresso na arte, mas você precisa pensar né.
CLARA: Experiências maravilhosas que vocês trocavam. Vocês não tinham papa na língua né?
ANTÔNIO: É.
CLARA: Qualquer. E é incrível, porque eu olhando de fora, vendo um, você na Europa e meu pai nos Estados Unidos e a troca continuava com muitíssima qualidade, não é?
ANTÔNIO: É. Nós só tínhamos aquele meio então na época, um correio normal, uma Olivetti que geralmente era o que todos tinham, slides... Depois de um certo tempo ficava perigoso mandar slides.
CLARA: Não. O que eu achava interessante era que vocês estavam, os 2 né, os 2 saíram dos seus países de origem. Você teve a experiência europeia e ele teve a experiência nos Estados Unidos. E isso influenciou muito no trabalho dos 2, e vocês mantiveram as correspondências forte. Vocês discutiam o trabalho um com o outro, vocês se acompanhavam. Isso é muito interessante, não é?
ANTÔNIO: Tinha que, porque bom, nada. É difícil te dizer por que, mas originalmente eu acho que nós tínhamos uma matriz aqui que procurava uma, um ponto que fosse efetivo, não só afetivo. E esse ponto faltava sempre quando se tratava de relações com o chamado mercado e acabava todo mundo ficando ciumento da sua faixa de atração, o que quer dizer que todo mundo se afasta um pouco. Acontece isso normalmente quando tem uma geração, onde há muitas personagens, multas personalidades atuando e com diferenças entre elas. E essas diferenças sempre houveram, sempre existiram entre nós. Em uma entrevista com o Ferreira Goulart, ele faz de tudo pra jogar eu e o Rubens, um contra o outro, onde havia tudo pra... Tinha o algodão e o álcool, porque o Rubens naquele momento ele é muito popular, vamos dizer, populista e eu, era visto como sempre surrealista, sem nenhum problema de classificação, porque também sempre apreciei essa matriz surrealista, eu mesmo. Mas não é tudo. E no entanto, naquele momento nós não tínhamos só um confronto entre nós 2, que representava toda uma série de artistas daquela época, daquele período, que tinha uma posição ou a outra né. Até quem tinha uma posição mais perto do Hélio, que eu considerava mais isento, o Hélio Oiticica. Eu lembro uma exposição que nós fomos fazer em Minas Gerais, na reitoria da universidade, sobre o estado atual das coisas aqui, devia ser final de 64 início de 65 e o cartaz era aquele “Pare”, que nós já tínhamos utilizado aqui, que era um layout do Rubens.
BERNARDO: Era uma organizada pelo Frederico, essa?
ANTÔNIO: Essa de Minas, sim. E quem é que chegou lá? Fui eu, Ângelo de Aquino já estava lá, será que eu e o Rubens, eu acho que eu e o Rubens. Fomos daqui levando a obra de um monte de gente. E lá o Frederico Morais disse assim, “só isso pra aquele espaço enorme da coisa? Não vai dar”. Então, fomos para, eu me lembrei de um projeto que eu tinha discutido com o Hélio, que era assim, “O Projeto Frio”. A gente dá instruções de como construir um objeto né e o objeto tinha que ser construído segundo aquilo. Então, fomos ao supermercado e começamos a comprar o material que nos servia pra reconstruir os trabalhos do Hélio, e foi o que fizemos. Durante a inauguração o general comandante da área namorava, era amigo de uma pintora, então, ele chegou lá e implicou com 2 metralhadoras do Escosteguy cruzadas, quando você abria dizia assim: “Vote”. O general disse assim, “isso é subversivo”. “O senhor acha?”. Aí alguém lá em cima falou com a assistente do Frederico, que metade daquelas obras tinham sido feitas ali no mercado e ela pegou um saco que continha todos os restos do que nós tínhamos comprado que tava pendurado e cortou o nylon com cigarro, “Tuf”, aquilo caiu e começou todo mundo a correr e a chutar os sacos de cominho, tinta amarela, verduras, uma confusão danada. O reitor corria dali pra cá dizendo, “o meu hall, todo pintado de novo né”. Uma velhinha correu para o “Nest” do Hélio Oiticica e tinha um ninho que era uma coisa de alumínio, uma coisa de arame cheia de ovos, a velinha começou a atirar os ovos né. Quando eu saí dali que consegui tomar um ônibus, já tinha até bloqueio da Polícia Militar no meio da estrada, porque tinha um general lá, tinha tudo. Então, a nossa passagem nesse período é assim, né. É uma coisa de enfrentar um pouco o que é que a gente tem na frente. Nisso o filme do Antônio Carlos Fontoura era um exemplo marcante o “Ver Ouvir”. Realmente onde eu, aliás aonde eu vou vem e se apresenta melhor em todos os filmes que eu vi sobre ele.
BERNARDO: Por que você acha isso?
ANTÔNIO: Porque é mais autêntico. Ele não era assim, um cara de ficar no meio da rua fazendo aquilo assim, mostrando o visual que ele queria mostrar, identificando-se com aquele visual em torno.
BERNARDO: Essa tua descrição né da situação de Minas, fez, não sei por que, parece a época isso né, porque assim, me lembrou obviamente à questão da exposição do MAM, que em 65, não é 66? Que o Hélio chega com o pessoal da Mangueira, né?
ANTÔNIO: 65.
BERNARDO: 65? 65. É. Aí queria que você falasse um pouco como é que foi esse momento da opinião, o que é que você lembra?
ANTÔNIO: A mesma coisa. Os militares já começavam a se coçar um pouquinho com as artes visuais. Muito menos do que com o teatro ou cinema, mas chegavam provocações entendeu, pessoas que nos aproximavam e chega a um ponto que nós achamos, discutindo entre nós, que era o momento de criar uma espécie de senso do que estava sendo feito, ainda que houvessem diferenças muito grandes. Quem tinha vindo da abstração, quem tinha continuava na figuração, entendeu? Haviam misturas formidáveis, tipo, Ivan Serpa passa do concretismo pra um período completamente detonado, completamente expressionista, ao contrário de toda a vida dele e tem seus admiradores e seu modo de ser visto no contexto. Acho que nesse momento era necessário pra nós como sobrevivência, como categoria até, artistas plásticos, saber quem era quem e a presença das séries com o Boghici, com os trabalhos que eles trouxeram da Europa, então, que era gente da mesma geração ou talvez um pouquinho mais velho, porque lá era a turma é mais, só começa depois, não começa tão jovem assim, foi isso, foi uma oportunidade muito boa de dizer, “estamos aqui, ainda vamos estar aqui e ainda queremos estar aqui”.
BERNARDO: Era, mas um assunto que era muito importante assim, pra lembrar que na história brasileira da arte é fundamental, eu queria te perguntar assim, trazer a tua memória daquela noite que é o famoso Happening da G-4.
ANTÔNIO: É. Foi interessante, porque eu acho que foi o nosso primeiro approach midiático, entendeu? Pra pensar que aquilo fosse midiático então, porque tinha a câmera da TV Globo, a câmera de não sei quem e tal, e vários de nós que tínhamos também uma câmera. E parecia que a gente estava se comunicando com o povo, jogando feijão pra meia dúzia de pessoas. Era engraçado, era um teatro né, feito de uma maneira jocosa, de uma maneira assim, brincalhona né, sobretudo depois que os militares já tinham tomado o poder, e que ali naquele espaço, que entre outras coisas, a gente tem que dizer o nome de quem faz esses lugares, era o Sérgio Bernardes, grandíssimo arquiteto brasileiro e David Drew Zingg, foi um fotógrafo americano que veio da Revista Look para o Brasil e nunca mais voltou para os Estados Unidos. Foi um grande amigo e foi uma pessoa que registrou o filme Ver Ouvir, por exemplo, a câmera era dele né. Então, quando eu fiz a capa do disco do Gil, já mais tarde aí em 67, foi o David que fotografou também e num certo momento nós fomos parar todos, depois de um chute extraordinário em São Cristóvão, onde a gente estava querendo ver o Gil vestido de gorila, etc e tal, fomos pra casa do David e o Rogério Duarte, que era o Diretor de Arte, começou dizer, “ele está ali, ele está ali naquele canto”. “Quem, quem está ali?”. “O Che Guevara, tá ali naquele canto”. Todo mundo fumadíssimo. Era até capaz de aparecer o coisa, mas não apareceu pra mim, não. Mas esta cena aí ficou engraçada. Era uma pausa naquele momento criativo que a gente tinha em excesso naquele momento, sabe. Estava começando a aparecer o tropicalismo, se falava disso, Rogério Duarte, era um grande incentivador dessa coisa né. Rubens também né, se deve dizer. E eu não passei de nada disso, eu não estava aqui já, mas seguia, de vez em quando, quando chegava um recorte de jornal. Mas seguia também coisas incríveis, que uma vez na Revista Manchete, tinha uma fotografia aérea de uma pessoa em Ipanema, na praia e um círculo de gente e volta dele assim, uma coisa como se fosse um leque enorme. Sabe quem era? Roberto Magalhães, dando consulta de mão, na praia. Era fantástico. Era um período incrível.
BERNARDO: O que é que você acha que aconteceu que não tem mais esse humor, ainda mais você que tem uma coisa mais né?
ANTÔNIO: Mas claro que tem esse humor. Vocês não tem humor? Imagina. E basta ver “Porta dos Fundos”, aí que já tá se tornando aí quase acadêmico de tanto. Era. É verdade né. Ainda não? Não. A Paula diz que ainda não. A Paula que descobriu “Porta dos fundos” pra mim. Ela tá dizendo que nós somos amigos do Rodrigo, por outros meios, mas. Não. Esse humor eu acho faz parte da nossa mentalidade aqui, entendeu. Não é uma coisa que você possa dizer, “foi perdida”. Não. A gente tem isso quando vê a partida de futebol, quando tá ali tomando um Chopp, comendo um croquete, entendeu? Quando está no “Amarelinho” é uma coisa, quando está no “Bracarense”, é outra né, os objetivos são diferentes. Essa cidade vive muito assim, São Paulo também vive muito assim, não é? Eu acho que o Brasil, já não é mais um país jovem é um país que caminha pra uma porção da população mais ou menos muito velhinha, indo pra velhinho mesmo, quase velhinho indo pra velhinho, mas é um país que sabe viver com esses pulos de gato que tem que dar descendo a ladeira né, que quase nunca é subindo né. Mas então, se ajeita aqui, se ajeita ali e era o que se fazia na época, a gente continua fazendo isso.
BERNARDO: Mas deixa eu terminar aqui, porque nós vamos, não sei o quê. Só queremos saber se você consegue dar um depoimento final sobre como era à personalidade do Gerchman, como é que era esse homem, o Gerchman?
ANTÔNIO: Ávido. Pronto. Verdade. Em vários sentidos. Pode procurar no dicionário.
BERNARDO: Pra gente começar, eu queria primeiro que você tentasse contextualizar pra gente quem era esse Armando...
ARMANDO: Tá.
BERNARDO: ... nesses anos 60/70, por onde você andava...
ARMANDO: Até para explicar como que eu encontrei com ele.
BERNARDO: ... exatamente.
ARMANDO: Tá bom.
BERNARDO: E nessa introdução que você fale de você, você introduzir como você conheceu o Rubens..
ARMANDO: Tá bom.
BERNARDO: ... como foi o seu primeiro contato com ele.
ARMANDO: Ok.
BERNARDO: E como surgiu a amizade.
ARMANDO: Tá legal. Quando vocês quiserem.
BERNARDO: Está rodando.
ARMANDO: Nós estávamos aí, possivelmente, meados dos anos 60 e a minha vida estava se dirigindo para Engenharia e Direito né, quando, por uma dessas razões inexplicáveis, eu também resolvi fazer uma coisa chamada Jornalismo e acabei na Faculdade Nacional de Filosofia que tinha um curso de Jornalismo onde é hoje o prédio da Academia Brasileira de Letras, o novo. Ali funcionava muito anteriormente o Tribunal Federal de Recurso quando a capital era no Rio, e a partir dali, esse prédio se transformou então na Escola de Jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia. E eu tive o... cruzamos ali, eu e ele com Zuenir Ventura e o Zuenir Ventura era um professor que era ao mesmo tempo, era da época da Universidade do Brasil né, ou seja, a Escola do Brasil era da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil e ao mesmo tempo ele era professor da ESDI que era a Escola Superior de Desenho Industrial que era a primeira experiência que se fazia no Brasil na área de Design e particularmente Design Gráfico né. Grandes nomes surgiram dali e foi exatamente nesse momento que se estabelece um contato meu, aquele ex quase engenheiro, ex quase advogado que possivelmente não teria a oportunidade de jamais entrar nesse né. Eu me vejo pouco a pouco me aproximando primeiro através do Design de pessoas que de alguma forma tinham uma preocupação com essas questões mais estéticas. E o que o Jornalismo necessariamente, também não garantia. O Zuenir me convida para ser estagiário praticamente na primeira aula ficou lá apaixonado pelo aluno e tal, ele trabalhava... ele era um dos editores do Diário Carioca que era o jornal mais bem... também de novo entra essa estória de Design, o jornal mais que, com o Jornal do Brasil estavam realizando naquele momento uma reforma gráfica importantíssima né. O Jornal do Brasil até já estava um pouco mais desenvolvido, mas o Diário Carioca era o Amilcar de Castro que fez a reforma do Jornal Brasil, mas o Diário Carioca era feito por diagramadores né mais voltados para a imprensa e essas pessoas de alguma forma, um pouco mirando na experiência do Jornal do Brasil ou seja, de um Artista Plástico tentando fazer essa experiência também chegar no Diário Carioca e a partir daí, nesse Diário Carioca então começa a ter contatos, inclusive, com críticos de artes, com pessoas que, de alguma maneira né... esse jornal tinha uma preocupação com o contemporâneo, com o que rolava no Rio de Janeiro e tal, então, quer dizer uma formação que vai acontecendo muito aos pouquinhos. A partir daí, isso possivelmente, dois anos depois eu já estava contratado pelo Jornal do Brasil onde eu comecei como redator na área internacional por pouquíssimo tempo, por ser uma pessoa que falava várias línguas e tal, na época, trabalhar no internacional, significava muito a ideia de você conhecer línguas, você basicamente traduzia telex e telegramas de agencias internacionais, que era a única fonte de políticas internacionais. Então era importante que você dominasse línguas e tal. Estamos falando aqui, de novo, estamos aí em 64 por aí e tal e o Brasil então nesse momento sofre, como todos nós sabemos, uma transformação política violentíssima né, que é a queda do governo João Goulart, o golpe que derruba o Presidente e se instala então, o que se chamava na ocasião de um Governo Militar Provisório e nesse exato momento, ou seja, em março, abril eu sou deslocado para cobrir esses acontecimentos, eu fui, talvez o primeiro repórter que entrou no Forte de Copacabana quando foi ocupado por um famoso Coronel Montanha, então, praticamente, eu vim atrás dele, mas ele não sabia que eu era jornalista felizmente. Eu só fui parar nessa história porque eu morava no Posto 6 em um prédio que dava para o Forte de Copacabana, então eu percebi que alguma coisa estava acontecendo lá. Isso foi no dia primeiro de Abril de 1964, e eu, como repórter com algum faro e tal, saí correndo, saí da minha casa e fui direto lá sem o jornal saber, sem saber de nada, eu fui direto lá e cobri essa chegada dele, a tomada, a famosa tomada do Forte de Copacabana que era muito importante para a estratégia dos Militares naquele momento. Bom, isso dito, fechando esse parêntese, no Jornal do Brasil rapidamente, então eu sou deslocado para ser repórter especial do Caderno B, de novo, é um pouco a mesma história, ia ser engenheiro, ia virar um especialista em política internacional de repente eu me vejo no Caderno B que talvez fosse o espaço mais efervescente né da cultura brasileira né, naquele momento. Isso já vinha um pouco da tradição do Caderno B, o Caderno B possivelmente os espectadores sabem né, os nossos futuros espectadores saberão que era um Caderno B que se acontecesse digamos assim, o neocompetismo de alguma maneira explode no Caderno B no próprio Caderno B e assim por diante. Então já há no Caderno B uma tradição de cobrir artes plásticas que não era comum naquele momento na grande mídia, na mídia digamos assim no mainstream. Então é aí que começa a história, a minha história com as pessoas e com os artistas e, particularmente, com o Rubens né. O editor do Caderno B naquele momento venha a ser um dramaturgo chamado Paulo Afonso Grisolli e, naquele momento o Caderno B juntava pessoas que vinham de Fernando Gabeira, a Marina Colasanti, por exemplo, né, críticos de artes como José Carlos Avellar, quem mais? Ely Azeredo, pessoas que realmente que estava em um momento assim de... Geraldo Mayrink, pessoas que estavam transformando, digamos assim, a cultura brasileira em todas as áreas né. E na moda Iesa Rodrigues tentava fazer uma linguagem nova, então com trabalhos, inclusive, gráficos também né, introduzindo um novo tipo de traço, digamos assim, na imprensa, e assim por diante e tal. E eu, nas minhas pautas diárias, eles acabaram achando que eu tinha mais... uma certa aptidão, uma certa sensibilidade, uma certa abertura para conversar com artistas plásticos né. Então, em 1965 eu tenho a oportunidade... e 66, eu tenho a oportunidade de fazer as duas matérias que aparentemente ou historicamente se transformam nos momentos, digamos assim, de grande mudança no entendimento do que seria o futuro da arte, a passagem da Arte Moderna para a Arte Contemporânea Brasileira. A primeira foi em 65 que é uma exposição que o Museu de Arte Moderna promove, chamada Nova Objetividade Brasileira, em que eu ganhei uma capa do Caderno B todo. Acho que a primeira vez que o Caderno B dedicava né, digamos assim, uma capa para uma coisa que era um grande ponto de interrogação. Que ninguém sabia o quê que aquela exposição significaria, que importância ela teria no futuro e que juntava exatamente todos os nomes que vinham do Neoconcretismo e que juntavam, digamos assim, com esses nomes novos, entre os quais estava Rubens Gerchman. Aí, ao escrever a matéria, eu achei importante ouvir opinião né, eu estava mais interessado nos novos do que daqueles que, teoricamente, já estavam mais estabelecidos. E um deles, ou melhor, dois deles particularmente me chamaram a atenção, logo em seguida, dois outros também me chamaram a atenção, eu, a parir daí me aproximei de quatro pessoas nessa exposição. O Rubens, o Antônio Dias, o Roberto Magalhães e o Carlos Vergara, então esses quatro, de alguma maneira, é um pouco núcleo de que aquela exposição trazia de novo em 65. Então é um privilegio que eu tenho na minha vida de, a partir daquele momento, nós estabelecemos relações que duram né, literalmente até hoje. Apenas, infelizmente, o Rubens não está mais conosco, mas os outros três, eu até hoje né, tenho essa... eu digo realmente, acredito que a palavra é essa mesmo, o privilégio e o prazer da gente ter crescido juntos, mudarmos juntos, nos transformarmos juntos e vai... Estamos aí falando de cinquenta e muitos anos e tal. Então esse é um ponto de contato onde eu conheço o Rubens né, ele inclusive, não morava no Brasil nessa ocasião. Não sei se em 65 ele já tinha... ele estava viajando para os Estados Unidos em algum momento, mas eu não me lembro se ele tinha... em 65 eu acho que ele estava ainda aqui né, ele viajou alguns anos depois para Nova Iorque e Antônio a mesma coisa, que dizer Antônio acho que ele viaja em 67, 68 para Paris né, onde vai participar da Bienal de Paris e praticamente se estabelece na Europa e o Roberto e o Carlos tomaram a decisão de encarar a situação brasileira aqui mesmo, acho que jamais saíram do Brasil por tempos muito longos e tal. Em 66 eu tenho a oportunidade de escrever uma outra matéria que também acabou sendo uma matéria interessante e acabou sendo muito marcante, que foi a exposição que o Jean Boguici montou em uma pequena galeria em Copacabana chamada Galeria Relevo onde o Jean com uma rara sensibilidade, que manifesta até hoje né, ele vai e faz uma exposição que, se eu não me engano, a outra chamava Nova Objetividade Brasileira e essa chamava, se eu não me engano de... Criação 66 uma coisa assim que era a ideia de que aquilo era, digamos assim, o ponto central né, do que, naquele momento, se fazia de mais importante em termos de criação. Não sei se é o nome exato dessa exposição, mas é uma que foi feita em 66 e outra em 67. Mas a galeria em si, escolheu alguns daqueles artistas da nova objetividade brasileira particularmente esses quatro que eu acabei de referir, em uma coincidência e faz uma exposição muito marcante quando escolhe obras muito fortes, muito contundentes e então, a partir dessa matéria então a minha aproximação com esse pessoal, digamos assim, particularmente com esses quatro artistas se torna bem mais profunda e tal. E, finalmente, em 66 foi logo depois dessa matéria, eu ganho uma bolsa de estudos do governo francês para fazer o meu mestrado na França e, a partir dali, eu viajo no final de 66 pra França e fico 5 anos e também tive a sorte né, essas coisas, realmente quando cruzam aparecem pela frente e você monta encima vamos que vamos, eu fui convidado para ser o correspondente do Jornal do Brasil que era o jornal mais importante do Brasil disparadamente, no país, e ao mesmo tempo tinha 23 anos, quer dizer, eu acho que eu deva ter sido o correspondente mais novo da imprensa brasileira, mas em Paris então eu tive a oportunidade de conviver com os artistas que começaram a chegar lá nesse período, esse foi um processo evolutivo até 68 quando o Brasil se torna uma ditadura sanguinária, uma ditadura violentíssima com AI-5 etc., e tal quando aí há uma grande emigração de intelectuais e pessoas perseguidas pelo regime e assim por diante. Eu estou em Paris um pouco do... fazendo um pouco o papel do governo, digamos assim, do bem no exilio né, então as pessoas me procuravam, todo mundo queria lê o Jornal do Brasil e todo mundo... então a minha casa era uma espécie de um espaço em que as pessoas iam lá, era uma banca de jornal, de alguma maneira ou liam lá mesmo ou senão tinha a oportunidade... eu criei até um sistema de circulação do jornal de passar de mãos em mãos. Estamos falando de um mundo e não tem internet né, a única maneira de comunicação era o jornal né, do ponto de vista físico era uma necessidade de todo mundo e tal. Ninguém tinha telex em casa para poder saber o que estava acontecendo. A censura já estava estabelecida no Brasil, então a própria leitura dos jornais também já era feita com alguma, digamos assim, com algum filtro especial e tal. E os artistas, de alguma maneira, participaram muito proximamente desse período, particularmente Sérgio Camargo que acabou se transformando um grande amigo meu, que morava em Paris nessa época, ele oscilava entre Londres e Paris e o Antônio Dias que morando, embora morando... depois ele foi para a Bienal de Paris, mas resolve mudar-se para Itália, mas aí a gente tem um contato que eu vou muito a Milão ele vem a Paris a gente estabeleceu um contato que durou bastante tempo e dura até hoje. Então essa é um pouco é a minha historinha né, digamos assim, onde eu me vejo literalmente lançado dentro do mundo das artes plásticas né, por caminhos absolutamente não planejados né, mas que acabou marcando a minha vida. São pessoas que fizeram parte não só da minha formação, do meu olhar basicamente né, e eventualmente até me fizeram um pouco um jornalista diferenciado naquela época na medida que eram pouquíssimos os jornalistas que tinham exatamente esse olhar que eu me referir né, que tivesse essa capacidade de ver política e ponto final.
BERNARDO: Esse momento assim, que você conheceu eles e conviveu com eles e escreveu sobre eles...Como é que era, como é que na tua memória era o convívio com esses artistas, porque não tinha mercado de artes para eles né?
ARMANDO: Nada.
BERNARDO: A não ser o Jean que abriu essa frente
ARMANDO: Jean tentando abrir o mercado né exposição...
BERNARDO: Qual que era o a angustia desses caras? Você lembra?
ARMANDO: Lembro. Lembro algumas coisas desse período. Primeiro falar um pouco desse momento interessante porque, o mercado de arte como a gente conhece o Brasil hoje, literalmente não existia né, quer dizer, então muitas conversas que nós tínhamos entre nós, eram exatamente formar quase que círculos de consumo de arte né, então foi aí que começa a aparecer à força da cinegrafia, por exemplo, é uma primeira tentativa de baratear, de tornar um pouco mais acessível ao trabalho, isso é uma coisa que é muito claro desse período, todos esses artistas tinham essa preocupação. A questão também dessa ruptura né, então eles eram um pouco confundidos com artistas, mas no tempo havia uma tendência, não só da mídia como de um modo geral das pessoas pensantes né, em atribuí-los como agitadores né, então isso é uma coisa importante pra gente depois até entender o percurso de cada um deles. Isso é natural porque a linguagem que eles utilizavam era uma linguagem que as pessoas não conseguiam entender que era uma ruptura fundamental na questão da linguagem da arte, mas que também que aquilo se confundia né, com o momento que o Brasil estava vivendo né. Então a questão pop, toda essa questão de fazer personagens que nunca estariam presentes em obras como a Lindonéia, por exemplo, pegar um exemplo bem típico do... então coisas, são coisas da atualidade. Você pegar um tema como futebol, de repente e a partir dali introduzir isso no seu trabalho, então você pegar a referencia que você tinha do futebol era um Portinari dos anos 40 então, que você tinha crianças jogando uma pelada no interior do Estado de São Paulo e tal. Então essa um pouco a visão do que se tinha nunca introduzindo jogadores, e números, e camisas, por exemplo, no caso da obra do Rubens e por aí vai né. O Antônio muito influenciado pelo cartoon né fortíssimo que se praticava na França nos Estados Unidos e assim por diante e tal. Coisas até que rompiam um pouco até a cordialidade brasileira e assim por diante. Então sabe, eram coisas que não faziam parte. Então os artistas, eu acho que isso é uma questão básica para entender aquele momento, esses artistas ainda não eram reconhecidos como artistas plásticos eles eram um hibrido de vários atividades. Eles eram artistas gráficos, eram chamados diretores de artes, ou seja, havia em uma certa na época uma publicidade já tinha uma certa importância no mercado né, então o art-director que rapidamente virou diretor de arte também entrava nesse tipo, mas não, isso era um diretor de arte um pouco mais sofisticado e tal. Aí vinha um terceiro e dizia assim, “não, mas ele é um cartazista de melhor nível.”, e por aí vai, quer dizer, nunca ou raramente você tinha essa identidade de artista plástico claramente definido. Então leva a um problema de mercado. Então você vender isso é inimaginável. Por que, que eu haveria de ter isso na minha casa? E pagar o que fosse? Que dizer, não. Era barato? É difícil dizer hoje o quê que era barato e o quê que era caro, as coisas são o que são naquele momento né. Então era muito complexo naquele momento chegar e dizer o seguinte, se um marchand definir que o trabalho do Rubens valesse x cruzeiros, que era a moeda naquele momento, as pessoas podiam dizer assim, “já eu não dou um cruzeiro por isso, porque isso não é nada, isso aí é uma... literalmente, eu vou levar pra casa uma ilustração bacana, com que eu me identifico ou não e tal.”, mas é graças a arte americana que o espaço começa a realmente a aparecer pra eles, porque nos Estados Unidos, muito rapidamente, artistas com o mesmo percurso começam a ter um valor de mercado. Isso é um pouco a minha visão do que aconteceu com eles. E graças a... Eu acho até, por exemplo, que o fato do Rubens ter ido... eu lembro até que ele me comentou que ele ia para os Estados Unidos ele foi em busca disso né, ele estava indo em busca de entender né, como é que aqueles artistas né, conseguiram transformar uma coisa que aqui era um hibrido né, em uma coisa chamado arte né, uma coisa que pelo menos o nome eles gostariam, não tinha nenhum preconceito com a ideia de ser chamado de artistas né. Então tem pessoas que até hoje tem dificuldade de aceitar esse rótulo né. Mas nem o Rubens e nem o Antônio tinham nenhum problema, eles realmente adorariam ser artistas né, mas tinham dificuldades realmente de assumir por um lado essa coisa pública, eles assumiam privadamente, olha, eu gostaria de ser, mas eu não sou reconhecido como tal. Então eu acho que quando ele comentou que ele ia para os Estados Unidos, ele me passou, todos nós nos surpreendemos muito porque não era comum, só te lembrando, lembrando aos nossos espectadores que o Brasil vivia uma ditadura militar fortíssima né, e os Estados Unidos era o grande inimigo da esquerda ou dos liberais brasileiros, daqueles que ditos os que queriam que o Brasil voltasse ao seu estado de direito. Então os Estados Unidos era o epicentro do diabo, o diabo morava nos Estados Unidos. Aí o Rubens já mostra um pouco a sua característica né, rompedora né e um pouco contra as correntes e contra até os próprios colegas que surpreenderam muito, poxa, entre a Europa que claramente os governos eram governos de oposição a Ditadura Brasileira, o Rubens vai e decide ir para Nova Iorque né que nada mais é do que a principal cidade do país que, literalmente, era patrocinadora né, pelo menos era assim que a inteligência brasileira vivia né, do que estava acontecendo no Brasil. Então isso é um dado interessante da própria trajetória do Rubens e acho que isso... não sei se responde a tua pergunta. Que dizer, acho que esse é o contexto digamos assim que essas coisas acontecem. Esse é o período que eu chamaria de pré-mercado, eu acho que não existia mercado né, eles viviam cada um de trabalhos né, feitos pra agências de publicidades, de trabalhos feitos individualmente para uma encomenda, as exposições eram importantíssimas porque elas eram a oportunidade que eles tinham de mostrar o trabalho e assim por diante e tal. E começa-se criar no Brasil pouco a pouco, uma percepção né, e isso levou muito tempo por que o país, como eu disse, estava muito fechado, eram poucas pessoas que podiam ver isso. Então, o meu papel que eu acabei tendo esse papel, quase de que uma forma involuntária. Foi meio que por acaso, eu me interessei por esse assunto, eu chegava para o Grisolli, e dizia o seguinte, “olha, eu quero fazer uma entrevista longa com o Vergara”, “Vergara? Quem que é Vergara?”, eu tinha que explicar, eu tinha que vender a ideia do Vergara ser um artista importante para o meu editor né, e o meu editor, por sua vez tinha que vender isso para os editores do jornal, amanhã o Caderno B vai dar uma página inteira com o Vergara, “como? Uma página inteira com Vergara?”, sabe? Eram coisas que não combinavam digamos assim com o nível, digamos assim, de conhecimento de informação do que estava acontecendo era muito diferenciado, muito defasado, não vai aqui nenhuma crítica a nenhum deles. Cada um tinha, evidentemente, gueraficarmente, a política, o cinema particularmente, o próprio teatro, então tinha uma precedência enorme em relação à arte contemporânea. Tinha até uma importância para a arte a Djanira tinha um espaço, o Portinari tinha o seu espaço, Guignard tinha um espaço, que eram artistas consagrados, reconhecidos e assim por diante e tal. Mas havia um movimento né, que estava rolando ali que eu, de alguma maneira estava antenado, talvez pelos meus 22 anos ou 21 anos, eles falavam comigo diretamente e tal. Então, talvez essas duas coisas se juntaram. O poder eu tinha como repórter de ser meio chato, de ir lá e brigar pelo meu espaço dentro do jornal, estar naquele momento, no suplemento digamos assim, cultural mais importante mais importante do país, mais influente do país que era o Caderno B e, finalmente, essa capacidade também de ter encontrado um editor no caso aí o Grisolli que mal sabia ele que anos depois nós íamos viver outras aventuras, mas basicamente, era um dramaturgo que tinha... eu confesso a você que ele nem achava ótimo e nem achava ruim, ele disse assim, “Armando, tudo bem, então faz, não tem problema”, ele tinha uma atitude conivente, e acho que de alguma maneira solidário também sabendo se que se tratava de um trabalho que valia a pena né, pelo menos pelo o que ele acabava lendo né, a minha matéria, “esse cara fala coisas interessantes”, e tal. Eu tenho a impressão que o Grisolli jamais conheceu pessoalmente nenhum desses artistas, tanto assim que quando parte a ideia de convidar o Rubens para ser o diretor, por exemplo... criar a Escola de Artes Visuais, ele me pergunta, “esse é um daqueles seus amigos? Um daqueles que você achava interessante?” daquela época, era importante. Então assim que as coisas que aconteceram.
BERNARDO: Engraçado você falar isso, porque me lembrou muito uma... está até no filme, uma coisa que o Vergara bate muito nessa tecla que que já era muito engraçado, que o Vergara falou que você já vê essa noção do que e o artista contemporâneo hoje em dia né?
ARMANDO: É isso.
BERNARDO: Esse multiprofissional. Que o Vergara fala essa ideia, que não bastava eles produzirem um arte, precisavam produzir um campo de conhecimento e um campo de formação que fizesse com que o espectador, o interlocutor dessa arte recebesse toda uma carga né, para que ele pudesse entender essa arte. Ou seja, era necessário produzir o contexto para a arte poder chegar no lugar dele.
ARMANDO: É isso aí. Eu, na época eu comentava com uns amigos que era primeiro necessário construir a parede para poder mostrar esse trabalho né e as paredes não existiam, as paredes, na época, não estavam prontas para receber esse trabalho e nem as paredes achavam que aquilo tinha alguma coisa a vê com elas né. Então, isso foi o desafio maior. Até isso um pouco define muito bem o que foi aquele momento. Era um momento de ao mesmo tempo né, os artistas apareceram antes começaram a fazer esse trabalho, mas não tinham aonde, para usar uma linguagem bem banal, aonde pendurar os seus trabalhos, a partir do pressuposto que os trabalhos são todos pendurados e não eram. Mas de qualquer forma, é um pouco essa metáfora. Quer dizer a ideia de que realmente, o país e as pessoas o momento não estava preparado para receber o trabalho que eles estavam fazendo. Acho que aí, concordo inteiramente com essa perspectiva e com essa ideia que ele tem a respeito.
PEDRO: Que nesse período assim, que nem você que trabalha com isso, com criatividade né? Por que, que nesse momento também foi um florescimento tão grande assim? Por que, que essa geração era tão potente criativamente, vamos dizer assim?
ARMANDO: É.
BERNARDO: Era inquieta.
ARMANDO: Eu acho que aí a gente não pode, a gente não pode ser pobre na visão que tem. Quer dizer. O Brasil, nada mais era do que um capítulo dessa história né, nós não inventamos nada. Vamos deixar isso claro. Nada disso teria acontecido se o mundo não estivesse efervescente. Então, não adianta querer ver esse momento como se fosse né... voltando aquela história do Rubens, o Rubens antes dos outros percebeu, “não, espera aí, esse troço tá vindo de outros lugares.”, e foi aí que ele teve essa atitude, na minha opinião corajosa e rompeu disse, “eu não quero saber se os Estados Unidos tem a posição A ou se os Estados Unidos tem a posição B em relação ao que está acontecendo no Brasil em termos políticos, mas em termos de arte as coisas estão... tem coisas acontecendo lá que me interessam. Eu quero estar lá dentro, quero vê...” e tal. O Hélio se eu não me engano já tinha ido antes.
BERNARDO: Eu acho que foi um pouquinho antes..
ARMANDO: Não sei, mas não importa, o fato é que o Hélio possivelmente com a mesma percepção, com um envolvimento completamente diferente do Rubens, são pessoas absolutamente diversas, mas acho que o mesmo movimento. O Hélio também foi em busca né, ele pra lá, “não, espera aí. É aqui que está acontecendo”. Então essa questão é uma questão mundial, não vamos esquecer que logo em seguida você tem coisas tipo, maio de 68 na França em que tudo o Estado está sendo colocado em discussão, então o trabalho deles tem tudo a ver com isso, o trabalho, digamos assim, que é a imaginação tenta chegar ao poder né, que é a famosa frase que ocupa os muros de Paris né. E da mesma forma que você tem, por exemplo, em Nova Iorque coisas incríveis acontecendo. Você tem o Andy Wharol, por exemplo, que é um publicitário, um diretor de arte que de repente se transforma em um fenômeno e começa, ele é o responsável pelo início do mercado. Então, esse cara, é um cara assim, se um dia, talvez daqui a alguns séculos descrever né, uma obra definitiva sobre a criação do mercado no século XX, ele talvez seja a figura central porque ele consegue fazer aquilo que a gente comentou há pouco, ele consegue fazer com que justamente, as pessoas comecem a se interessar por aquele trabalho como um valor artístico e tal né, coisa que até então, ele era um diretor de arte de estremo bom gosto. Então ele foi até acusado com uma certa apelação por fazer uma coisa fácil, de fazer uma coisa reprodutível, encima de personagens que já estão consagrados, não importa, não vamos discutir isso aqui agora, mas o fato é que... Então respondendo, quer dizer, o que está acontecendo, quer dizer o Brasil está nessa onda, quer dizer, nós estamos nessa vibe tentando ver que lugar nós temos para isso aí. E eu acho que esses artistas, e o Rubens entre eles, e talvez é o mais, o Rubens é o mais participante desse processo, é o mais ativo e abertamente participante. Não estamos discutindo aqui qualidade, estamos discutindo aqui intensidade. Acho que é isso. O Rubens é o mais intenso desses artistas que se engaja nesse movimento sem qualquer tipo de limitação, a ponto de, literalmente a ponto de abrir mão do seu espaço aqui, etc., e tal que viajar para os Estados Unidos nesse período não é pegar e ir ali na esquina e fazer um crédito e pagar de 10 vezes sem juros e pagar uma passagem às vezes mais barata do que uma passagem de uma ponte aérea dependendo do dia . Naquele momento, ir para os Estados Unidos significada, literalmente, você ficar 12, 14 mil quilômetros distante mesmo. Eu citei a pouco, o que eu falava, as pessoas liam jornais tão avidamente, porque realmente era outro mundo, eram coisa que não era uma questão só de línguas, não era nada disso, era uma questão de, realmente de você romper com o seu berço, romper com a sua história, romper com a sua trajetória, os seus amigos literalmente. E você ia ficar se correspondendo por cartas, telefone não funcionava, uma tragédia. Então, a única maneira de você saber mais ou menos o que estava acontecendo era uma carta que ia chegar 10, 15 dias depois. Quer dizer, uma defasagem imaginária né, então os limites um papel de cartas, você na podia mandar, por exemplo, um envelope maior, tinha que mandar um envelope padronizado, só cabiam folhas dobradas e você tinha que escrever ali dentro, se você botasse uma imagem, você corria o risco de não receber essa carta, essa carta talvez passaria por um sistema de censura. Então, só pra vocês terem uma ideia da decisão naquele momento de você ir. Então o quê que é isso? É você... eles sabiam né, muito claramente desse momento. E ele comentou comigo várias vezes foi com medo enorme, realmente estava indo para o desconhecido, não falava... O Rubens sempre fez questão... nunca queria aprender línguas, ele tinha horror em aprender línguas, e segundo... isso também foi uma coisa muito identitária, e tal do jeitão dele, ele tinha um jeito marrento, o Rubens era uma pessoa marrenta sempre, o tempo todo, então essa característica dela aparecia também nesse momento, então, “pô, vou ter que aprender inglês...” é claro que quando ele chegou lá ele teve que, pelo menos, algumas palavras básicas ele teve que fazer. Que ele contava que realmente conseguia dizer, eu consigo me comunica com ele, entendeu? O máximo que ele fazia. Se eu não me engano, eu acho que ele até viajou com a Silvia que era a Silva Roesler que era o nome dela, ou se ela foi depois, eu não sei como que foi.
BERNARDO: Não. Era a Ana Maria.
ARMANDO: Eu sei, mas digo, mas a Silvia acabou se encontrando, ele separou da Ana Maria e teve um momento que foi a Silvia que me comentou que ele nunca foi fluente no inglês. Quer dizer, realmente sempre foi, vamos dizer assim o Rubens não é que ele arranhava, ele não arranhava, ele falava o necessário para se fazer entender e se comunicar e tal. Então isso realmente foi uma coisa que... É uma marca dele e tal e que ele fez questão de fazer. Então é isso, eu acho que o mundo estava naquele momento buscando o caminho e ele, realmente, embarcou nisso aí. Eu não gosto de chamar isso como um fenômeno brasileiro, eu acho que a gente tem características como tudo né, nós temos algumas coisas que são brasileiras, mas eu acho que o conjunto da atividade, a busca dessa nova linguagem é uma linguagem universal realmente. Realmente aconteceu simultaneamente, não por acaso em vários lugares do mundo.
BERNARDO: Sabe, você está falando e eu estou tendo um pequeno insight que é...
ARMANDO: Que bom.
BERNARDO: ... como seria a obra do Rubens se ele tivesse ido para Paris ao invés de Nova Iorque?
ARMANDO: Eu te diria que não seria o que ele fez. Eu afirmo categoricamente. Você pode perceber, se você compara esses artistas todos daquele momento né, você percebe que, talvez não... seria até estranho se eu dissesse que ele tem mais ou menos, acho que não estamos aqui comparando né, quem fez melhor ou quem fez pior, mas eu acho que essa viagem, de alguma forma, mudou a forma, o olhar do Rubens pro mundo. Quer dizer, ele tem uma visão anglo-saxã, quer dizer a liberdade que ele encontrou nos Estados Unidos de criar é maior do que na Europa, a Europa porque a política nos Estados Unidos né, não tinha tanta importância na arte, enquanto que os artistas que de alguma maneira foram para a Europa se viram alguns, não todos impregnados de alguma maneira pela Europa, a Europa é isso, a Europa é um discurso muitas vezes ideológico, então a arte tinha que ter uma... todos eles eram alguma coisa, todos eles tinham alguma função né, ninguém dizia assim, “não, eu vou fazer um trabalho alienante” isso para alguns dos... alguém comentava isso com o Rubens ia matar o Rubens o personagem que chegasse perto dele e dissesse uma coisa como essa, “isso aí é uma brincadeirinha, uma bobagem” o Rubens se pudesse, e muitas vezes quase fez, ele partia pra cima entendeu? Mas, de qualquer maneira, eu acho que talvez é isso, a Europa mais facilmente você se via empregando pela ideologia que a Europa sempre foi um país mais... uma região mais verbal, uma região em que realmente essa discussão aparecia mais um pouco, não entende, junto da arte, mas acima da arte, a arte estava a serviço disso daí. Não se esqueça que estamos em um período em que o comunismo e a importância da União Soviética enorme, você tem o Muro de Berlin, você tem toda a discussão na Europa que culmina com essa revolta dos jovens que não querem mais ouvir falar nisso com o maoísmo né, que passa a representar de alguma maneira, um pouco novo né, sem entrar no mérito aqui se também foi uma coisa fascista ou não, mas o fato é que o maoísmo naquele momento era uma quebra de paradigma né, acabava com uma série de coisas que predominavam naquele momento. E os Estados Unidos, ao contrário, o liberalismo né, acabava gerando essa vantagem, quer dizer, cada um fazia o que bem entendesse né. É um pouco, é a marca da sociedade americana. O governo não tem absolutamente nada com isso, quanto menos governo melhor. Então esse espaço fica muito interessante para o Rubens né e para todos os artistas e tal que, eventualmente depois, começaram a se aproximar da... o sucesso da POP acaba sendo um pouco esse sucesso, o sucesso da liberdade de você puder fazer. Isso foi fundamental né, para o crescimento de cada um desses artistas que a gente citou.
BERNARDO: A gente também não consegue né, nessa pesquisa que já está há um ano e meio em nossas vidas, aqui com Gerchman das coisas que ficaram pra trás, é impossível, nossa, não tem como separar o que o Gerchman vai fazer nos anos 70, não só no ponto de vista do trabalho de arte, mas como a questão editorial quando ele vai fazer o Malasarte...
ARMANDO: Isso.
BERNARDO: ... o conhecimento que ele trás dessa arte conceitual americana...
ARMANDO: Isso.
BERNARDO: ... então, quer dizer, esse artista que tem que ser pra além do objeto da arte, isso está totalmente ligado a arte americana que ele vai se encontrar né?
ARMANDO: É isso.
BERNARDO: Com o Grupo Fluxus, com conceitualismo, tudo aquilo né?
ARMANDO: Tudo, tudo. É uma... de uma certa forma ele fez um doutorado nos Estados Unidos né, ele, literalmente fez um doutorado prático né, ele realmente se atualizou né, e teve essa oportunidade rara né, ele primeiro... tem que se reconhecer no Rubens essa capacidade que ele tinha de aprender, porque o Rubens como era muito marrento, as pessoas tinha uma tendência assim “o Rubens não ouve, o Rubens diz”, e você tem artistas que são, ao contrário, o Roberto Magalhães só ouve, não diz nada né, são características que são, porque são da persona né, realmente eles são assim funciona dessa maneira, mas quando você vai vê o trabalho você vai perceber que não é bem assim, o Rubens é um dos que mais ouve porque você percebe que ele põe em prática aquilo, uma série de coisas que não se esperava de um artista, por um lado por necessidade, não vamos nunca se esquecer disso, quer dizer, ele ainda não conseguiu... esse pessoal ainda não tinha conseguido criar a identidade de artistas plásticos, isso foi uma luta braba que eu tive a oportunidade de assistir, fui muito solidário com ela né, e eu tinha um privilégio, eu era um jornalista reconhecido né, ninguém tinha dúvidas de que eu era um jornalista, mas eles tinha maior dificuldade de dizer “nós somos artistas plásticos”, olhavam isso com uma certa dúvida. Então, de alguma maneira, eles todos partiram para esse conhecimento que eles tinham de outras atividades, atividades paralelas e assim por diante, e botaram a sua capacidade inventiva a serviço de outras coisas outras linguagens, mas que levavam para um bom caminho, mas de novo o mercado ainda não estava constituído. Então daí essas belíssimas oportunidades, quer dizer, a vida acabou fazendo do Rubens né, possivelmente a cada um de nós né, a vida acaba criando pra esses artistas a possibilidade de eles serem mais artistas do que eles apenas gostariam de ser né. Isso é uma coisa aparentemente contraditória, mas no caso do Rubens foi isso que aconteceu, ele ficou muito maior né, ele teve muito mais importância, ele acabou tendo oportunidades, digamos assim, profissionais e pessoais existenciais que acabam fazendo um espaço pra ele dentro da história da arte brasileira muito mais importante do que se ele eventualmente puro e simplesmente tivesse continuado a ser um artista né, nesse sentido literal da palavra, usar a sua capacidade gestual né, para poder produzir alguma coisa. Isso me parece um dado interessante.
BERNARDO: Maravilhoso isso.
ARMANDO: E a prova está que um dos grandes momentos da vida do Rubens acaba sendo um diretor, criador e diretor de uma escola, quando na realidade, por que, que sugeri o nome dele né? Exatamente por isso, porque eu podia ter escolhido, poderia ter indicado um dos 50 artistas que eu conhecia naquela época né, por que essa história, se é que eu já pode contar, mas o mesmo editor do Caderno B o Paulo Afonso Grisolli né, ele foi desligado do Jornal do Brasil naquela época, acho que em 72 ou 71 por aí e tal, entre 72 e 74, e ele começa a voltar a fazer teatro com frequência, ele forma um grupo importante em Niterói, o Grisolli sempre foi... ele é paulistano, se eu não me engano, ele é do interior de São Paulo na paulista, paulista e sempre foi um homem de teatro muito inquieto embora ele seja uma pessoa altamente conservadora. Você olhava pra ele, ele parecia quase que um padre ali, se botasse uma batina ali, você na mesma hora começava a rezar ali e já ia com ele pra igreja e tal, ele tinha um physique du rôle que era extremamente eclesiástico. E aí ele é convidado então pela Myrthes então pra ser o Diretor do Departamento de Cultura que era o nome, que na época não existia a secretaria, e ele então junta nesse grupo de pessoas que ele acabou conhecendo no Caderno B, era a pessoa, uma das pessoas mais importante do país durante muitos anos né, e ele, naquele momento, então ele convida algumas daquelas pessoas com quem ele conviveu durante os anos anteriores no Jornal do Brasil e uma das quais, ele me chama então pra ser... eu era assessor, assessor especial, sei lá o que e tal. eu me lembro que foi aí que eu aprendi a sigla DAS, DAS é uma sigla do serviço público em que as pessoas são classificadas por números né, então DAS 6, DAS 7, eu até perguntei por que eu não sabia nada a respeito, então eu fui perguntando. Ele também não sabia e aí entra um personagem fundamental e que explica por que que o Rubens foi escolhido. porque não foi nem o Grisolli digamos assim que topou a minha sugestão. Existia um... quando essa inquietação toda começou né, no Departamento de Cultura, vamos fazer isso, fazer aquilo, milhões de ideias e assim por diante e tal, e uma das ideias então foi essa, "vamos pegar aquele Instituto de Belas Artes que funciona lá no Parque Lage..." e tal, e dentro desse espirito de inquietação e de preocupação de querer mexer, mudar, fazer e tal e coisa, a gente olhava aquele lugar deslumbrante, passava lá e via aquele grupo de senhoras às 03 da tarde, nada contra senhoras, mas realmente era uma coisa que não combinava muito com o lugar e dizia assim, "poxa, esse espaço podia ser melhor aproveitado" então, mas coincidentemente tinha um grupo de senhoras de 50, 60 anos com aquarelas na mão, aquelas madeiras, aquelas tintinhas e tal, desenhando ali na frente de uma forma bucólica assim, na frente do jardim. então, todo mundo meio que passava por lá e ficava um pouco, digamos, não diria irritado, mas assim, "poxa, esse lugar podia ser um lugar mais interessante..." e tal. E essa conversa começou a aparecer lá que a gente estava de olho nisso e em muitas outras coisas né, e até em coretos, pra vocês terem uma ideia, o nosso olhar era tão maluco naquela época, que eu me lembro que eu cheguei para o Grisolli e disse assim, "Grisolli, olha os coretos das praças do Estado do Rio de Janeiro" o coreto foi uma tradição importantíssimo né, onde a música teve a oportunidade de se apresentar e tal, mas o Grisolli olhou pra mim e disse "coreto? Você tá maluco?", eu falei, "mas ninguém usa o coreto, vamos usar o coreto pra fazer coisa." então eu tinha pensado nisso, e a turma, em reuniões você pode imaginar né, "grande, vamos fazer a primeira rede de coretos do Brasil." e a gente fez, acabou a ideia foi que a gente... claro, nada chegava ao final né, que a gente tinha muitas coisas e os percalços da burocracia são brabíssimas. Eu até, quero ter a oportunidade de contar a minha, a minha carta de demissão né. Então, eu sugeri fazer uma espécie de um festival de bandas do Rio de Janeiro porque eu sabia que o Rio de Janeiro tinha uma tradição de bandas, mas só que essas bandas não tinham onde se apresentar, ninguém estava interessado nas bandas, ninguém tinha... pra contratar uma banda pra se apresentar num teatro e tal, não vai dá certo esse negócio e tal. E aí juntou essa ideia dos coretos né, que eram em praças públicas, lindos né, um lugar espetacular, você tinha 360 graus de visão e ao mesmo tempo um som espetacular pra banda né, realmente e o público, você tinha espaço pro público, então tá feito ali, tá prontinho e tal, "Armando vamos lá fazer esse negócio, você consegue fazer?" eu me lembro que eu saí viajando num calhambeque lá do Departamento de Cultura era um carro da Secretaria de Educação né, estava escrito do lado de fora que eu estava... todo mundo achava que eu era professor, estava chegando lá pra investigar, examinar as escolas, e eu fui visitar as praças com coretos do Estado do Rio inteiro né. Cheguei a conhecer lugares que eu nem sabia que existiam, Bom Jesus de Tabapuã, Natividade cidades que o carioca não tinha menor noção que existia, quer dizer, tudo que era acima de Campos não era mais do Estado do Rio de Janeiro, mas está cheio de cidades lá. E todas têm praças e todas tem coreto. Então se viu ali a perspectiva de ter uma rede única né. Nada no Brasil, nem cinema, tinham tantos quantos coretos que foram encontrados naquele momento. E as bandas, por sua vez, também existiam, todo mundo felicíssimos, "poxa, vocês estão pensando em recriar essas bandas? Eu troco trompete..." outro toca não sei o quê, aí saía lá do fundo do armário o cara trazia um instrumento que não tocava há 20 anos entendeu? Então que literalmente foi arquivado né, literalmente foi desmontado e assim por diante e tal, uma felicidade absoluta. E aí eu cheguei, voltei depois de duas ou 3 viagens desse tipo, aí surge então o personagem fundamental chama-se João Rui Medeiros, eu acho que ele já faleceu, mas que foi a pessoa, que de alguma maneira foi como todos os grandes chefes, você tem sempre alguém que viabiliza a chefia, a chefia nunca é uma coisa que acontece sozinha né. Uso o seu prestígio, uso o seu nome etc. e tal e tudo, mas ela não rola se não tiver alguém que faça essa coisa andar. Isso aí você pode vê a história dos grandes personagens que de alguma maneira atuaram em algum tipo de liderança no mundo, você vai ver que tem alguém ali que ninguém sabe as vezes quem era, e você sabe... mas muitas vezes você não sabe e tal. E esse João Medeiros era, digamos assim, o motor do Departamento de Cultura. Era um sujeito com uma multinformação como todos nós ali e tal, isso era um pouco a característica daquele time, e com vastíssimo network enorme, que hoje nós chamamos de network, mas com uma rede de amigos em todas as áreas. Então ele conhecia gente... Era um homem de teatro basicamente e eu acho que ele começou como produtor de teatro que deu ele essa bagagem né, o produtor é sempre o cara que sabe como é que a máquina funciona, ele vai lá... e se não funciona, onde é que emperra em tenta desemperrar, ele sabe como é essas coisas, talvez a profissão, em todas as áreas da cultura, ele é o cara que vai e faz as coisas acontecerem. É quase que um mestre de obras, o engenheiro, o arquiteto são fundamentais e tal, mas se não tiver o mestre de obra, não rola. E o João Rui, claro, essa comparação é até sacana com ele, que ele foi muito mais que isso, ele um intelectual e tal, mas só que ele tinha essa capacidade, ele era um intelectual de alto nível e ao mesmo tempo ele tinha essa capacidade. E que o Grisolli respeitava e ouvia né. E o Grisolli rapidamente percebeu que ele não ia fazer nada se não tivesse um cara como ele e ele teve a inteligência de chamá-lo, "olha, fica aqui comigo" e ele era no mesmo nível que eu, nós éramos um grupo de assessores né DAS não sei das quantas que ficávamos cada um lá, ninguém sabia exatamente fazendo o quê, mas era esse grupo que assessorava o Grisolli e tal. E a partir daí, com isso feito, o João Rui então chega e de uma certa forma ensinava né, o Grisolli como é que tinha que fazer. Então no meu caso, eu cheguei com tudo levantado e tal, e ele disse, "agora você tem que abrir um processo" e me explicou lá como é que eu tinha que preparar um processo, tudo tem que ter um processo, nada funciona no estado sem um processo e tal. Aí eu perguntava como é que faz um processo, e o Grisolli também, como é que faz, pra quem faz um ofício, bom, em resumo, eu sei que 3 ou 4 meses depois que eu tinha feito esse levantamento, eu até um dia cheguei para o Grisolli, "acabou aquele negócio da ideia dos coretos e tal?", "é, o negócio dos coretos, João Rui, o que que aconteceu com os coretos?", "não, tá tramitando" foi aí que eu conheci o verbo tramitar né. Esse era o verbo fundamental pra entender o que estava acontecendo. Então as tramitações, eram absolutamente todo tipo de tamanho, etc. e tal. Então, naquele momento, o João Rui trouxe a informação de que ia tramitar mais uns 3 ou 4 meses, até que eu assumi. E aí um dia, eu acho que eu fiquei lá uns 6 ou 7 meses, apareceu lá, eu cheguei na minha mesa, tinha um negócio mais ou menos de uns 70 ou 80 centímetros, quase um metro de altura de papel, aquela famosa pasta né, em que encima processo numero tal... instaurado, instituído no dia tal... quando eu olhei para aquele processo pela frente, eu, que não tinha uma carta de demissão no bolso, virei pro Grisolli e disse o seguinte, "olha, diante do tamanho desse processo, eu queria que você me liberasse dessas funções porque eu levarei no mínimo uns 6 a 8 meses pra lê esse processo" e tal. E, realmente, eu não fui feito pra isso, eu não tenho aptidão, eu não tenho nenhuma vocação pra isso, e a partir daí eu pedi demissão, quando diante da foto... se tivesse fotografado aquilo era divertido que era eu, o Grisolli levando pra ele o trambolho com maior, um peso enorme, devolvendo pra ele, e o João Rui assistindo dizendo, "Não tem outro jeito, é assim que a coisa funciona" e tal. Então nunca aconteceu essa história dos coretos e tal.
PEDRO: Essa é uma coisa que eu acho interessante, você falando dessa turma que estava começando na secretaria, como é que... por que que houve essa concessão para a Secretaria de Cultura? Ou seja...
ARMANDO: Para o Departamento.
PEDRO: Para o Departamento. Porque pela repressão...
ARMANDO: Nada. Isso é um milagre. Eu chamo isso de um soluço na história política da cultura brasileira né, esse departamento é um soluço... eu acho... você olhando, eu nunca parei pra pensar nisso, mas por talvez né, primeiro porque, como sempre as pessoas são mais importantes do que as situações, então a Myrthes Wenzel que eu conheci pouco dizem que ela dirigia uma instituição de ensino em Niterói que era um espécie assim de um pouco um colégio de aplicação privado em Niterói, uma cabeça, um pouco uma mistura de um colégio de aplicação com a Escola Parque né, e com um pouco com alguns pensamentos libertários né de alguns educadores da época, desde Paulo Freire passando por alguns internacionais, as experiências inglesas né de educação de jovens e assim por diante, que eram todos eles tinham incomum essa característica libertária. Então, quando, estranhamente um militar né, que era digamos assim, o governador do estado naquele momento nomeado pela Ditadura, Faria Lima se eu não me engano o nome dele, ele era Almirante ou Brigadeiro, eu não me lembro qual era a patente e ele não entendia nada de educação, mas aparentemente, alguém na família indicou a Myrthes como uma pessoa preparada pra cuidar de educação e tal, o que aparentemente, uma excelente escolha, serviu o currículo dela né, então, o currículo perfeito pra isso, então... ideologicamente talvez não tão antenado com o que se pretendia, mas aí, comeram mosca e ela foi em frente, topou e assumiu lá a secretaria e partiu para o trabalho dela na educação. Então, o que eu imagino que aconteceu, é que ela... existia um Departamento de Cultura cujo o cargo de diretor tinha que ser preenchido, então, ela deve ter ido ao mercado e procurado saber, "escuta, tem algum nome? Alguma pessoa interessante..." e como eu disse antes, o Grisolli tinha acabado de deixar um cargo que tinha uma visibilidade e uma importância enorme, que era editor do Caderno B do Brasil, se ele fala isso, naquela época era como se dissesse que você era o diretor de jornalismo da TV Globo né, para cuidar de assuntos culturais. Então, é evidente, misturando com o New York Times Review Books, entende, o cara, o cara que realmente dirigia o espaço mais prestigiado do país na área de cultura. Era uma boa maneira de... não era difícil de vender esse nome pra alguém e tal. Então ele estava meio disponível, como todo intelectual não tinha emprego e tal e tudo, um salariozinho, mesmo que fosse uma coisa... mas era um dinheirinho. E ele deve ter visto ali uma possibilidade de... ali deve ter entre uma coisa e outra conversando com a Myrthes deve ter dito, "olha, se você quer que eu venha trabalhar com você, eu vou fazer um trabalho marcante, um trabalho que vai ter características X Y Z e vou convidar pra trabalhar comigo um monte de gente que pensa assim né, a senhora concorda?" "não..." eu me lembro que eu conheci, eu estive com ela 3 ou 4 vezes, uma senhorinha gracinha, ela me lembrava muito a Condessa Pereira Carneiro que era dona do Jornal do Brasil essas senhorinhas assim tipo, ela devia ter uns 60 anos, um oclinhos e tal, muito divertida e tal, "mas que ótimo" ela falava sempre assim, "que ótimo, mas que ideia bonita." e tal, assim então, conquistou todo mundo, Grisolli se sentiu totalmente a vontade. Então essas coisas, é um episódio, como eu chamo de soluço, uma coisa que ninguém esperava que dali, né, não foi nada planejado, nada disso e apenas disso ela fez uma escolha e dessa escolha então as coisas começaram a acontecer e todo mundo percebeu isso. São Paulo o pessoal de São Paulo vinha pra cá, o pessoal do Rio Grande do Sul "o que que está acontecendo aqui que vocês estão conseguindo fazer essas coisas e tal?" claro que, não pensem que as coisas não tinham repercussão e não tinham também... sofríamos uma crítica enorme né, a ditadura naquele momento tinha uma popularidade razoável né, então não era uma assim, "ah vocês são... que bom que vocês estejam aqui." isso era para um grupo né, mas para outros não. Realmente era incrível.
BERNARDO: Gerchamn me contou uma história engraçada da Myrthes que houve uma queixa lá no departamento...
ARMANDO: Várias né?
BERNARDO: ... que tinha gente pelado no parque lá? E aí a Myrthes foi lá no parque lá visitar a escola, chegou, no dia eles organizaram uma aula de modelo, modelo vivo.
ARMANDO: Modelo vivo. É.
M1: Ela chegou, e ela falou "é claro! é óbvio ver gente nua.".
ARMANDO: É. Como é que vai fazer... Como é que vai fazer...
BERNARDO: E modelo vivo, vê se pode? Aí ela adorou a escola, passou o dia, tomou café, comeu coxinha de galinha.
ARMANDO: Não... ela foi pouco lá, ela não era uma pessoa muito de ir, era uma senhora né e tal, e também ela morava, ela continuava morando em Niterói, então ela não tinha muito tempo livre, fora de trabalho de gabinete né, de poder visitar as coisas, tinha coisas espalhadas pela cidade inteira né, então ela realmente, raramente ia aos lugares. A gente ia muito lá, eu ia muito ao gabinete dela com esse João Rui que era literalmente, que era... por isso que eu digo, ele era um personagem fundamental que ele que ajeitava as coisas pra quando chegasse no gabinete dela já estava tudo nos conformes, entendeu? E tal. Ele rapidamente criou uma relação muito boa com a burocracia né, que tem a burocracia permanente, não vamos esquecer também que a gente chegou, a gente sempre chega nesses lugares, mas já tem uma máquina lá funcionando, entendeu? Então o importante é isso, sempre o novo com a máquina não falam, e a partir daí a máquina expele o novo o mais rapidamente possível né. Isso eu aprendi, no meu caso, no exemplo que eu dei eu tive, quer dizer... Eu não consegui, eu tive que respeitar a máquina né, e quando o tal processão ficou pronto, a máquina cumpriu o seu papel, pegou a minha ideia e disse assim, "essa ideia aí..." terminava o processo, "...é possível fazer." quer dizer, terminava dizendo assim, e com milhões de exigências né. Como é que fazia pra pagar essas pessoas, como é que você ia se algumas pessoas já tinham sido funcionários antigamente da Prefeitura da de Bom Jesus de Tabapuã, como é que faz para ele poder tocar pra um serviço do departamento que era do Estado e nós éramos do Estado separados, então... Sabe? Aí depois juntou confusão, essas loucuras do Rio de Janeiro e tal. Então, isso a burocracia faz maravilhosamente bem. Então o importante é isso. Então a Myrthes fez isso e o João Rui fez justamente essa... azeitou essa relação entre o novo e máquina.
BERNARDO: Eu tive a sensação de que a hora que a gente foi interrompido aqui, àquela hora pelo telefone, você estava caminhando pra contar a história do por que que a carta de demissão.
ARMANDO: Isso. É. Foi... Bom, primeiro a minha relação, daí um dia o Grisolli começou a formar a equipe né, se eu não me engano acho que as primeiras pessoas que ele chamou foi a Cecília Conde, foi eu o João Rui foi o primeiro, o João Rui foi a primeira pessoa que o Grisolli aceitou né, digamos assim, o cargo, quando o João Rui disse que toparia ir com ele, então essa é uma questão, que se quiser fazer a história do Rubens, a gente tem que passar por isso aí, por que... aí o João Rui chega pra mim e diz assim, "Armando o que que você acha da ideia de se transformar..." então a gente mexia naquela escola, naquela loucura toda numa dessas reuniões que a gente tinha semanais onde todo mundo falava tudo. Eram, talvez as primeiras reuniões, digamos assim desorganizadas né que não tinha pauta, não tinha nada. O Grisolli sentava na cabeceira e só... era uma reunião um pouco lembrando as reuniões que a gente tinha no jornal, aquelas formosas reuniões de pauta que você vai decidir a edição do dia seguinte. Então, claro que ali tinha algumas coisas que tinham sido discutidas, se estava rolando algum problema na PETROBRÁS evidentemente que aquilo ia fazer parte da reunião, de alguma maneira ia se discutir, alguém ia sugerir, ou fulano fala com ciclano e tampouco isso. Então tinha as coisas obrigatórias que eram continuidades digamos assim daquilo que não tinha sido resolvido e, a partir dali, liberdade total, e como eu estava no início do processo, a ideia era agitar. Então, botar pra quebrar, ou então discutir esses teatros sempre primeiro, porque aí era a área, digamos assim né, de prazer e privilégio do diretor né, (Grisoli) sempre ali. A Marília Pêra era uma figura fundamental nesse momento, porque o Grisolli para as pessoas saberem, ele fez o nome dele como dramaturgo e como diretor de teatro para uma peça de um autor pouquíssimo conhecido e que chamava Onde canta o sabiá?, e existia um tetro chamado Casa Grande que não tem absolutamente nada a ver com esse que a gente conhece hoje, era um teatro vagabundermo, que ficava no Leblon e era um teatro que tinha uma tendência experimental e tal, e aí o Grisolli montou lá essa peça com a Marília Pêra praticamente estreando no teatro né, e aceitando fazer uma peça com um diretor desconhecido, de um autor desconhecido e uma linguagem absolutamente diferenciado de tudo o que se fazia naquela época. Já era um pouco também de novo, como eu disse, nada disso aconteceu por acaso, é porque existia um teatro na França né que estava em profunda revolução, havia um autor, se eu não me engano, um diretor chamado Javier, eu nunca me esqueço desse nome, que é um autor que mudou a história do teatro contemporâneo, quer dizer, transformou o teatro... acabou com... criou... eliminou espaço no palco, ele é o responsável pela eliminação do espaço no palco. Quer dizer, a plateia passou a fazer parte do teatro. Isso é uma... Olha hoje em dia, pô, que coisa banal e tudo, mas de novo né, as coisas... tem alguém que vai lá e pumba, faz né. E o Grisolli ficou muito impressionado com aquilo, etc. e tal e tudo e trouxe para o Brasil esse conceito da participação, ele tinha participado também de alguma maneira, ele fez parte do grupo do Teatro de Arena em São Paulo né que era onde realmente o teatro brasileiro fez também a sua revolução e aqui no Rio o Opinião né, estava sendo... o Opinião famoso Teatro Opinião estava levando a peça né, primeiro com Nara Leão e depois com Maria Betânia e onde o Grisolli também ficou maravilhado com aquela arena, aquela ideia que era um espaço de arena, e como funcionava bem. Quer dizer, você podia contar uma história né, com todo mundo ali, meio que funcionando em um teatro de arena. De novo não foi uma invenção nacional, mas eram coisas que foram forjando essa ideia de você juntar palco e plateia e tal. Não era o caso do Pinel que o Pinel a plateia só funcionava porque ou chorava ou cantava junto né, ou se manifestava politicamente né, porque a peça tinha esse papel e tudo, mas não tinha, do ponto de vista dramatúrgico, não se previa nenhuma participação da plateia. Então, quando foi feito isso, as reuniões todas começavam sempre com teatro, então... e o Departamento de Cultura tinha vários teatros sob a sua orientação então, aí eu deixava... todo mundo deixava rolar, a Cecília tinha um papel importante porque ela tratava das questões corporais, ela era uma pessoa voltada pra música, mas ela também tratava... naquela época não existia especialistas em danças contemporâneas, nada disso e tal, então, era balé e ponto final né. Então, a Cecília fazia esse papel, que a família dela tinha uma escola de música lá na Graça Aranha, tem até hoje, se eu não me engano, na Graça Aranha, o Conservatório. Então, ela opinava sobre essas coisas e tal, era uma jovem guerreira e tal. Então, a partir de um determinado momento então ficava tudo liberado e tal, e aí, apareceu a história da arte com um pouco naquele contexto que eu estava falando um pouco antes, olha, eu percebi ali uma oportunidade de, literalmente, dar um pouco mais de musculatura praquela tragédia que era ser artista naquele momento né, pô, quem sabe, de repente vamos formar gente, vamos ter um espaço né, em que essas coisas possam acontecer e tal. O Rubens era absolutamente vidrado em tudo, ele era... essa é minha tese, ele tinha um tesão enorme pela Lina Bo Bardi, ele achava a Lina uma mulher interessantíssima né, já era casada com o Bo Bardi e tal, e tal, seríssima, uma arquiteta em pleno processo de reconhecimento e tal, e ele conheceu a Lina, se eu não me engano acho que em São Paulo, acho que ele conheceu a Lina, e realmente, eu também conheci, era... nós tínhamos todos... o Rubens era um pouquinho mais velho do que eu, devia ter uns 26, 27 anos, eu tinha, sei lá... nós estamos em 75 né, 74, 75, então eu estou com mais 29, 29, 30 anos e o Rubens está com 32, sei lá quantos ele tinha. E aí, quando começou a discutir o Parque Lage pra cá e o Parque Lage pra cá e tal, eu disse assim, "por que que a gente não aproveita e faz de lá, dá uma guinada, levar pra lá o que exatamente o que está acontecendo em termos de linguagem..." ou seja, realmente ter... deixa os outros lugares, como o próprio Belas Artes na cidade e tal, são museus estabelecidos, mostrando um trabalho que está... o próprio Museu de Arte Moderna já estava fazendo... não vamos esquecer que o Museu de Arte Moderna é o espaço em que o Rubens e praticamente todos esses artistas eram o único espaço do Rio de Janeiro quer permitia todos eles, realmente fazer experiências, a Ligia Clark dava aula lá, o Goeldi dava aula lá, o Rubens não saía de lá, todos nós... cinema, a cinemateca do MAM fez né, nós conhecermos todos um cinema que não era apenas um cinema americano, quer dizer, o Museu de Arte Moderna ele é fundamental, aliás uma bela ideia de um dia vocês fazerem um trabalho é o Museu de Arte Moderna porque eu acho que não existe nenhuma instituição talvez no Brasil que tenha né, se você analisar, quer dizer, desde o início, ou até com a dramaticidade, com os incêndios e com os problemas de toda ordem que teve e tal, mas é espetacular, é uma história, uma importância arquitetônica, não tinha nem o Aterro do Flamengo quando o museu foi construído, imagina? Quer dizer, foi a primeira coisa do aterro, foi antes do monumento aos Pracinhas, então o projeto do Reidy é uma coisa revolucionaríssima, até hoje né, arquitetos do mundo inteiro... Calatrava toda vez que vem aqui pra vê o Museu do Amanhã que está sendo feito, ele faz questão de passar lá pra vê o que que você pode fazer com o concreto e tal e tal. E aí, fora isso que a gente está falando aqui todos esses artistas né, passaram por ali não apenas artes plásticas né, o museu virou um espaço de pensamento, de inquietação extraordinária e tal, sem falar de política e tal, que realmente, que vem tudo junto né, depois. Mas, fecha parênteses. Então, o museu era o único espaço né, só que o museu era um museu, então ele não podia dar ao lado didático a importância que eventualmente deveria ter, então foi aí que eu sugeri essa... em uma dessas reuniões, essa ideia de fazer, que já estava mais ou menos quase que madura naquele momento e o João Rui vira-se para o Grisolli e diz, "olha, é possível fazer isso se a gente quiser fazer a gente faz." aí o Grisolli falou, "mas não vai..." com medo de né, de novo... todo mundo ali andava em ovos né, tal, a menor ideia, primeira inexperiência absoluta, pelo envolvimento e pelo cenário político que estava em volta e tal. Vamos em frente, vamos em frente, a reunião terminou, a ata lá e tal. Tentar transformar o Instituto de Belas Artes do Estado não sei das quantas em um espaço pedagógico, seja lá o que for, nomes todos que a burocracia achava que deveria ter. E então, na semana seguinte, quem que vai fazer uma coisa como essa né? Quem é que tem peito pra encarar essas pessoas? Um desafio como esse. Então, voltando, o Rubens tinha uma relação com a Lina muito legal, e eu, de uma certa forma através dele, acabei tendo também, conheci a Lina quando ela vinha ao Rio, todos nós embevecidos com aquela italionona realmente maravilhosa, deslumbrante né, meio sujinha, mas interessante né, isso era uma coisa muito europeia naquele momento né, e no Rio de Janeiro você percebe muito, em São Paulo não aparece tanto, mas aqui né as pessoas usam roupas mais leves e tal, eu comentava muito com Rubens isso assim, "tem esse probleminha aí" ele, "eu também acho e tal, mas tudo bem, vamos em frente e tal." eu não sei se eles chegaram a ter ou não um caso, eu tenho minhas dúvidas, é uma coisa que nunca me reconheceu nada, mas ele gostaria de ter tido. Eu não sei se aconteceu. E aí, a gente conversou uma vez, nos encontramos no Degrau, era um restaurante que tinha aqui no Leblon, mas que não ficava onde fica hoje, ele ficava do outro lado da rua, exatamente em frente em um prédio vagabundinho que tinha na frente, era lá que funcionava o restaurante, e aí vai, conversa vai e conversa vem e essa ideia então a Lina deu a maior força né, porque eu não tinha... eu era um guri né, amigo dele também, a minha opinião não era tão importante assim, mas quando a Lina disse, "olha, eu estou achando a ideia interessante, vai em frente..." etc. e tal. Aí a Lina foi embora, a gente... nem a levamos, ela foi embora, ela ficava na casa de uma amiga na lagoa, aí nós ficamos bebendo lá e tal e aí foi nesse momento que eu me lembro que foi que a ideia surgiu, tipo aquele jeitão marrento do... "eu vou fazer uma coisa dessa?" e tal, e começou aquelas coisas do Rubens, um certo, me deixou em um mau humor também permanente, por ter que aguentar aquela burocracia, bota todos os problemas cada um de nós tínhamos, só que ele, de fato, a diferença da gente é que eu era acesso, então não tinha a responsabilidade em princípio objetivo nenhuma, saía de lá, falava tudo o que eu tinha que falar, aliás é ótimo ser assessor né, que assessor fala, faz e acontece e tchau, mas alguém tem que fazer né, e aí então a ideia era justamente que o Rubens fosse o diretor. Não era apenas dizer assim, "conceitua, o que que você pensa" e tal e entregar pra aguem fazer, a ideia era que ele... era a única maneira que eu achava que a escola ia acontecer é se ele fizesse. Aí de novo, pelas características de novo, eu jamais indicaria o Antônio, jamais indicaria o Vergara, o Roberto, toda aquela turma lá não tinha o menor sentido que não ia acontecer porque não é da vocação, agora o Rubens tinha essa característica, o Rubens era, como era marrento né, era autoritário né, no bom sentido. Você pode ser autoritário escroto ou pode ser um autoritário que funciona e tem horas que a autoridade é fundamental e o Rubens era autoritário, gostava de ser autoritário, mas ao mesmo tempo era charmosíssimo, então quando ele queria ele mudava o tom de uma hora pra outra sem nenhum problema, se ele achasse que o tom tinha que ser um tom de sedução, de humor, seja lá o que for, ele mudava o tom de voz, então ele fazia as coisas acontecerem, então esse conjunto de características pessoais me davam a certeza... quanto aos intelectuais, eu não tinha dúvida nenhuma, mas esse conjunto pessoal era para o bem ou pro mal. Ele podia também, por exemplo, o autoritarismo podia tranquilamente levar um rompimento com o próprio Grisolli como várias vezes quase que aconteceu, porque o Grisolli era o oposto do Rubens né, o Grisolli tolerava o Rubens em nome do projeto que ele estava desenvolvendo. E eu entendia perfeitamente, eu várias vezes tive que segurar lá as pontas, quer dizer, "mas Grisolli isso aí é fundamental, tem que ser feito, e o único jeito vai ser esse mesmo, vai ter que remover isso, vai ter que brigar com fulano..." porque as coisas estão na frente né, você vai avançando e vão aparecendo obstáculos e tal. E não fosse a característica da personalidade do Rubens essa coisa não teria acontecido. E muitos amigos que eram inimigos do Rubens viraram amigos porque queria participar desse processo, então tudo isso o Rubens foi capaz de entender, entendeu? Então, por isso que eu chamo desses dois lados do (Rubens), tinham pessoas que ele não tolerava, o Rubens era muito radical, "eu não gosto do fulano" então esse cara não podia chegar nem perto, mas em nome desse projeto, muita gente acabou participando dele, apesar de não ter nenhum tipo de relação pessoal com ele. Então, pra responder objetivamente a pergunta, eu acho que a ideia da escola nasce exatamente em função de tudo aquilo que tinha acontecido antes com o Rubens, os argumentos que eu utilizei pra que o Rubens aceitasse essa cargo tanto com ele, nessa conversa com a Lina e depois, dizendo, "Rubens é só você que pode fazer isso, você é a única pessoa que tem essa bagagem, essa história e a marra pra poder encarar isso", a marra é uma expressão daquele momento eu estou usando hoje propositadamente, eu acho que hoje ninguém sabe o que que é marrento né, mas eu faço questão que apareça dessa forma, porque isso que foi a marca daquele momento. E a história da carta, nasce exatamente nesse encontro, por que conversando com a Lina a gente disse "Lina o que que pode acontecer de pior né?" me lembro de ter usado essa expressão, "é ele, realmente não dá certo ele vai embora e ponto final." e aí ela disse assim, "ele pode ser preso né..." então o máximo que ela poderia dizer naquele momento né, e disse né, ela disse assim "o máximo é você ser preso." que hoje tantos amigos nossos foram, etc. e tal então não estamos falando da época da tortura isso foi um pouco antes, então a prisão já era uma coisa ameaçadora, mas não tinha o terror que passou a ter a prisão anos depois, que importante saber também né, que a partir de um determinado momento no Brasil tem um período de 2 ou 3 militares no Brasil que de fato instituíram né, claramente os porões da tortura, então era um risco que ninguém queria correr e tinha a ver também com a luta armada e com uma série de outras coisas que aconteceram no Brasil naquele momento. Então, naquele exato momento eu falei, "prepara uma cartinha..." entendeu? Tranquilamente. Eu nem falei cartinha, "prepara um bilhete né", porque a gente só falava por bilhete, faz um bilhete que ninguém queria encarar a burocracia, dizendo o seguinte, deixa pronto assim, "não quero te encher muito o saco, então você vai lá e deixa o bilhete lá na mesa dele e ponto final.". Então não tinha... "ah pode fazer isso?" "claro que pode, é uma maneira que você está sendo convidado, você também se desconvida e vai embora" e tal, "então eu acho que eu vou ir." com aquele jeitão, ele falava meio anasalado né, "acho que eu vou encarar essa daí mesmo, tá precisando mesmo, e tal, vou tomar porrada, mas não sei o quê, mas de repente vai ser bacana e tal.". Ele estava muito animado, ele estava louco pra fazer né, e como todos nós né, tem um lado que a gente finge que não está a fim, faz um pouco né... não usar aqui uma expressão de baixo calão, mas de qualquer forma dá a entender de que, "não, pede mais um pouquinho pra eu poder topar." então, daí eu falei com mais 3, 4 pessoas e sobretudo os artistas, o medo do Rubens era a reação e perfeitamente compreensível, por que isso também é preciso colocar no contexto histórico, a Lina não tinha nenhum envolvimento político, ao contrário, através do marido né, que era um cara que tinha passado tudo o que você pode imaginar, era um queridinho do Chateaubriand, então topava tudo, tinha uma questão moral diria assim, minimamente resolvida, tinha né, realmente, suspeitas como pouco alguns trabalhos que não foram para o MASP e foram pra casa dele, então aquilo já rolava na casa dele tal, e a Lina era mulher do cara. Então, ela não podia de jeito nenhum, dizer que era assim ou assado. Não se tocava-se, fingisse que não se tocava no assunto e todo mundo ia fingindo isso, fingindo aquilo e vamos em frente. Pegava o lado bom das coisas a Lina era uma super arquiteta, super competente, intelectual de altíssimo nível, além de uma mulher deslumbrante etc. e tal, então junto é sempre muito bom você ter tudo, realmente, em um lugar só. Então a partir daí... isso para o Rubens também era particularmente importante, eu percebia que as mulheres do Rubens eram mulheres muito interessante. Ele sempre foi muito preocupado com mulheres que fossem ao mesmo tempo interessantes do ponto de vista intelectual e tal, mas sempre com a preocupação da questão estética né, o Rubens é uma pessoa que sempre conviveu com mulheres bonitas. Então foi isso, então na realidade, aí ficou esse problema, me lembro perfeitamente que ele me disse assim, "o que que o pessoal vai achar?" que eu aderi. É um problema, de fato, seríssimo, é a grande questão colocada pra todo e qualquer intelectual naquele momento que fosse fazer um trabalho né, que envolvesse o governo, e com todo o razão. Isso em qualquer regime, você imagina o que está acontecendo na Coréia do Norte ou na Venezuela, ou seja, lá o que for... você dizer, "não, eu vou trabalhar no Ministério da Cultura, eu vou trabalhar no departamento x, departamentos diretamente vinculados a este governo..." que ninguém faz diferença, ninguém quer saber, mas comparando o momento que a Dilma tá vivendo, se eu falar que vai trabalhar com a Dilma tem um peso né, "pô não vai trabalhar com a Dilma a essa altura do campeonato, de repente a Dilma há 6 anos atrás tudo era mais razoável. Existe uma... os intelectuais tem pureza ou essa necessidade, digamos assim, de independência que eu acho que faz todo o sentido. E o Rubens mal ou bem, ele era, se dizia um pré anárquico, é um... fazia parte de um grupo libertário, então de repente pra ir trabalhar com o Governo Militar entendeu? Não é uma coisa muito simples. Então ele realmente levou algumas semanas pra tomar essa decisão, eu deixei ele totalmente a vontade, eu pedi ao Grisolli pra não encher o saco dele, o João Rui estava querendo, "não, liga para o Gerchman e vê como é que tá lá, se ele resolveu ou não resolveu, resolveu ou não resolveu.", eu assim, "deixa ele em paz que essa é uma decisão que não é uma decisão que cabe a nós termos que chegar lá e dizer pra ele faz isso ou faz aquilo, já disse tudo o que tinha que dizer.", aí depois ele foi chamado lá no gabinete, explicaram pra ele como é que funcionava, que ele fez as perguntas subjetivas, qual era o salário né, queria saber qual era o poder que ele teria ou não teria , até aonde ele podia ir ou não podia, aquelas coisas naturais de quem entra lá. Mesmo assim, ele chegou e foi... usando aí uma terminologia política, foi consultar as bases né, e ao consultar as bases ele recebeu muitos sins e muitos nãos enérgicos, e o Rubens ficou muito mexido com isso, muito mexido e eu diria até que em um determinado momento eu achava que era não. Porque ele era sensível, esse tipo de coisa, o Rubens era uma pessoa que tinha uma... como é que eu podia dizer, ele era uma personalidade forte, mas muito sujeito a humores e relações, ele era muito influenciável, era... se usava a expressão, emprenhado pelos ouvidos, então ele não queria de jeito nenhum ter na Biografia dele a ideia de que ele foi um adesista, isso pra ele fazia um mal talvez mais pra ele do que pra outros, aquilo pra ele era uma coisa mortal, mas por outro lado ele estava enlouquecido pela ideia de fazer esse projeto, porque era uma coisa única né, quantos artistas no mundo tiveram a oportunidade de fazer o que ele fez? E fazer... apesar de a gente ter respondido a ele que ele tinha liberdade total de fazer, justamente, nós mesmos não sabíamos se ele tinha ou não tinha, a gente disse pra convencê-lo a topar, mas eu confesso a você que eu fiquei muito surpreso, a cada dia que eu ia lá e que eu via o avanço que ele teve. Inclusive depois que eu saí, eu continuei frequentando, nós ficamos amigos o resto da vida, eu ficava, eu chegava lá e falava, "eu não acredito que você está fazendo." e ele ficava na maior felicidade, evidentemente e tal. A imprensa apoiava loucamente, embora tivesse um crítico que era do próprio Jornal do Brasil chamado Walmir Ayala né, que tinha sérias dúvidas sobre o que estava acontecendo lá, e era normal porque os críticos daquele momento também não estavam preparados, ninguém estava preparado para o que estava acontecendo lá, isso que é o dado interessante. Então, essa carta, que não era uma carta, era um bilhete né, pelo menos a ideia era de um bilhete e funcionou como que quase que como uma metáfora, entendeu? Era uma coisa meio que diz assim olha, "você..." acho que essa ideia do bilhete nasceu como uma forma de ele resolver esse dilema que ele não ia resolver nunca, né, porque ele estaria permanentemente sob pressão desse grupo, claro, não podia ser diferente. Enquanto tivesse Ditadura ia ter gente que era absolutamente contra, então ele seria o adesista, por melhor que ele fizesse tudo lá e tal, e ao mesmo tempo esse desejo enorme que ele tinha de ir pra lá e fazer. Então, eu tenho a impressão de que esse bilhete funcionou como um álibi né, funcionou e também ao mesmo tempo como uma metáfora de uma situação daquele momento. Quer dizer, eu tenho... a situação é essa né, e eu acho que esse bilhete representa essa situação e eu estou com ele comigo, eu estou plenamente com a ideia de que ele faz parte da minha dúvida, então isso me dá o direito de poder fazer isso e explicar, que era fundamental pra ele, para os contras de que ele sabia o que estava fazendo, que não era talvez o politicamente correto pra fazer naquele momento, mas que o projeto em si justificava o assunto. Eu acho que era isso. Então a gente toda vez que conversava com isso eu me lembro que não tinha uma vez que juntasse os amigos todos né, e os artistas são todos como todos os jornalistas, publicitários todos eles, quando podem, dão uma porrada, falam mal, esculhamba, quando tiverem oportunidade. Então, bastava o Rubens se afastar "é um adesista, se vendeu pro regime." e não tinha jeito, o cara estava 10 minutos antes, "oh, bacana aquele projeto, vou participar daquele projeto." as mesmas pessoas que participavam do projeto, tinham sérias dúvidas se deviam estar fazendo aquilo ou não. Então isso foi um dado que realmente fez parte daquele momento, e acho que ele sofreu muito com isso, sofreu muito, foi um processo... dividiu comigo em vários momentos diferentes uma angústia enorme pelo o que ele estava fazendo, mas era o (Rubens), o (Rubens) era uma pessoa sempre dramático né, era outra característica dele, era um dramático por natureza, era sofrido, mas ele mostrava esse sofrimento o tempo todo. Ele tinha um humor sarcástico, sacana, falava mal de todo mundo também, quer dizer, entrava no jogo, ouvia tudo e tal, mas ao mesmo tempo ele estava em uma missão, ele sabia que tinha uma missão ali e ele se imbuiu dessa missão e vamos que vamos com todos os problemas.
ISABELA: Ah, só pra... te escutando assim, a sensação que me dá é que o Governo ficou distraído com a cultura porque não devia dar nenhuma importância...
ARMANDO: Claro. Nenhuma.
ISABELA: ... e ao se distrair, deixou vir para o Departamento pessoas que eram da elite do Jornal do Brasil né?
ARMANDO: É.
ISABELA: Do pensamento da cultura, da discussão na época, então Grisolli, você e outras pessoas, eu entendo que isso veio...
ARMANDO: Claro. E todos os convidados dele né. Amigos dele, inclusive, que não eram nem amigos meus e nem amigos desse pessoal do Jornal do Brasil amigos, pessoas que foram formadas da geração, a geração dele né.
ISABELA: Sim:
ARMANDO: O Hélio né, o Hélio não era do Jornal do Brasil, mas era um revolucionário...
ISABELA: Pois é, mas eu acho que assim, esse ambiente que é dado ao Rubens com uma... sei lá, vislumbrar uma coisa que ele pudesse realizar...
ARMANDO: Ah, sem dúvida.
ISABELA: Você falando, nessa época, a sociedade não participava das coisas.
ARMANDO: De jeito... Nada.
ISABELA: Então assim, vocês receberem esse espaço como um espaço para a sociedade civil participar, eu acho que até...
ARMANDO: É isso. Era um benefício.
ISABELA: ... quase Vanguarda isso...
ARMANDO: Sem dúvida. Total.
ISABELA: Porque isso só voltou a ser falado com Fernando Henrique né?
ARMANDO: É isso mesmo. Tem razão.
ISABELA: Então, eu estou assim ouvindo e pensando, a escolha de vocês por ser arte, e por ser também da cultura, por você ter tido esse contato, estar geograficamente na Zona Sul..
ARMANDO: Claro. Saber a importância daquilo.
ISABELA: ... de uma outra forma...
ARMANDO: Tá no Degrau né?
ISABELA: ... e esse exercíamos mesmo da cidadania desse ponto de vista de vamos mudar as coisas em uma época que era inviável pensar nisso. Então isso ganhou um valor pra mim agora e eu fico pensando, só para terminar, essa é a minha pergunta. O que que foi isso lá e que história é essa que se percorre durante 40 anos? Eu não sei se isso pode ser uma última pergunta do teu ponto de vista e hoje, olhando esse cenário, também sabe? Até ponto essa data ficou ou não ficou...
ARMANDO: Legal. Bacana.
ISABELA: E uma coisa que eu achei bonita de você falar, e que bom que você depois fechou, dessa característica da gente achar que as pessoas que querem mudar o mundo, mudar alguma coisa, elas tem que ser marrentas né, elas tem que brigar.
ARMANDO: Não tem outro jeito.
ISABELA: Elas tem que brigar, e elas tem que desistir da...
ARMANDO: É. É verdade. Muito bacana, é porque chegou o recado chegou aí, eu estou contente que é isso mesmo. Você agora acabou me provocando né, e aí vem o meu lado publicitário um pouco, qual é o título que eu botaria né, pra esse, pro jeito né, do Rubens ter encarado esse momento né, essa vida dele, essa trajetória artística do Rubens né. Eu acho que o Rubens foi na realidade, ele participou da luta armada a maneira dele. Então, eu acho que ao invés de ter pego em armas literalmente né, como muitos fizeram naquele momento, ele encontrou nesse projeto, e não só no projeto, que a vida dele de um modo geral, até com esse período que o pessoal chama de mais light, que é esse período final, em que os beijos de repente aparecem, apaixonados e tal, e muita gente mete o pau pra variar né, "como Rubens aquele fazendo essas coisas, pintura?" e tal, quer dizer, é isso, eu acho que a luta armada se faz de várias maneiras né, então a característica de todas elas, juntas, esse percurso é isso, é um artista né, que realmente encontrou no seu trabalho né, na sua atividade dentro e fora do trabalho a sua luta armada. Quer dizer, ele lutou o tempo todo com as armas que ele podia dispor naquele momento. Então armas que vão das coisas mais radicais, quando ele vai para os Estados Unidos e encara momentos existenciais complexos, ele tem uma vida pessoal complexa, tudo né... ele foi encarando cala luta dessa de uma determinada maneira com as armas que ele dispunha. Até que ele chega no final né, ele realmente começa a ficar mais, aparentemente mas suave né, que é muito uma questão de idade, é o famoso percurso natural de todos nós e tal, mas pra mim né, o que eu conversava com ele, eu dizia assim, "você nunca abandonou a luta armada." porque ele mesmo brigava o tempo todo com o seu próprio trabalho. Isso é uma coisa que pouca gente sabe. Aliás que também não é uma característica única dele, é que elas são, de modo geral, silenciosa né, as pessoas quando fazem isso, fazem, nem sempre publicamente, as vezes fazem até publicamente, "não, eu nego isso, acho isso uma porcaria isso que eu estou fazendo, não tem mais nada a vê comigo." pessoas dizem isso quando, as vezes instigados por jornalistas ou fazem esses depoimentos que é muito comum hoje em dia né, depoimentos pra história e assim por diante e tal, mas o Rubens fazia isso intimamente né, então, eu me lembro que eu via muito pouco o Rubens nos últimos anos que a gente ficou distante e tal, por razões de trabalho, essa vida maluca que a gente leva e tal e nem sempre a gente está com as pessoas que quer, mas ele me dizia isso né, que realmente, "eu não entendo por que que as pessoas esculhambam tanto o meu trabalho atual, mas é a arma que eu tenho no momento, eu faço isso com maior vontade, empenho, prazer e assim por diante.", tal. Então eu acho que é isso, talvez a história do Parque Lage né, voltando a ele, ele é talvez o seu momento que ele usa as armas mais poderosas e mais visíveis né. As armas em que ele tinha um exército com ele né. Todas as outras foram lutas individuais né e assim por diante, mas esse é o momento em que ele é o General né, digamos assim de uma situação em que tem muita gente envolvida.
CLARA: O Projeto chama O Pensamento Pedagógico de Rubens Gerchman.
FREDERICO: Sei.
CLARA: E a gente quer contar um pouco a história do Parque Lage.
FREDERICO: Vocês vão sugar tudo do Gerchman. Vocês não são terríveis.
EUGENIO: É. Mas vamos espremer primeiro você. Queremos saber tudo de você. Na verdade um corte. A exposição agora foca num arquivo de Gerchman. E ela vai se desdobrar em todos os outros que ele convidou para participar. Realmente o pré-texto é esse período do Parque Lage, mas colocando ele em contexto com o espaço experimental do MAM com a Revista Malasartes que ele também estava vinculado. Então ele sirva como um pré-texto para ir por que realmente todos os todos vocês se reuniam com bastante frequência e circulava num circuito que tinha esses corredores como eu te falava. Meio foi se estabelecendo um grupo aos corredores isso aí. E o curioso é que no ano 75 vocês coincidem, a convite de Pontual, vocês coincidem em uma mesa redonda pra debater a situação da arte brasileira nesse momento que foi publicado em...
CLARA: Debate.
EUGENIO: ... foi em Casa Grande...
CLARA: Casa Grande Debate.
FREDERICO: Eu me lembro que houve o debate.
EUGENIO: ... é curioso por que é um ano que parece ser muito importante. Um ano que está nascendo a Malasartes. É um ano que está esse debate rolando. E é o ano que Lina Bo Bardi está chamando a Gerchman para que assuma a direção da escola. Ela e o Paulo Grisolli. Que aí chamam ele e ele até fica meio na dúvida. Por isso a exposição se chama “Com a Demissão no Bolso”, a amostra vai ser chamada assim. Porque ele repete uma e outra vez em várias entrevistas que ele não sabia que fazer entrando na escola. Não havia sido diretor nunca, de nada. E na verdade o que a gente quer ouvir de você é começando com isso. Que necessidades tinham o contexto brasileiro na época? Por que esse foco é uma mudança à atitude desde arte...é muito enfático isto aparece na opinião de vários de vocês com relação à década anterior. Não é casual também que, por exemplo, que Malasartes sai publicar o texto de Resende sobre a educação, sobre a formação dos artistas. Sai publicado pela primeira vez o texto de Kaprow - “Miseducation in Arts” [00:04:16] o texto do Kosuth.
EUGENIO: Mas você era um dinamizador na época?
FREDERICO: Sim.
EUGENIO: Realmente você era um cara muito ativo na época e de alguma maneira o Parque Lage nasce com esta conexão, com o espaço experimental do MAM)com o que já havia sido feito. Existia uma forma no ar de propor uma maneira de fazer arte diferente. Eu queria que você falasse...
EUGENIO: Que vínculo você acha entre as práticas experimentais do MAM que você acompanhou de perto e o que viria a ser o espírito que iluminou, o que primou na proposta da Escola de Artes Visuais que trazia Gerchman e o grupo de colegas que acompanharam?
FREDERICO: Bom. A memória já tá falhando em algumas coisas, etc., e tal, em alguns pontos. E às vezes as datas complicam um pouco às vezes a lógica, digamos assim, do pensamento e tal que a gente vai desenvolvendo. Mas realmente, até onde minha memória funciona... realmente, quer dizer... por que a escola do Parque Lage ela era na verdade um antigo Instituto de Belas Artes que era, digamos assim, uma entidade acadêmica. Tá entendendo? Os diretores sempre foram acadêmicos e etc.. Ela, aliás, começou eu acho que na Urca se não me engano. Depois é que foi transferido. E ela tava sob a administração da secretaria ou Departamento de Cultura da Secretaria de Cultura do Estado que nesse momento era o Grisolli, Paulo Afonso Grisolli que era um jornalista, ele era ligado ao Jornal do Brasil, etc. e tal, e uma pessoa que tinha assim um bom diálogo etc. e tal. E ele então é que convidou o Gerchman para dirigir. Agora o ano aí...?
CLARA: 1975.
FREDERICO: 1975. Bom. Então isso já vem um pouco depois na verdade de algumas coisas que a gente já tinha feito no museu. Então eu tenho que recuar um pouco. Ocorre o seguinte. Quando eu me instalei no Rio de Janeiro em 1966, se não me engano é julho. E, curiosamente, aí entra o Gerchman também por que a última coisa que eu fiz em Belo Horizonte, de onde eu sou, foi uma exposição chamada Vanguarda Brasileira. Na verdade o que eu chamei de Vanguarda Brasileira era um certo grupo de artistas atuantes no Rio de Janeiro. Só entram na verdade artistas do Rio de Janeiro. E dessa exposição participa Gerchman, participa Antônio Dias, o Hélio Oiticica, o Escosteguy, senão me engano a Maria do Carmo Secco, o Dileny Campos que eram casados na época e tal. E essa exposição ela foi realizada na reitoria da Universidade de Minas Gerais num prédio novo ainda inacabado. Tá entendendo? E o Gerchman, o Vergara e eu acho que o Hélio tinham feito uma exposição numa galeria que tinha sido inaugurada também alguns meses antes. Ele fez aquele cartaz: “Pare”.
CLARA: Na Relevo?
FREDERICO: Na Relevo. Não. Não é Relevo. Foi numa outa galeria.
CLARA: G4?
FREDERICO: G4. Exatamente Tá entendendo? E então pra esse mesmo, vamos dizer, logotipo do “Pare” serviu também para a exposição lá da reitoria que era na verdade um cartaz catálogo comprido assim num papel, digamos assim, precário, quase uma espécie de papel jornal, uma coisa assim e tal. E atrás tinha uma pequena fotografia, um pequeno currículo e um depoimento desses artistas e tal. E essa exposição... Belo Horizonte nesse momento tava até fazendo algumas coisas assim bem agitadas, etc. e tal e ocorreram pelo menos dias coisas interessantes nessa exposição. O Hélio Oiticica participava... tinha sido chamado pra participar dessa exposição. Por alguma razão que no momento me escapa ele não pode ir pra Belo Horizonte. Mas já tava impresso esse cartaz, o depoimento dele e tal. Então eu, o Gerchman e o Antônio Dias nós decidimos recriar as obras do Hélio Oiticica por que ele não foi e não mandou as obras. E nós fomos então a um mercado municipal onde se vendia frutas, verduras, essas coisas, que era um ponto assim meio boêmio assim no sábado. Às vezes a gente ia na hora do almoço beber, comer moela de galinha, essas coisas todas. E ali então a gente tomou aquele conceito de apropriação que era um conceito que foi trabalhado principalmente pelo Hélio Oiticica, que de certa maneira corresponde com as diferenças necessárias com um conceito do Duchamp, de ready-made. E então o que a gente fez? A gente comprou uma cestinha de ovos. Antigamente tinha aqui uma cesta de ovos que era feita de arame. Então ela pressionada ela virava uma coisa assim horizontal. Era fácil de levar. Quando você abria então ali era uma cesta especificamente pra conter uma dúzia de ovos mais ou menos. E compramos isso e levamos pra exposição. E ao mesmo tempo a gente pegou um carrinho de pedreiro, esse de construção de obras, com brita, com areia, etc. e tal e os trabalhos do Hélio Oiticica então foram na verdade esses dois aqui que nós recriamos esse trabalho. E ocorre que nesse momento, a exposição foi em 65 ou 66, depois vocês olham, e, portanto, ainda tava no início da ditadura, quer dizer, do golpe militar, etc. e tal. E no vernissage da exposição...por que o reitor da universidade pela primeira vez era alguém de fora da área de Ciências Humanas. Ele era na verdade professor de... aquele tratamento de dente. Como é que é?
EUGENIO: Odontologia?
FREDERICO: É. Faculdade de Odontologia. Me esqueci o nome dele. Era uma pessoa muito digna, muito interessante e tal. E depois ele... e ele fez um bom trabalho. Em um certo momento ele foi até convidado pra ser ministro da cultura. Mas aí não deu certo. Os paulistas não aceitavam que não fosse alguém de São Paulo, que a cultura é paulista, aquela coisa toda e tal. E ele acabou sendo derrubado. Porque o Ziraldo também entrou. Aí começou a falar não sei o que lá da broa brasileira, aquela coisa meio regionalista, etc. e tal. E acabou que fizeram uma carga muito forte contra ele e ele dançou. Mas então ele tava lá como reitor. Estava também, veja só, o cara que iniciou o golpe militar no Brasil, a ditadura militar, que era um tal marechal... General Guedes que depois escreveu um livro ridículo, tá entendendo, com título assim, “Tinha que ser Minas” por que o golpe nasceu em Minas. Um dia antes do golpe, primeiro de abril, eu tinha estado na União Soviética, enfim, numa viagem por todos esses países socialistas, e eu vinha mandando as minhas matérias. Naquele tempo a gente mandava as reportagens pelo Correio. Então no dia anterior eu tinha essa: Introdução à União Soviética. E eu já tinha publicado há uns 3 meses. Por que essa viagem durou quase 4 meses e tal, uma entrevista que eu fiz com o Khrushchev. Eu sou um dos únicos brasileiros que entrevistou o Khrushchev. Tinha até uma foto com ele assim abraçado, que me roubaram essa foto na volta. Tá entendendo? E depois minha casa... a casa da minha mãe foi invadida pela polícia. Tá entendendo? Eu tive um irmão preso, aquela coisa toda. Você já imaginou se achassem lá a fotografia do Khrushchev.
Quando eu fui a Cuba que eu fotografei com o Fidel aí eu fiz algumas cópias, distribui em alguns lugares etc. e tal. Mas essa não. Então tava lá esse general, tava o ministro. E aí o pessoal decidiu fazer um happening. Então houve uma guerra com os ovos do Hélio Oiticica. E sujaram a sede da reitoria. E as pedras também. Tá entendendo? A brita, aquela pedra miudinha com areia, etc. e tal. Então essa exposição no vernissage acabou num happening fantástico. Tá entendendo? O reitor permaneceu impassível. Não tomou nenhuma providência pra reprimir. O general também deve ter ficado assim muito assustado. Também não sabia o que fazer. Sabia dá golpe. Mas então ocorreu isso. Então essa exposição foi a minha despedida de Belo Horizonte. Foi a última coisa que eu fiz. Foi exatamente em 66. Então alguns meses...
EUGENIO: Você se despediu de Belo Horizonte com ovos e briga?
FREDERICO: É. Pois é. E uns 3 meses depois eu vim pro Rio de Janeiro por que eu morava numa situação muito parecida com essa. Era um sítio assim. Sabe eram só árvores assim. Era uma ribanceira também e tal. Tinha uma vista assim da cidade, etc. e tal. E meu sogro cometeu uma besteira e tal e vendeu o terreno. Então foi a desculpa que eu tive. Já há muito que eu queria vir pro Rio de Janeiro. Aí viemos pro Rio de Janeiro. Vim com os pais dela e tal. E então o seguinte. Quer dizer, com essa exposição de Belo Horizonte eu tinha contato com o Gerchman, com o Dias, com o Vergara e tal. Então quando eu vim pro Rio de Janeiro eu estive ligado inicialmente com esse grupo, inclusive Vilma que trabalhou com Gerchman na revista... no Grupo Manchete. Que Vilma trabalhou também como ilustradora e como diagramadora em jornais de Minas. E então ela foi ser assistente do Gerchman e tal. Gerchman era meio malandro. Fazia uns rabiscos e Vilma que continuava. É aquela coisa veloz do Gerchman. O Gerchman sempre foi... o apelido dele era de sujão. E então, quer dizer, foi o meu primeiro contato. Aqui cabe até também fazer menção a uma exposição que ocorreu aqui no Rio de Janeiro em 63 do Grupo Otra Figuracion da Argentina que era o Luis Felipe Noé, o De la Vega...Eu até... eu acabei de escrever um livro sobre o Noé que deve sair esse ano lá em Buenos Aires.
FREDERICO: É. É um grupo que retoma a figuração depois do período concreto, do informalismo, uma certa influência da norte... da POP, mas talvez mais ainda da Europa. E era um grupo assim bastante radical e com uma produção muito interessante, sobretudo Noé e o De La Vega que acabou também se matando e tal. E depois tinha também uma ligação com eles um outro artista que até foi um revolucionário também, cujo nome tá me escapando agora, que inclusive passou pelo Brasil. Fazia hapenning. Era um cara sensacional. Que eu os coloquei na Primeira Bienal do Mercosul.
CLARA: Isso não tem nada a ver com a Primeira Bienal Latino Americana não, com o Mário Pedrosa e o Ferreira Goulart quando vocês tão juntos?
FREDERICO: Não. Na primeira não. Não é primeira... a bienal chama-se Primeira Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Eu sou o fundador dessa bienal.
CLARA: Sim. Sim. Mas a bienal de 78.
FREDERICO: Não. Teve uma Bienal de Arte Latino Americana em São Paulo.
CLARA: Isso.
FREDERICO: Mas não era Mario Pedrosa. Na verdade... quer dizer, ele participa nos debates. Eu também participei.
CLARA: Sim. Sim.
FREDERICO: Quer dizer... mas isso foi organizado pela Fundação Bienal de São Paulo.
Bom. Então é o seguinte. Esse grupo fez uma exposição em 1963 na Galeria Bonino. E quando eu fiz uma exposição na Galeria BANESDI de uma releitura de opinião 65 então eu colhi uns depoimentos que eu fiz aqueles catálogos assim tudo em preto e branco. Então era uma galeria um pouco maior do que isso. Sei lá. O dobro desse espaço aqui. mas eu conseguia botar documento, botar uns quadros, etc. e al. E aí tem um série de depoimentos e uns dos depoimentos tinha o Dias também e tal, tanto o Dias quanto o Gerchman são muito afirmativos na influência que essa exposição teve no trabalho deles por que tinha uma agressividade muito grande, tinha uma conotação política, não em todos eles, mas Noé tinha, o De La Vega tinha. E essa expressão surpreendeu esse grupo e tal e afirmam que foram influenciados por essa exposição. Uns 2 anos depois houve uma segunda exposição desse grupo no Museu de Arte Moderna que reafirma também. Essa exposição até foi apresentada no Rio pelo Geraldo Ferraz que é um crítico paulista que foi num certo momento assim até num período mais próximo do Modernismo assim... foi casado com uma Pagú. Mas depois ficou muito contido ou quase reacionário assim a análise deles de artes e tal. E eu mesmo tive uma briga muito forte com ele. Mas essa exposição foi significativa e tal. E o Gerchman chama a atenção exatamente é pra esse caráter assim, essa pintura suja. Ele chama. Não sei... eu acho que ele chega a usar essa expressão de uma arte suja e tal. Quer dizer, essa coisa da velocidade com que o trabalho é executado, então quer dizer, o Gerchman se sentiu muito estimulado por que na verdade ele era considerado pelo grupo ou por pessoas de fora como um cara meio sujo que não cuidava muito do... não era um artista refinado. Quer dizer, não tinha sutileza assim. E ele era muito direto. Não só na abordagem dos termos, os termos que estavam acontecendo, essa ligação dele muito com a cidade, com as coisas que tão acontecendo, com o que ocorria na cultura de massa, mas também na própria execução, que ele sempre foi muito veloz. Ele sempre descartou muito rapidamente das coisas. e eu até na época fiz um contraponto. Porque o Gerchman tem um trabalho chamado “Rei do Mau Gosto”, que é um quadro, tem um somatório de ícones, kisch o símbolo do Vasco da Gama, quer dizer, os negócios de turismo com vidro bisotê, essa coisas todas. Então eu fiz um contraponto com o Vergara que seria o “rei do bom gosto”. Porque o Vergara sempre foi um artista muito virtuoso assim, desenho muito fino, muito requintado. Ele de certa maneira teve alguma influência do pessoal de São Paulo que sempre foram muito cuidadosos em preparar as coisas. É um trabalho demorado, aquela coisa toda. E o Vergara já nunca me perdoou muito por isso e tal. Mas recentemente nos voltamos a comentar isso. Por que eu continuo achando que o Gerchman tem... o Vergara também é um artista importante. Fez coisas boas. Mas era essa diferença que era fundamental. O Dias ficava a meio termo, digamos, nessa situação. E o Roberto Magalhães na dele, naquelas coisas místicas. Era um grupo importante. E esse foi o primeiro grupo com quem eu me entendi no Rio de Janeiro. Mas depois a geração que realmente eu vou apoiar assim assumidamente como crítico de artes é a geração do Cildo, do Antônio Manoel, do Barrio que viviam na minha casa. Bom. Então o que ocorre? Enfim, a gente viu... eu continuava acompanhando os trabalhos deles. E eu quando cheguei ao Rio fui chamado pra dar aula, pela Carmem Portinho, para dar aula no Museu de Arte Moderna. E curioso. Foi num dia assim, numa tarde, e numa esquina eu me encontro com o Roberto Magalhães que morava lá no final do Leblon. E o ateliê dele era uma coisa assim... tinha um clima assim místico. Tinha incenso, tinha as coisas, tinha uns cadernos fantásticos. Entende? E a gente vinha contando dos acasos. De repente eu vou assim, eu vou ao museu, falo com a Carmem, a Carmem me chama pra dar aula de História da Arte. E eu então comecei dando aula lá de História da Arte. E um ano e meio depois, acho que dois anos eu assumi a coordenação do setor de curso do museu. E mais tarde a Carmem sai do museu, vai pra ESDI e me leva também pra ESDI. Eu dei aula na ESDI durante também uns dois anos. Eu sou autodidata. Eu não sou formado em nada. Bom. Então o que aconteceu? O museu... eu comecei a perceber que a estrutura de ensino do museu era uma... na verdade não havia estrutura. Quer dizer, era uma coisa mais ou menos comum que existia em várias outras instituições, mesmo em Belo Horizonte. Quer dizer, uma instituição que atrai um certo número de artistas ou teóricos ou críticos de arte pra dar uns cursos, mas é como se fosse apenas um espaço a ser alugado pelo professor. Então cada um cuidava da sua divulgação, fazia os press-release. Um tinha 50 alunos. Outro tinha 2 alunos. Mas não se entendiam nem nada. Então não havia nenhum... e alguns eram decididamente ruins como professores, segundo a minha observação. Mas geralmente eram os que tinham mais alunos. E isso me incomodou desde cedo. Quando eu assumi a direção desse curso, então aí eu fiz uma reformulação. Na época inclusive publiquei um folheto muito bem detalhado. E o que é que eu propus nessa época? Eu propus o seguinte. Por que geralmente as aulas no museu eram a tarde. Geralmente entre 3 e 5 horas. As aulas... tinha ateliê de escultura, ateliê de pintura, ateliê de gravura, ateliê de mais alguma coisa e...
CLARA: Onde que elas aconteciam, Frederico? Dentro do museu espacialmente falando? Onde acontecia?
FREDERICO: Naquele tempo só existia o Bloco Escola. Não existia ainda o bloco exposição. Então as exposições eram inclusive nesse bloco ainda. A Opinião-65 foi nesse Bloco Escola. Depois é que graças a Carmem Coutinho é que num acordo com o Fundo Monetário Internacional que ia fazer a sua reunião anual ou bianual que eu acho que eles faziam em determinados países, eles então construíram o bloco escola dentro do projeto do Afonso Eduardo Reidy. Inclusive todos os móveis que foram usados foram deixados pro museu. Nesse momento então, quer dizer, as exposições foram só no Bloco Escola. Por que o Bloco Escola foi criado dentro do projeto e houve um projeto... essa nossa conversa vai até amanhã, se você não parar. Vocês têm que interromper.
EUGENIO: Ai. Eu adoro. Aí fica fácil.
FREDERICO: Bom. Aí então, quer dizer, o Tomás Maldonado que era o líder dos concreto-invencionistas...
EUGENIO: Que depois chegará a ser diretor da ULM. Da escola de ULM.
FREDERICO: Exatamente. Que era considerado uma máquina de pensar. Todo mundo elogiava a capacidade dele. Adoravam as aulas dele. Ele era um cara enorme, gigantesco assim. E ele a convite da Sodré que era a diretora presidente do museu, que era diretora do Correio da Manhã também, que era um jornal de oposição, foi fechado praticamente pela ditadura pra fazer um projeto de uma escola. E ele fez o projeto de uma escola técnica de arte. Esse projeto foi aprovado, mas nunca chegou a ser realizado.
M: Ele foi convidado a fazer esse projeto em que ano mais ou menos?
Frederico: Isso por volta de 55... 56. Porque nessa época funcionava no Rio de Janeiro uma coisa chamada Grupo Frente que mais ou menos se compara com o Grupo Ruptura de São Paulo que era o Waldemar Cordeiro. Então o Grupo Frente)nasce em 54 e faz a primeira exposição em 54 no IBEU, a segunda em 55 no museu e depois em 56 avançando pelo interior em Volta Redonda e Resende. Uma das exposições de Volta Redonda foi exatamente dentro da Companhia Siderúrgica Nacional que era a primeira grande, que hoje é a Vale do Rio Doce, que é a primeira grande usina do Brasil, um projeto que vinha da época de Getúlio Vargas ainda, aquela coisa nacionalista. E o presidente era um general. E o Maldonado que tinha passado antes pelo Brasil em 53 numa exposição anterior que também teve uma influencia muito grande no grupo frente. São duas exposições de argentinos. A de 53 dos concretos que foi pra Holanda e a de 63 da Outra Figuração. A primeira influenciou o Grupo Frente que tá na origem do neoconcretismo. E essa segunda influenciou esse grupo que de alguma maneira nasce na primeira metade da década de 60 para contrapor ao concretismo. Mas tendo o Hélio Oiticica como uma espécie de ponte entre os concretos e... depois eu mando a conta. E então o seguinte. Bom. Esse projeto não funcionou pro museu, mas ele está na origem da Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro, a ESDI. Porque nesse momento, já em 63 que ela foi inaugurada, quando era o governo do Lacerda que era um dos líderes da direita, inclusive dentro do golpe militar, mas o secretário de cultura era um crítico de arte, o Flexa Ribeiro, filho de um antigo professor com o mesmo nome Flexa Ribeiro que era professor da universidade que, aliás, derrotou o Mário Pedrosa quando os dois disputaram o cargo por que o Pedrosa a tese dele era sobre a Gestalt. Talvez o primeiro livro sobre Gestalt. Não só no Brasil. No mundo. Mas ele foi derrotado pelo pai desse Flexinha, o filho. Foi uma tese sobre o espanhol lá o Velazquez. Então ela deu origem à Escola Superior de Desenho. Mas nessa época de quando ela foi inaugurada ele já era reitor da universidade da Escola Superior da Forma em Ulm. E ele já tinha deixado a liderança dos concreto-intencionistas. Bom. Então o museu tava nesse pé. Que dizer, as aulas eram à tarde. Geralmente era de 3 a 5. Geralmente era o seguinte, quer dizer, as mães que levavam os filhos pra escola. Tinha um vazio aí de 2 horas, 3 horas entre deixar o filho lá e buscar na saída da aula, então iam fazer curso lá no museu.
EUGENIO: Mas você assume que também o Maldonado pode ter influência no Bloco Escola?
FREDERICO: Não. O curso foi previsto nesse Bloco Escola. Dentro do projeto do Reidy que é anterior ao Maldonado, o museu foi inaugurado em 48 ou... tava previsto que ali seria um Bloco Escola. Agora o projeto de como seria a escola foi do Maldonado. Eu nunca li esse projeto. Mas ele não foi a frente ou por falta de recursos e tal. Mas quando decidiram fazer a Escola Superior de Desenho Industrial onde eu também dei aula durante quase 2 anos, então chamaram o Maldonado pras primeiras reuniões. Mas o projeto foi modificado ao longo de uma sequência de reuniões com outros participantes, professores, críticos e alguns que vieram de fora. E alguns dos primeiros professores, eu sou da segunda turma, o Bergmiller, Wolney aquele outro lá do Ceará, eles tinham ligação com a Ulm.
FREDERICO: Inclusive como bolsistas. O Wolney foi. Pois é. E o Bergmiller veio de lá. O Bergmiller foi aluno do Max Bill. Por que o Tomás Maldonado como bom argentino ele derrubou o Max Bill que foi o fundador da escola e assumiu a reitoria e tal. Depois ele foi pra Itália pra trabalhar com o Olivetti, aquelas coisas todas. Então quer dizer, a coisa dele tava muito mais ligada ao mundo do desenho industrial e tal. Por isso que se encaixou. Mas o projeto foi remodelado. Eu não li o projeto original, mas enfim, na sei até onde ocorreram mudanças. Bom. Naquele momento em que eu me instalo e que fui ser professor no Rio então a situação era mais ou menos essa. Então o que eu fiz? Na minha ideia foi fazer com que os cursos tivessem uma ligação entre eles. Quer dizer, que os cursos não fosse isolados. Que o museu deixasse de ser um lugar apenas que se alugava um espaço pra dar aula. Por que quando o museu foi inaugurado foram dados cursos. A Fayga Ostrower deu curso. Aquela outra... enfim. Agora vai. Nomes na nossa idade a gente esquece sempre. Mas não tinha uma... não era... não vou conseguir me lembrar agora. mas tinha li um grupo de professores que dava aula. Tinha inclusive sei lá uma pessoa responsável pela área de cultura. Então, quer dizer, no momento que eu entrei eram esses cursos. Escultura e tal. Então tinha o Pedro Correia de Araújo que é filho do outro que tinha o mesmo nome e que é bastante acadêmico e tal, mas tinha um domínio técnico. Depois foi Maurício Salgueiro. Tinha o grupo da gravura com a Ana Letícia, Edith Behring. Eu dava história. Pintura era o Ivan Serpa. E o Ivan também foi um dos pioneiros dos cursos de Arte Infantil, que inclusive já era um patrocínio do museu, mas antes do museu ter sido inaugurado ele dava aula num outro edifício onde era esse grupo carnavalesco que sai no sábado anterior. Era um edifício altíssimo ali, ao lado do Teatro Municipal.
EUGENIO: Mas você assume a coordenação do curso em?
FREDERICO: Em 69. Eu entrei no final de 66 e assumi... a coordenação.
EUGENIO: Daí você reformula?
FREDERICO: Pois é. Aí eu dava aula de história. Então eles me chamaram pra coordenar o setor. Eu então comecei a ideia de relacionar todas as atividades. O que me incomodava era a ideia de que naqueles ateliês só se aprendia técnicas de fazer isso, de fazer aquilo sem nenhuma responsabilidade. As pessoas entravam e saíam. Não tinha diploma. Não tinha nada. E a coisa pra mim não tinha muito sentido. Quer dizer, o que a gente critica às vezes, as dançarinas que passam 10 anos levantando o pé, pliê pra cá, etc. e tal. Ou então os pianistas que ficam o dia inteiro tocando. Eu não queria. O ateliê de gravura era muito isso. E o ateliê de gravura era uma coisa meio autônoma. Lá no fundo do museu. Mas lá que ocorreram as primeiras reuniões sobre nova objetividade brasileira. Então o que eu fiz foi isso. Tentar. E aí eu comecei chamar, 3D, ateliê isso, 3D, 3A, etc. e tal. E o que eu fiz foi obrigar. Quer dizer, então a ideia é o seguinte. O Aluno se inscrevia agora no museu e não mais no curso do aluno de um determinado professor. E ele podia percorrer todos os ateliês. Até fazer uma opção, digamos, por aquilo que mais tivesse e acordo com ele. Ao mesmo tempo eles eram obrigados, obrigados era maneira de dizer por que não podia pegar o cara pra botar lá dentro, de assistir aulas de História da Arte. Porque eu queria que ao mesmo tempo que aprendesse como fazer, pintar, como esculpir, tivesse uma informação cultural, uma informação histórica. Isso, quer dizer, inicialmente. Mas depois eu fui ampliando. Então eu criei o Curso de Cultura Visual Contemporânea que era... de certa maneira mesclava um pouco a ideia de arte e designer. Então esse curso, veja só, a duração dele era de 1 ano e eram aulas diárias pela manhã. E as pessoas pra entrar no curso tinham que se submeter a uma espécie de prova oral. Então tinha uma comissão que tava o Bergmiller, tava a Fayga, tava um crítico aí de Literatura muito conhecido, muito respeitado e mais alguém aí, etc. e tal. E era só pra 30 alunos. Uma das alunas era a Silvia. Não. Mas a Silvia fez o segundo curso. Por que entrou muita gente que se inscreveu.
CLARA: Uma fila de espera.
FREDERICO: Ficou uma fila de espera. Então dessa fila de espera nasceu um segundo curso, o Curso de Artes então, que aí estava a primeira mulher do Gerchman... a terceira, que era muito bonita e tal. As pessoas ficavam muito...
CLARA: Ela era aluna da ESDI.
FREDERICO: Não. Da ESDI acho que não.
CLARA: Da ESDI.
FREDERICO: No meu tempo não foi. Não foi minha aluna. Mas ela era aluna lá. então nasceu também esse segundo curso que por sinal foi até o que rendeu um pouco mais do que o primeiro por que vários artistas depois... o Nelson Augusto, o pessoal que depois se liga também a Parque Lage, o Amador Peres, quer dizer, pessoas assim. Bom. Então quer dizer que eu criei esse curso de amanhã. Quer dizer, eu começava então a ocupar o museu temporalmente, de uma forma mais integral. E aí depois nasceu esse outro curso também. Esse já não tinha obrigatoriamente essa duração de 1 ano. Entendeu? Mas funcionou. Enfim. E depois eu pensei também o seguinte. Que se podia dar aulas a noite. Então como o museu tava localizado junto ao Centro da cidade, um pouco à margem, mas eu sempre imaginei que aquelas pessoas que saiam do trabalho, das repartições públicas poderiam antes de voltar pros seus bairros, pras suas casas, pro jantar, pra outras atividades, que pudessem passar pelo museu e assistir não... aí não eram cursos, eram conferências. Então eu criei uma espécie de fórum em que tinham aulas todos os dias mais ou menos de 6 e meia a 8 horas da noite. Porque o museu... alguns iam pra áreas do museu pra namorar, pra ficar, antes de ir pra lá. Mas eles então eu achei que podiam assistir outras aulas. E ai os temas eram abertos. Podia ser quadrinhos, podia ser política, podia ser economia. Às vezes, excepcionalmente, era um curso que reuniam-se 2 ou pessoas. O artista, por exemplo, um percurso do objeto ao corpo. Eu, a Anna Bella e acho que o Guilherme Vaz. Então às vezes dava isso. E todo dia tinha essa aula. Aí eles pagavam uma coisa. Bom. Não satisfeito ainda então eu pensei, “bom. E o sábado e o domingo o que a gente pode fazer?”. Então quer dizer, no sábado tinha o curso do Ivan Serpa, que era o Curso Infantil do Ivan Serpa, que ele é um dos pioneiros. Um pouco depois da escolinha de artes que foi o... como é que e o nome? Depois vocês lembram aí. Que criou a escolinha e tal e depois ela motivou a fundação de escolinhas no Brasil inteiro e até na América Latina. Mas eu acho que o Ivan Serpa ainda foi anterior a ele. Mas ele dava esse curso e ele era muito apoiado pela Sodré, Leomar Muniz Sodré é o nome dela. Alzheimer é assim, 20 minutos depois a gente lembra. Mas me incomodava no Ivan Serpa que era muito respeitado, foi o idealizador e fundador do Grupo Frentes. Ele motivou uma série de coisas. Depois ele tinha muita publicidade. Ele dava entrevistas. Ele defendia uma arte geométrica naquele momento. Ele dava o seu curso. Mas ficava lá as mães ali ao lado das crianças. É outra coisa que me incomodava. Eu achava que aquilo influenciava negativamente por que uma das ideias de ensino de arte pra criança não é propriamente pra formar artistas. A ideia é pra estimular os processos criativos. Esses processos criativos eles poderiam ser aplicados na Política, na Sociologia, na Antropologia, no ensino não necessariamente de Arte. Mas o Ivan Serpa eu achava que no fundo ela tava querendo criar, ir formando jovens, não só crianças, mas pouco a ouço também jovens que se tornassem um pouco Ivan Serpa também porque o Ivan Serpa era extremamente meticuloso pra fazer as coisas, tinha um domínio técnico extraordinário, era um artesão de primeira. Mas eu achava que aquilo não tava funcionando. Além do mais aquelas mães ali perto eram prováveis compradoras de trabalhos do Serpa. Então aquilo me incomodava e eu achava que tinha que separar. As crianças tinham que ficar com o Serpa. Então eu consegui que alguns alunos meus transformados em monitores, que eu queria também um grupo de monitores, que começaram a fazer umas plaquetazinhas sobre arte conceitual, sobre etc. e tal, muito precárias. Então eu criei um curso pra essas mães. Enquanto as crianças tavam lá numa sala, na outra os monitores davam aulas sobre Arte Brasileira, Arte Internacional pra separar. Então isso... eu nunca tive uma relação assim... lá dentro do museu... não era brigas e tal, mas não era uma relação muito forte a minha com o Ivan Serpa. Depois eu escrevi muito sobre o Ivan Serpa, a mulher dele gostava muito de mim, achava que eu é que escrevia melhor sobre Serpa. Aquelas coisas. E então mais essa coisa. E, finalmente... isso era no sábado. E no domingo eu me entendendo muito bem com o Cosme, porque eu e o Cosme Alves Neto que era o diretor da Cinemateca que era um comunista stalinista, assim, acreditava. Tanto que no dia anterior ao golpe ele tava projetando Encouraçado Potemkin aqui no museu. E você sabe que quando ele foi preso queimaram o filme na frente dele. Negócio de chorar. E então...
CLARA: No domingo?
FREDERICO: No domingo eu usava a Cinemateca pra uma coisa que eu chamava Curso Popular de Arte. E esse curso ele era anunciado assim. Era uma vez por domingo. A Cinemateca tinha 220 lugares e a gente às vezes tinha 300 pessoas lá, iam sentando pelo chão e tal. Então num papel assim, numa folha de papel, a gente anunciava por mês. Então domingo tal vai ter isso. E aí também era uma coisa variada. Por exemplo, se vinha um artista no Rio de Janeiro, por exemplo, sei lá, um Humberto Spindola do Mato Grosso, por exemplo, pra expor na Bonino eu pedia que ele fosse lá, desse um depoimento sobre o trabalho dele. Se vinha aqui um Romero Brest da Argentina e de repente coincide que o Pierre Restani tá aqui, então a gente faz um debate com o Romero Brest, o Cildo. Então cada professor do museu se obrigava a dar pelo menos uma aula por ano nesse curso popular. Ele durou, sei lá, uns 3 anos. Então funcionava muito. Bom. E a última coisa dentro desse projeto é que apesar de tudo tinha um buraco em janeiro e fevereiro por que era considerado período de férias. E ficava naquela coisa que também me incomodava um pouco. E na verdade janeiro e fevereiro é o auge assim do Rio de Janeiro, é o sol, é o calor, todo mundo vai pra rua. Quer dizer, porque o carioca às vezes, “olha. Apareça lá em casa”. Na verdade, “Apareça lá na praia. Apareça lá no restaurante”. Nesse momento ele é todo pra fora. É tudo uma alegria. E eu achava que também tinha que aproveitar isso. Aí então veio a ideia dos “Domingos da Criação”. Quer dizer, os domingos nasceram, independente de um aspecto político que decorrido... foi em 60... 70, hoje tem quase 50 anos, se faz uma leitura muito política dos domingos, que na verdade não tava na origem dos Domingos da Criação, mas que eu não descarto. E hoje se você imagina que o “Som do Domingo” que foi o quarto... foram 6 domingos, foi o quinto domingo e tal, ao longo do dia por que a coisa começava por volta das 10 horas da manhã e ia até 6 horas da tarde. Passaram 10 mil pessoas ali no pátio do museu. Quer dizer, você em plena ditadura juntar 5 mil pessoas, 10 mil pessoas ali já era em si um ato político. E o Som do Domingo foi exatamente o domingo mais violento no sentido de que as pessoas tavam com tanto ódio dentro, quer dizer, a repressão, aquela coisa, que, por exemplo, a maneira que eles... eles usaram muito essas latinhas de cerveja e apertavam aquilo e batiam. Eu levei pra lá uns tambores assim de... esses tambores de gasolina. Então que aquilo era usado como uma coisa pro batuque. Esse percussionista famoso aí do Brasil. Como é o nome dele?
BERNARDO: Naná Vasconcelos?
FREDERICO: Naná. Tava lá fazendo coisas. Então se batia. Tudo era muito forte, muito violento. Mas também tinha gente tocando violino, tinha coisas dessa natureza. Então que a proposta era essa. Quer dizer, nasceu o domingo como uma extensão do setor de cursos. E o primeiro domingo, bom, isso por um lado, quer dizer, como uma extensão do setor educativo do museu. O Segundo motivo é que eu queria experimentar mais exaustivamente novos materiais pro problema de... como matéria-prima do artista. Já se falava na época de land-art, de happening, quer dizer, essas coisas todas. Então houve esse primeiro domingo que foi em janeiro. Foi até agosto. Era sempre o último domingo do mês. E a coisa funcionava o seguinte. Eu entrava em contato com algumas indústrias pra solicitar, enfim, uma espécie de sucata, de dejetos, de sobras, digamos assim, dessas indústrias. Por exemplo, se era papel aqueles...
CLARA: Bobinas.
FREDERICO: Bobinas. A Klabin, por exemplo, nos cedeu umas bobinas. O próprio jornal onde eu já trabalhava, no Globo, restos de boninas de jornal, que naquele tempo aquela coisa. Então isso... uma bobina daquela podia desenlaçar um processo como fez o Vergara. Ou então, por exemplo, fios. Ou tecidos, por exemplo, também eram aqueles blocos assim de sobras de tecidos, de farpas. Aquilo quando abria, aquilo se multiplicava. Aquilo era uma festa. Era uma alegria. Então, quer dizer, trabalhar um pouco essa ideia dos materiais. O Cildo até brinca no filme assim, “são as commodities”. Então, quer dizer, eu queria experimentar isso. E ao lado, quer dizer, juntando essa discussão sobre os materiais, o potencial desses materiais e a questão educativa então tinham outras questões ou outros princípios que apareciam. Primeiro a ideia de que todas as pessoas são potencialmente criativas e só não exercem a sua criatividade se não são proibidas de fazer isso. Ou por uma repressão paterna, ou por uma repressão política, ou por um ensino deficiente. Mas se elas são estimuladas todas as pessoas são potencialmente criativas. E eu sempre ressalvei que nem todas as pessoas criativas viram artistas e nem todos os artistas são também criativos por que tem os burocratas também da criação. Então isso era um princípio. Outro princípio o seguinte. Que todos os materiais em princípio são passíveis de se transformar em matéria-prima para o artista. Outra questão é que era preciso questionar por que os Domingos da Criação também colocavam uma outra questão. Por que não se deve esquecer que o setor de cursos estava dentro do museu. Então quer dizer, ao mesmo tempo havia uma discussão sobre o conceito de museu. Então, quer dizer, essa relação, digamos, tradicional do museu, em que o museu é uma espécie de depósitos de obras primas, quer dizer, de obras de artistas, no fundo como se fosse uma espécie de mausoléu. Mas o museu também estabelece uma relação assim meio ditatorial, digamos assim, entre o artista e o expectador. A relação é sempre essa relação assim... e também que tenha a sua correspondente. Por exemplo, o artista e o expectador, também o professor e o aluno, que é uma relação assim vertical. Então de respeito.
CLARA: Frederico. Tinha uma coisa muito linda que eu li que vocês faziam, vocês nesse momento, que era assim, era um convite pras pessoas irem ao aterro, “o aterro é de todos. A arte é de todos, é do povo”.
FREDERICO: Isso já é uma segunda... é uma outra coisa.
CLARA: E que as pessoas... o artista estaria ali o dia inteiro e poderia explicar a sua obra. Isso é muito interessante.
FREDERICO: Não. É. Mas isso já é um... aliás, na verdade isso é anterior.
CLARA: Isso é no...
FREDERICO: Arte no Aterro.
EUGENIO: Porque na verdade a mim pessoalmente me interessa. Que você sabe que quando eu escrevi, junto com o Hans, o conceito da Casa Daros um dos meus referentes foi o Domingos da Criação.
FREDERICO: Não. Exatamente. Pois é. Mas então, quer dizer, então tinha essas coisas todas. Então quer dizer, essa relação assim de sacralização da obra de arte. Então eu sempre passava na minha cabeça a ideia de que uma pessoa que não tinha uma informação cultural sobre História se colocava adiante dessas obras como se... e ao invés de estimular havia uma espécie de repressão. É como se cada um desses visitantes dissessem pra si próprio, “eu jamais serei capaz de fazer uma obra como essa”. Então aminha ideia era dizer o contrário. De que todos nós podemos fazer obras de arte se somos estimulados, se tem materiais, se tem um espaço amplo, se não há nenhuma repressão educativa com formas, etc., e tal. E a mesma coisa também a relação do aluno com o professor. Se eu tenho um respeito excessivo pelo professor eu também não vou avançar. Quer dizer, então são essas relações. E com isso também eu queria contestar um pouco essas pesquisas que se fazia sobre público de museu. Geralmente e, “por que você veio ao museu?”. Geralmente é, “ah. Qual é o artista que você gosta mais? Qual foi a obra?”. Era tudo muito acadêmico, muito burocrático. Bom. E, além disso, há outra ligação, e isso é extremamente importante, e explica também antes o que você falou. É que eu levava em conta também a localização geográfica do museu. Se eu já tinha considerado o museu como local de atração de funcionários públicos que são os tradicionais burocratas, quer dizer, pra ir ao museu pra assistir uma aula sobre Artes ou sobre algum determinado assunto, podia ir com a sua namorada depois saía lá pras suas pegações, eu também sempre levei em conta de que o museu tá num dos extremos do Aterro do Flamengo, tá no Aterro. Então, quer dizer, eu chegava ao requinte de dizer que pra mim o aterro era extensão do museu e não o museu um ponto distanciado do aterro. Porque tem outras fontes de... tinha coisa pra aeromodelismo, hoje tem negócio pra essas coisas de patins, tem uma série de pontos de lazer. Mas quer dizer, o museu não era muito considerado. E, finalmente, eu considerei também essa relação que existe entre meio e fim de semana, entre lazer e trabalho. Então, quer dizer, pelos títulos dos domingos havia uma reflexão sobre o conceito de domingo. O que significa o domingo dentro de uma estrutura capitalista em que as pessoas trabalham a semana inteira e no fim de semana vão desenvolver um lazer também burocrático. Ou vão pra um clube social, ou vão assistir só futebol, ou vão assistir... então, quer dizer, por que no fundo quem explora o trabalho explora também o lazer economicamente. É a mesma estrutura. Então eu levei em conta isso. E por que também um outro aspecto é que o museu ali naquele lugar ele era uma passagem pras pessoas que iam pro Aterro, pra praia, sobretudo no sábado e domingo. O pessoal, por exemplo, fronteiriço ao Centro do Rio de Janeiro, os bairros ali limítrofes em torno do centro burocrático do Rio de Janeiro passava por ali nunca entrava no museu. De repente eles passam ali tem uma multidão. Eles eram capazes de entrar naquela coisa e começar a criar. E os materiais eram colocados no museu. Eu recolhia aquilo, guardava num depósito. E no domingo então eu colocava aquilo e ia sendo, digamos, liberado ao longo do dia pra também não lançar tudo de uma vez. E aí você vê como era. O primeiro chamou-se por que é o “Domingo do Papel”. Na verdade era um “Domingo do Papel”. O outro era “O Domingo por um Fio”, o outro era o “Tecido do Domingo”, o outro era “O Corpo a Corpo do Domingo”, o outro era “O Som do Domingo”. Então, quer dizer, a ideia era discutir a estrutura, a tessitura, digamos, do domingo. O que é o domingo? Como ele é feito? Como ele é armado? Dai esses títulos que eram estudados. E, por outro lado, quer dizer, a gente começou com papel, por que eu e a fábrica gastava um pouco pra o dono lá, o presidente, uma hora, uma hora e meia pra convencê-lo, que já é um negócio fantástico. E eu, “não. Eu gostaria disso, gostaria daquilo”. E eles davam, até transportavam às vezes e tal. E tem o Domingo Terra Terra também que foi o mais radical. E então a gente guardava e distribuía. E inclusive surgiram até problemas internos muito curiosos porque os empregados do museu, os guardas e tal, ganhavam o salário mínimo. Por exemplo, o domingo... o tecido do domingo, tinham peças inteiras dadas pela Bangu. Bangu era uma grande fábrica de tecido que inclusive tinha uns desfiles de moda,. E, “pô. Meu filho não tem roupa pra vestir, vocês tão aqui desperdiçando”. Isso... roubavam ou tentavam roubar. Era uma situação assim meio constrangedora. Difícil até de explicar pra eles. Eu sempre fui muito amigo dos guardas e do pessoal de baixo do museu por que eu acho que museu sempre é o pessoal de baixo é que sustenta o museu. Têm pessoas que tão lá há 50 anos. Não melhoraram a vida. Mas enfim, tão lá. Então tinham essas questões que apareciam, por outro lado a crítica instalada nos jornais, o Walmyr Ayala e depois Marcos Berkowitz, o Cledivaldo Prado malhavam o tempo todo que a gente tava destruindo o museu, tava conspurcando o museu. Quer dizer, porque o museu na segunda-feira tava imundo. Mas já no final da tarde ele tava limpinho, impecável como antes. Então, quer dizer, eu comecei com o papel porque me pareceu uma coisa mais imediatamente ligada. O Vergara tinha dado um curso sobre... ou foi depois, não sei e tal, com o papel, por que ele que intermediou essa coisa da Klabin pra dá os papéis pra lá e tal. O Colares, o Antônio Manoel também acho que deram uns cursos lá, etc. e tal. E então, quer dizer, o papel era fácil de manejar.
EUGENIO: Aí é uma questão que a mim me... que eu vinha falando com você antes de que eu acho que depois no ano de 78 quando queima o museu muitas pessoas se referem, sempre enfatizam que se perdeu parte da coleção e acho que isso é importante. Mas eu acho que o que significou para o circuito aqui pra, digamos, as novas gerações nesse momento. Perderam o Núcleo Experimental que tinha, o Grupo Escola, o espaço onde o lazer é um caminho também de... um ponto meio entre fazer acatar-se e experimentar também na fuga. A mim me interessa porque realmente a gente faz suporte do período que estamos indagando. Realmente com o incêndio. É um momento que hay um antes e um depois. E que até tem uma repercussão no próprio ano, seja por coincidência ou não coma situação política, com o final do período, desse período de Parque Lage aí. Todos tão meio que associados em um câmbio de... uma mudança de espírito que irá ter mais tarde. Eu queria que você...Pois você é testemunha de todos esses momentos.
FREDERICO: Pois é. Mas olha. Então, quer dizer, tinha essa coisa dos domingos. A gente tentava discutir o que era o domingo por que eu me lembro num texto ai que eu fiz quando eu fui professor de uma escola de educação em Niterói, o Centro Educacional de Niterói, me escolheram uma vez lá pra ser paraninfo e eu fiz um texto pequeno pra eles, tá num dos meus livros aí, que eu chamo a atenção, eu falo muito da coisa primeira. Do primeiro gesto, do primeiro desenho, do primeiro beijo, do primeiro orgasmo, do primeiro não sei mais o que, da primeira derrota também. Então eu vou chamando a atenção pra essa coisa assim primeira e tal. Agora eu perdi um pouco o fio da meada. Então eu faço essa... isso tem alguma coisa. Eu vou encontrar depois o ponto. Mas quer dizer, a ideia era o seguinte. Por exemplo, esses tais burocratas. Eu acho o seguinte. Porque o problema do homem criativo, da pessoa criativa é que ele é sempre capaz de sair da rotina, da burocracia. Até porque pra ele é importante também o próprio ócio, porque sem o ócio, sem o devanear, sem o sonhar, sem o imaginar você também não produz nada. Se você tem uma rotina que é cumprida 10 anos, 20 anos, 30 anos, então, quer dizer, é uma vida inútil, é uma vida insossa, sem sentido. E eu chamava a atenção pro fato de que o burocrata é um sujeito que conta o tempo o tempo todo. Ele conta a hora de entrar, a hora de sair, a hora do lanche, a hora da aposentadoria, a hora da dispensa médica. Ele tem uma série de artifícios. Ele passa a vida contando o tempo e não vê o próprio tempo passar e como ele perdeu na verdade esse tempo todo pensando em como tirar proveito disso. Quer dizer, não soube fazer isso criativamente. Porque eu sempre pensei também que o papel da arte ele não se reduz ao próprio universo da arte. Quer dizer, tem que extrapolar. Aí é um pouco ideias que de alguma maneira eu fui buscar em Dilthey, que dizer, essa ideia de que a experiência da arte ela se completa na medida que estabelece uma ponte com a sua vida, com o seu cotidiano. Porque muitas vezes você vai ao museu pra ver uma obra de arte e às vezes, por exemplo, você chega também a esse nível com excesso de informação, de teoria. E essa teoria muitas vezes ao invés de ajudar, bloqueia por que você já chega, digamos assim, sabendo. É como se você buscasse na obra a confirmação daquelas teorias que o seu professor passou. Então eu acho que a relação com a obra de arte é uma relação, digamos, muito parecida com a relação amorosa, com avanço de recurso, processo de sedução, por que você tem que ser seduzido, cooptado pela obra de arte. Você tem que ser conquistado por ela. E há um certo momento que depois disso tudo dá um insite quando então você como que... há uma espécie de compreensão da totalidade dessa obra e tal. Mas na verdade é preciso considerar que nem sempre a compreensão da obra se dá no momento da contemplação. Ela se dá às vezes numa outra situação. Quando você tá transando, quando você tá fazendo um tipo de trabalho, quando você tá brigando. É como se aquele elo que faltava pra esse insite ocorresse. Então quer dizer, é o que o Dilthey... as palavras são minhas. Não são necessariamente do Dilthey. Mas é um momento que essa experiência refinada que é a experiência da arte vai estabelecer esse elo com o seu cotidiano. Quer dizer, então uma boa contemplação, uma boa vivência da obra de arte te ajuda também no seu dia a dia, no seu cotidiano. Isso não é um processo didático, direto, mas eu acho isso. Então quer dizer, a minha ideia no caso dos domingos era não só levantar essa discussão sobre o domingo, mas também questionar esse comportamento burocrático das pessoas, do trabalho. Quer dizer, então as pessoas pela primeira vez estavam ali fazendo coisas que não visavam pagamento, que não visavam lucro, mas visava simplesmente um processo de abertura. E é até muito curioso por que as pessoas vincularam os domingos inicialmente a crianças, quando na verdade nunca descartei as crianças, mas não era o objetivo final. E ocorria que os pais levavam as crianças e começavam a dizer, “não. Faz assim. Faz assado”. Depois invertia. Os pais é que começavam a fazer coisas parecidas com o que a criança tava fazendo por que o processo... e eu de início chamei 2 ou 3 artistas, o Vergara, chamei o Antônio Manoel, o Serpa nunca quis ir, por exemplo. Simplesmente pra deslanchar determinados processos. O Vergara então pega a bobina, vai desenrolando e tal, depois ele sai e as pessoas ficam fazendo a coisa e tal. Então esse era o processo. Não havia nenhum professor no sentido de dar aula, não havia nenhum policiamento, não havia nada. E o domingo virou uma espécie de referência naquele momento. Depois começou a ser feito em vários outros lugares, Rio Grande do Sul, interior de Minas. E surgiram coisas semelhantes. Havia certa analogia com o “Tá na Rua”, aquele grupo de teatro. Tinha um argentino que andava por aqui, fazia um negócio com nuvens, com vento, trabalhos com vento. Então quer dizer, esse era o processo todo que eu tentei levar à frente no Museu de Arte Moderna. Agora tem ainda um desdobramento disso, que aí sim vem a outra questão que você colocou que a gente criou realmente uma unidade experimental. E há muita confusão realmente entre sala experimental e unidade experimental. São duas realidades diferentes. A unidade experimental era uma coisa minha com o Cildo, com o Guilherme, com o Luiz Alphonsus, etc. e tal, que era frequentada por alguns alunos, já inclusive alguns monitores. Era uma coisa que não tinha espaço, não tinha um local, não tinha uma mesa de trabalho, nada disso. Era simplesmente uma tentativa de pensar a obra de arte e pensar essas coisas novas, a questão, por exemplo, da plurisensorialidade, o manuseio de outros materiais, quer dizer, e também a questão intelectual. Mas foi uma coisa que durou pouco, acho que menos de 2 anos. Mas tinha... o Cildo que fez umas conferências. O Cildo é muito contido quando ele faz conferências, ele não é de falar muito. Ou então eu pegava um aluno que era físico pra fazer uma conferência sobre física. Quer dizer, o Guilherme Vaz, por exemplo, ele fez uma performance com piano. Em vez de usar a tecla, o teclado do piano ele usou, o lado de trás do piano só as cordas do piano, que, aliás, depois ele usou. Na época fazia eu fazia uns audiovisuais também, então eu fiz um audiovisual com uma apresentação de uma exposição de Klee. Então a trilha sonora era exatamente essa coisa que ele fez com as cordas. Mas no curso popular de artes ele fez essa performance de piano. Então quer dizer, era assim pra discutir essas questões. Na verdade não teve nada assim, nenhuma exposição, nada objetivo. Depois mais tarde se criou a sala experimental do museu que era um espaço definido, uma sala ao lado da Cinemateca. E ali se faziam exposições. São duas realidades diferentes. Em algum momento elas poderão se encontrar, mas uma era um pouco mais convencional ainda que tratando de arte de vanguarda. Nem todos os trabalhos expostos eram de vanguarda. Tiveram ótimas exposições ali. Mas a unidade era isso. E uma coisa que a unidade fez e que eu pessoalmente é que assumi a coordenação, é que eu fiz uma pesquisa sobre os frequentadores do museu. Aí sim, tentando fazer uma coisa diferente. E foi uma pesquisa muito interessante. Tinha um aluno que era sociólogo, depois também me ajudou muito, Paulo Fogaça que fazia uns audiovisuais também e alguns monitores meus que eu peguei. Então eu fiz um questionário e começamos a entrevistar os frequentadores do museu. E era um questionário que demorava às vezes 15... 20 minutos e às vezes até mais do que isso. Tudo gravado. Eu tenho todas essas gravações. Não sei se hoje ainda é possível ver por que era toda em cassete. Mas então pra fazer essa pesquisa do frequentador do museu eu fiz primeiro uma divisão do museu, dos espaços do museu. Então eu enumerei 12, sei lá, espaços no museu. Então o espaço no museu era Sala de Exposição, Bloco Escola, Cinemateca, biblioteca, cantina, restaurante, estacionamento de automóveis, o terraço do museu, uma área lá no fundo de pedras que ficavam ali os pescadores, o jardim de pedras do Burle Marx que fica ali, aquele visível. E depois eu fiz uma divisão do museu em tempos. Eu dividi em 4 tempos. De 6 da manhã ao meio-dia, do meio-dia às 6, das 6 a meia-noite e da meia-noite às 6. Porque cada espaço desse e em cada tempo desse tinha um expectador diferente. Por exemplo, de manhã cedo era o espaço ali das pedras ali do Burle Marx. Iam as babás pra ali, levavam as crianças porque tem uns edifícios residenciais ali antes. Agora eu não sei se ainda tem. Manoel Bandeira morava ali na frente. Então ficavam ali conversando. O espaço oficial, digamos, do museu é de meio-dia às 6. Aí era exposição, era biblioteca, a cantina funcionava. Depois, por exemplo, de 6 à meia-noite era esse museu que antes, digamos, dessas aulas, eu chamava Curso de Formação de Plateias. O nome era esse. Eu queria formar plateias pra arte. Então tinha esse pessoal. Mas era principalmente naquele tempo o pessoal que ia pra lá namorar, fugir um pouco daquela coisa. Então era um espaço favorável. E depois tinha um museu marginal que era da meia-noite às 6 que era o museu inclusive da prostituição masculina, tanto que existe até hoje. Eu digo, aí já estendendo pro aterro. Então era uma coisa meio perigosa, barra pesada, ninguém tinha coragem de atravessar ali. Então, quer dizer, definidos esses espaços e esses cortes no tempo, depois então a gente fez uma análise todas as entrevistas. E a ideia... por que começou, na verdade a gente começou acho que com 18 espaços. Depois reduzimos pra 12. E a gente começou então através dessas entrevistas definir certos percursos dentro do museu. Por exemplo, o espaço estacionamento tinha correspondência com o espaço, por exemplo, do restaurante. Porque ali vinham os yuppies, não os hippies, que vinham almoçar no museu pra discutir negócios, mas que nunca entraram no espaço exposição do museu, nunca assistiram um filme. Então depois tinha o espaço dos hippies, não dos yuppies que ficavam ali sentados no chão, chegavam um pouco antes do meio-dia, esperando abrir a biblioteca ou começar as sessões de cinema que algumas eram gratuitas. Ficava ali ociosamente a tarde toda. De repente iam lá pra cantina. Tinha um espaço cantina que era um espaço onde todos nós nos reuníamos quase todo dia depois das 4 horas da tarde nos anos 60. E ali se discutiam todas as questões de arte. Vinha um artista de São Paulo ia pra lá. De repente o Hélio aparecia da geração anterior, do Dias, do Gerchman. Porque antigamente a discussão era na Escola de Belas Artes. Ali na entrada da Escola de Belas Artes tinha um restaurante do lado chamado Amarelinho. As pessoas iam pra lá jantar, os professores. Mas depois com a criação do museu então o espaço começa a se transferir pra lá. E essa cantina era fundamental porque ali se discutiam as passeatas, coisas que a gente ia fazer. De repente tinha uns que piravam, mandavam pedra no museu. Então qual era a ideia? A minha ideia então depois era definir o frequentador tipo de cada um desses espaços num determinado horário. E quando a gente definiu isso o projeto é o seguinte. A gente ia passar um dia inteiro com essa pessoa na sua casa, conversando com seus pais, se ele trabalhava procurando patrão, saber o que ele era pra depois juntar esses 12 frequentadores escolhidos numa espécie de espaço fechado. Botar o yuppies conversando com o hippie. O cara... o mochileiro com etc. e tal, e fazer uma discussão pra ver o que era. E a ideia final era fazer uma exposição documentando esses casos, que não chego a ser realizado porque o museu começou a ficar assustado, com a ideia, sobretudo desse museu marginal, esse museu, etc. e tal. E curiosamente na época um dos diretores do museu era o professor da cadeira da qual eu era assistente quando dava aula no curso de...
CLARA: Na ESDI.
FREDERICO: Não. Na ESDI não. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eu dei aula numa porção de lugar, mas sempre tempos curtos. Eu nunca fiz carreira. Até porque nem sou formado, nada. Tinha título de notório saber, essa coisas. E então quer dizer, qual é a conclusão? Os dois frequentadores típicos mais característicos eram uma mulher mais ou menos na faixa dos 30... 40 anos, já meio balzaquiana, morando na Zona Sul com título universitário. Algumas eram simplesmente casadas. Outras tinham emprego. Mas que era a frequentadora típica do Parque de Exposições. As pessoas que vinham às exposições. Já, por exemplo, outro frequentador típico era mais ou menos um pouco esse hippie que tava lá, ficava do lado de fora do museu, mas que morava nessas áreas periféricas do Centro. Quer dizer, perto do cais do porto, aquelas coisas todas assim, que eram... ou não trabalhavam definitivamente e geralmente estudavam à noite, quando estudavam, e que iam lá pro museu também um pouco por ociosidade, etc. e tal. Então a pergunta que eu me fazia finalmente, “o que essas pessoas buscavam no museu?”. Então a minha ideia é de que as pessoas não iam ao museu simplesmente, unicamente pra ver obra de arte. Inclusive eu comecei a imaginar outro tipo de acervo do museu que é a brisa, por exemplo, do museu, a luminosidade, a claridade, o espaço. Isso era também acervo. Não apenas os filmes, os livros e as obras de arte. Então quer dizer, as pessoas iam ao museu muitas vezes buscando respostas para questões que não tinham nada ver com arte. Para questões assim de sua vida, de sua existência. Certos desajustamentos. E como se fosse ali pra espairecer. Há um depoimento muito lindo no filme que fizeram sobre mim de uma moça que mais tarde virou atriz de teatro, que ela dizia, “olha. Eu não tinha muito dinheiro”. A gente percebia que era uma classe média, bem vestida. Mas que ela em um certo momento diz, “olha. O museu era o quintal da minha casa. Era onde eu ia buscando respostas”. Até respostas para problemas que não eram claros pra ela. Então ela dizia que ela passou ali 2... 3 anos frequentando o museu, incluindo os domingos porque era um espaço que era muito estimulante. Então não era necessariamente pra ver uma exposição. A exposição ocorria também com certa frequência. Mas às vezes nem entrava também pra ver a exposição. Mas ela disse assim, “olha. naquele tempo...”, ... a moça dizia, “... não tinha alternativa. Ou a gente caía na droga ou ia pra fazer parte de protestos, de terrorismo”. Então quer dizer, tem essa coisa. e aí eu me pergunto então, quer dizer, se o museu não deveria considerar esse tipo de indagação ou de uma não indagação, mas que era uma indagação na sua própria programação. Por que, por exemplo. O porquê que o segundo frequentador típico era esse mais ou menos desempregado, yuppies, era comerciário , no máximo um bancário. Eu sem trabalho, sem curso. Tem uma coisa que diz aí. Então não é que a programação do museu se reduzisse a uma questão de marketing, “bom. Então era isso que eles querem”. Até por que eles não sabiam. Mas talvez o museu pudesse pensar exposições e sendo, sem deixar de ser obra de arte, pudesse trazer algumas respostas pra várias questões políticas, sociais, econômicas, etc. e tal. Porque você não pode isolar a obra de arte numa espécie de torre de marfim.
EUGENIO: Eu pergunto a você a relação primeiro... a primeira pergunta foi a relação desse precedente experimental do MAM como viria a ser a proposta de Escola de Artes Visuais que também foi um espaço de união, de experimentação, de invenção...que tinha essa referência. E me chama muito a atenção também pelo depoimento de Rosana Palazyan no filme de Domingo da Criação, que ela passa essa sensação imediatamente. E que embora nesses anos muitos artistas também estão passando por Nova Iorque, repensando uma maneira de fazer arte, eles estão indo a Nova Iorque, estão se reunindo lá em Nova Iorque, tão repensando, tá se reunindo, a arte se reunindo com o artista latino-americano com a comunidade latina que muitos desses artistas que você mencionou tão também passando por Nova Iorque. Então...
FREDERICO: Bom. Pois é. Então é o seguinte. O Parque Lage tem a sua origem acadêmica durante muito tempo e tal. Algumas exceções. De vez em quando acho que o Iberê Camargo num certo momento criou um ateliê de gravura, mas que na verdade não era nem dentro da escola. Durante algum tempo foi num pavilhão que depois era da ESDI ali que dava pro passeio etc. e tal, onde eu fiz algumas exposições lá quando eu fui professor da ESDI ali que dava pro passeio onde eu fiz algumas exposições lá quando eu fui professor da ESDI. E tinha coisas assim. Mas era... quer dizer, uma estrutura acadêmica e tal. Os professores eram estáveis, tinha garantia, serviço público e tal. E aí quando ela foi transferida então pro Parque Lage aí já muda por que é um outro cenário, é um outro ambiente, por que o espaço também ele influencia muito no comportamento. E o Gerchman quando foi pra lá... é claro que a minha memória é melhor daquilo que eu faço, o que eu fiz. Do que os outros fizeram eu não sei tudo e tal. Mas eu acho que tem até uma coisa curiosa. Eu acho que o trabalho inicial do Gerchman em algum momento lembra bastante a estrutura que eu montei no museu. Essa de estabelecer uma relação forte entre os cursos. Não sei se inclusive o próprio fato dela ser aluna minha... como é que chama?
CLARA: Silvia?
FREDERICO: A Sílvia. Se isso não ajudou. Porque inclusive nas salas tinha uma plaquinha, “espaço A”, não sei o que, cada um pra uma coisa, então eu acho que o Gerchman também percebeu essa coisa de que era importante, que dizer, que os cursos tivessem uma interligação e que o conjunto desses cursos também tivesse uma relação com as coisas que estavam acontecendo fora...Então eu acho que ele criou uma série... eu acho que essa estrutura apresenta uma certa semelhança. E eu não tô nem disputando.... quem fez primeiro, quem fez segundo e tal. Mas de qualquer maneira existe um folheto com toda a explicação de como essa coisa funcionava. E os jornais davam uma boa cobertura. Pros Domingos da Criação dava. E davam cobertura fora das colunas. Porque as colunas oficiais malhavam o negócio dos Domingos da Criação. Mas é que na primeira... na segunda-feira depois do domingo tava na primeira página do Globo, o Vergara lá com aquela coluna. Então quer dizer, havia um equilíbrio e tal. Eles me malhavam, mas os jornais apoiavam. E transformaram os domingos num fato que extrapola o capo da arte. Virou uma coisa mais importante. Mas então eu acho que o Gerchman introduz uma dinâmica na escola. Eu acho que ele pressentiu que o parque tinha uma outra... era uma outra forma de atração, era muito convidativo, que é sempre mais agradável você trabalhar num espaço arejado. Depois tinha lá o Pão de Açúcar ali por perto, tinha o terraço, aquelas coisas todas e tal. E o Gerchman sempre foi muito rápido assim pra fazer as coisas, as invenções dele e tal. Então ele começou a fazer umas edições também. Um papel assim também vagabundo. Nada de muito importante. E o Gerchman tinha sempre boa cobertura também na imprensa e tal. Quer dizer, ele tinha bons relacionamentos. Então eu acho que o Gerchman de alguma maneira ele... de alguma maneira não, claramente ele é um segundo templo da Escola de Artes Visuais, totalmente diferente do espaço antigo. E ele por sorte tinha apoio do Grisolli que era uma pessoa que convivia bem com o pessoal da cultura e tal, portanto não tinha compromisso com a estrutura mais fechada, mais acadêmica, mais burocrática da Secretaria de Cultura. No passado ela foi dirigida até por um crítico, Celso Keller, mas que era um sujeito de boas relações, mas com relações dento do sistema de poder. E o Gerchman não era parte desse poder, mas tinha um poder, digamos assim, cultural pela obra dele, pelo conjunto, a obra dele relacionada ao grupo dele. Eu acho que ele pode fazer uma série de iniciativas. Mas eu acho que num momento inicial havia esse diálogo com o que foi feito no Museu de Arte Moderna e tal.
EUGENIO: Eu ouvi você, por exemplo, falar de alguns princípios, que também estão na proposta Gerchman. A oficina dele se chamava, que ele mesmo intitulou, ela se chamava Oficina do Cotidiano, ou seja, a importância é se relacionar com o espaço exterior. Em alguns momentos ele fala também e vimos a intenção em vários dos documentos da importância da lógica do lazer e do espaço e convívio. Ele queria que os alunos e professores se relacionassem e que o lazer também tivesse para costurar diferentes práticas através das múltiplas oficinas.
FREDERICO: É. Quer dizer, quando você assume um cargo qualquer numa estrutura cultural, na verdade a sua referência maior é sua própria obra. E a obra do Gerchman já tinha essas características. A questão do cotidiano, a questão da cidade, a questão do meio urbano. Quer dizer, eu acho que o Gerchamn dos anos 60 foi um artista extremamente importante. Eu acho até que depois perdeu em alguns momentos a força que tinha naqueles anos 60. Mas aquela série negra, por exemplo, é fantástica. Depois essa insistência dele, do Gerchman ema bordar as coisas que faziam parte do cotidiano. E o Gerchman começou a trabalhar uma... ele e de alguma maneira também o Vergara... por exemplo, aquele lá do Sul, o gaúcho, lá o artista, mas com um outro tratamento também, ele era mais parecido com o Vergara e que era um refinado no virtuosa e tal. Oh, meu Deus. Como é que é o nome dele? Eu acho que o Gerchman e 2 ou 3...
CLARA: Iberê?
FREDERICO: Não. Não. Iberê. Iberê é muito mais antigo. Bom. Eu acho o seguinte. Num certo momento o Gerchman no seu trabalho ele criou uma série de imagens que falavam, digamos assim, do Brasil atual. Eu acho o seguinte. Eu costumava dizer... a coisa parece assim um pouco demagógica, mas não é. Mas eu acho o seguinte. Um país não é construído apenas com indústrias, com ferrovias. Quer dizer, não é só no plano econômico. Um país é também construído com imagens. Essas imagens são fundamentais pra formar um caráter, pra formar uma cultura, pra formar um comportamento. Então eu acho que o Gerchman, por exemplo, no trabalho dele ele compreendeu isso. Não que ele tenha teorizado sobre isso. Mas o Gerchman foi criando uma série de imagens que marcaram não só o momento da vida brasileira e, sobretudo, o momento difícil da vida brasileira que é o da ditadura militar, mas construiu uma espécie de arquivo pluramagístico que fala do Brasil. Quer dizer, você pode ver isso no passado de repente, um artista como Djanira, por exemplo, que não era moderna no sentido do Gerchman, do Vergara, do Dias. Mas quando ela, por exemplo, dedica uma parte da sua obra a fixar, por exemplo, certos tipos de trabalho quando ela fixa, sei lá, o sujeito que faz a farinha, o sujeito que produz o algodão, o sujeito que produz o sal, quer dizer, as carvoarias, as usinas, ela criou um conjunto que um desses sociólogos brasileiros, o Guerreiro Ramos, um cara extremamente importante, ele diz o seguinte, “que a obra da Djanira ensina um pouco a compreender o Brasil”. E muito antes do Guerreiro Ramos, o Spengler quando faz a decadência do Ocidente ele diz que Rembrandt ensinou muito a pensar o mundo como artes, mas uma série de coisas que estava na obra dele foram fundamentais para que o sociólogo, antropólogo compreendesse. Então eu acho que o Gerchman criou uma série de ícones, de logotipos, digamos assim, que falam de uma realidade brasileira. Quer dizer, isso tudo tá no plano da imagem. E nós estamos criando imagem o tempo todo. E o Gerchman é como se tivesse concretizando essas imagens que passam pelo nosso imaginário. Imaginação no fundo é a dinâmica da própria imagem. Então eu acho que quando ele vai pro a Parque Lage ele leva um pouco desse espírito de inclusive estabelecer a relação da escola, não só com o parque, mas com a própria rua, com as coisas que tavam acontecendo e tal. E isso, se não me engano, tinha uns trabalhos também assim...
CLARA: Não é à toa que a oficina dele chama Oficina do Cotidiano.
FREDERICO: Pois é. Exatamente.
CLARA: E você agora comentando a pouco dessa coletas, essas gravações que vocês fizeram no MAM, dos usuários, o frequentador típico e tal. Nada mais é que o cotidiano também. Então é muito.
Frederico: É. Não. Pois é. Não. Porque eu acho que a arte não pode...
BERNARDO: O Vergara falou uma coisa muito, que a geração deles, do Gerchman, no início eles eram obrigados a criar contexto pra que a beleza deles existisse. A beleza do mau gosto do Gerchman, por exemplo. Ou seja, eles tinham que escrever, fazer a divulgação. Eles tinham que fazer todo esse trabalho, além do ateliê. E que o Parque Lage de uma certa forma é também de uma maneira mais madura e mais complexa, é uma busca do Gerchman pra criar contexto pra que essa nova beleza ... essa nova arte possa emergir. Você concorda com isso?
FREDERICO: Mas olha. Quando eu disse, falei desses cursos, por exemplo, das 6 horas da tarde, e o curso chama “Curso de Formação de Plateias”. A minha ideia era exatamente aumentar, criar plateias pra as obras de arte. Por exemplo, ainda pensando em termos de museu, em termos de galeria. Mas eu acho que nos anos 60, na verdade é o seguinte, o artista... ou bem de muito antes, o artista era um profissional de mil ofícios por que ele não se limitava a fazer o quadro dele. ele tinha que emoldurar, ele tinha que fazer a divulgação, ele tinha que cuidar da exposição, ele tinha que fazer tudo. Hoje há uma especialização enorme. Então pra cada item daquilo que o artista fazia sozinho, tem um especialista que mantém uma empresa que mantém isso, o que aumenta os custos, aumenta as dificuldades. E havia de certa maneira uma espécie de gratuidade, de generosidade maior por que os artistas tinha uma necessidade de produzir, tinham que fazer e o mercado ainda não tinha... não havia propriamente mercado pra essa produção nova. O mercado era pra produção de coisas... eram os que vinham desde o tempo da Semana de 22, dos anos 30 e 40. Quer dizer, eram os ícones. Era um Guignard, era um Di Cavalcanti, o Marcier, essas coisas todas. Então eu acho que havia realmente isso. Então o artista tinha que se desdobrar. Inclusive gastava uma parte do tempo dele que poda ser dedicada só ao trabalho pra fazer a própria promoção do seu trabalho. Ele tinha que criar o seu público como eu queria criar o público pras conferências pra uma discussão um pouco mais teórica, que a ideia também desses cursos era pra introduzir um pouco de teoria, mas não de fazer da teoria a base principal do trabalho. Eu, por exemplo, eu não me considero um teórico. Eu sou um intuitivo. As coisas vão nascendo na minha cabeça, eu vou fazendo. Depois... às vezes inclusive não tem um sentido, a compreensão do sentido total daquilo que eu deslanchei. E, por outro lado, o tempo vai agregando significados não só às obras, mas as coisas que são feitas. Elas vão ganhando novos significados se ela tem uma potência inicial.
EUGENIO: Aí me interessa que você fale que Gerchman de alguma maneira leva a sua pesquisa artística para a sua proposta, pra escola.
Frederico: Mas ele não podia levar alguma coisa que não fosse dele.
EUGENIO: ... não levou só sua pesquisa artística. Ele levou a pesquisa artística também de outros.
FREDERICO: Ah. Sim. Não. Não. Não. Mas eu digo o seguinte. O ponto...
EUGENIO: ... de Eichbauer, a pesquisa de Magalhães.
FREDERICO: Não. Exatamente. Por que também os artistas, com várias exceções, quer dizer, eles têm que se juntar inclusive pra formar grupos, até pra poder sobreviver de alguma maneira. Um ajuda o outro. E depois vêm as desavenças. Quer dizer, cada um vai pra um caminho. Daí eu faço essa brincadeira, Rei do Mau Gosto, Rei do Bom Gosto, mas continuam amigos. Mas de alguma maneira eu tava sendo mais crítico do Vergara e não do Gerchman. Mas hoje eu percebo também que há outros aspectos que talvez na época eu não tenha percebido no Vergara. Assim como eu acho que eu também posso fazer crítica a algumas coisas do Gerchman, mas eu acho que os anos 60 realmente tiveram uma dinâmica extraordinária, quer dizer, havia uma tremenda ebulição. Até por que havia um elemento assim pra gente brigar que era o problema da ditadura, mês o aqueles que não saíram em passeatas tavam combatendo por que o problema da repressão não é só militar, é uma repressão do pensamento, é uma repressão do comportamento. As pessoas todas temerosas, todo mundo desconfiava de todo mundo, sempre achando que alguém era um infiltrado. Quer dizer, era um clima terrível. Quer dizer, pra gente ir pras passeatas o Vergara fazia as reuniões, “olha. Você vai pra ali”. Como é que é? “A senha é essa”. Era muito difícil. Quer dizer, enfim, no caso do Gerchman eu acho especificamente o seguinte. Eu acho que o Gerchman tomou como referência o próprio trabalho dele. e era inevitável. O Vergara tomaria o trabalho dele como referência. Como o Resende tem coo referência a própria escola que eles também criaram em São Paulo, a Escola Brasil. Isso você vai ver que no tem nada a ver a escola do Resende com, por exemplo, a Escola do Parque Lage. Porque a escola do Resende, em São Paulo, que era o Resende, o Fajardo, mais 2 ou 3, que todos eles passaram pelo Wesley Duke Lee, pelo Nelson Leirner, mas sobretudo o Wesley Duke Lee que politicamente era um reacionário. Mas ele era um desenhista refinado, quer dizer, um dândi quase no tipo do desenho dele. Muito pedante, mas ele teve uma influência fortíssima sobre essa turma. E pela Escola Brasil passaram dezenas ou talvez até mais de centenas de artistas que marcaram muito. Mas era uma coisa assim muito conceitual, muito higiênica, muito limpa. Quer dizer, é quase o estilo paulista. O Vergara de alguma maneira muito mais do estilo paulista no início do que o estilo carioca. Eu acho que o Gerchman é muito mais o estilo carioca. Então, quer dizer, é o contrário. Então ali tinha uma certa ordem, um certo esquema. Por exemplo, quando fazem uma... quando eu digo o Gerchman iniciou todo um processo na escola depois que ela deixou de ser o Instituto de Belas Artes. E teve por sorte esse apoio. Então ele abre as salas, aquelas coisas, faz as oficinas, tem a questão do cotidiano. Mas quando chega, por exemplo, nos anos 80 quando fazem a amostra, embora não seja geração 80, por que já é esse menino aí o...
BERNARDO: Lontra?
FREDERICO: O Lontra. Quer dizer, quando você pega o próprio título dessa exposição, “Como vai você geração 80?”, quer dizer, esse titulo é um título muito, digamos, carioca. É um título no sentido, “olá. Como está? Tudo bem? Apareça lá em casa”. Aquela coisa, “apareça lá no Parque Lage. A gente tá fazendo lá umas coisas”. E ele fez aquelas coisas, aqueles concertos, aquelas coisas de jazz. Então quer dizer, pra mim o Parque Lage nunca foi uma escola no sentido tradicional. A escola pra mim era um estado de espírito, era uma atmosfera por que na tinha nenhum regimento de como se ensinar, de como ser professor. Eu acho que o Gerchman de alguma maneira abre esse processo quando ele entra pra lá. Eu quando fui pra lá, que você sabe que eu também dirigi a escola durante algum tempo.
CLARA: 86... 87?
FREDERICO: É. Foram 2 anos mais ou menos, menos até, por que tudo meu é assim pequenininho. Agora hoje quando eu memorizo são décadas. Na década de 60, na década...
CLARA: Como que foi a sua estada?
FREDERICO: Não. Pois é. Então quando eu fui lá eu tinha deixado a Galeria do BANERJ que eu dirigi, fiz aquelas coisas, etc. e tal. E então alguns artistas aí, Ascânio e outros até que foram meus alunos e tal começaram a fazer, “ah. Frederico”. Não sei mais o que. Fizeram um abaixo assinado, eu fui levado pra lá e tal. O que eu ganhava não dava pra pagar a condução. Não era nem táxi. Era de ônibus. Mas eu sempre me empolgo com as coisas que eu faço. Duram pouco, mas é aquela coisa da primeira. Primeiro isso, primeiro aquilo, primeiro... o bom é o primeiro. O segundo e o terceiro já não tem muito tesão. O que era que eu tava falando?
CLARA: Da sua gestão no Parque.
FREDERICO: Bom. Então quando eu fui pra lá eu tentei de alguma maneira, eu tô pensando isso aqui agora, de recriar um pouco o espírito do museu considerando que o espaço era outro. Então eu volto a insistir nessa coisa que... por que lá também era a mesma estrutura. Cada professor tinha os seus alunos. E o piores professor tinham 50, 60, 70 alunos. Os bons tinha 5... 6 professores, os que exigiam mais dos alunos. Então o que eu fiz, quer dizer, foi mais uma vez tentar fazer com que ele se inscrevesse no Parque Lage, que frequentasse isso, podiam frequentar os ateliês que fizeram, até fazer uma opção, digamos, “bom. Depois de frequentar, se o problema e gravura, insiste na questão da gravura”. Mas eu queria também insistir nessa coisa dos ursos teóricos. Apesar de que eu insisto de que eu não sou um teórico e eu sou intuitivo, acho que a teoria é importante, mas ela não pode vir... a obra não pode ser ilustração de uma teoria. Eu acho que é o contrário. A obra é que gera teorias. Claro que depois num outro momento ela pode ser o início de uma outra obra. Então quer dizer, a minha ideia era essa. Tanto que uma das primeiras coisas que eu fiz foi tirar a biblioteca que tava lá no subsolo já com cheiro de mofo e botei no salão principal do antigo palacete, que era aquele espaço grande que dava pra piscina e ao lado tinha lá a cantina, que alguma maneira eu reproduzo um pouco a coisa do... eu tô pensando isso aqui agora. Porque eu queria que as pessoas passassem algum tempo também lendo livros, consultando livros. Por outro lado eu peguei uma outra sala grande no início e transformei numa sala de exposições. Eu comecei a fazer exposições ali. Inclusive a exposição do Bispo do Rosário, exposição de vários artistas. Também pra estabelecer esse vínculo com o mundo da arte, o outo... o circuito todo. E também atrair pessoas pra ver exposição. Não obrigatoriamente pra ver cursos. E outra coisa que eu tentei fazer e não consegui, é uma das minhas frustrações, foi fazer a Bienal de Escultura. Você sabe disso. Por que eu sempre... eu tenho essa coisa de... como eu não sou de grupos fechados assim e tal, quer dizer, nunca... sabe, eu pensei... e o fato de ser jornalista que eu tô escrevendo pro público, pessoas que eu não conheço, eu não sei qual é o meu leitor. Não sabia. E então eu sempre pensei nessa coisa de levar a arte pra rua. Isso é uma constante em várias coisas que eu fiz, desde Belo Horizonte até no Rio de Janeiro. E eu então quando fiz a Arte no Aterro a ideia era um pouco essa também. Mas eu pensei na Bienal da Escultura pra criar uma espécie de contraponto pra Bienal de São Paulo, Assim como a Bienal do Mercosul também foi um contraponto, quer dizer, digamos, enfatizar um pouco a arte produzida na América Latina por oposição à arte internacional, só que vinha pra São Paulo. Então quer dizer, e mais uma vez considerando o espaço porque a gente tem que pensar essas coisas todas, porque cada espaço gera um determinado... e aí eu pensei pela primeira vez em usar o terraço da escola. Porque a escola tem um terraço que pouca gente sabe que existe. E é um espaço bonito. E ele tá debaixo do Pão de Açúcar. Então a minha ideia era fazer uma Bienal da Escultura que se expandisse pelo Parque Lage e que ao mesmo tempo permitisse a criação de uma exposição permanente de arte escultural nesse terraço. Porque ali era só subir uma escadinha. O terraço tá ali bonito. Evidentemente você tinha que pensar em obras que pudessem resistir ao tempo, à chuvas, o coco de passarinho, o xixi de não sei mais o que. E tudo isso eu tenho projetado os desenhos. Foram feitos. E a bienal a gente fez. Fez o regimento. E ela chegou inclusive a primeira etapa, que a gente abriu, na verdade, quer dizer, nós convidamos um certo número. Já tava rompendo um pouco essa ideia de todo mundo se inscrever. Então convidamos um certo numero de artistas pra apresentar projetos. E eles inclusive receberam uma pequena verba pra fazer esses projetos. Era eu, a Sheila Leirner. Já não me lembro mais quem era parte do júri. Mas o problema é que ai vem a burocracia. Quer dizer, havia uma ideia de que os consultores de navio, tem um nome pra isso, não sei o que, tem um nome pra essa categoria, começaram a chantagear um pouco o Governo do Rio de Janeiro. No tempo era o Moreira Franco, que hoje é ministro e tal. Não. Nós estamos apoiando, mas nós queremos, sei lá, uns descontos, impostos, não sei mais o que. A gente chegou a ter reuniões, almoços no Palácio do Governo. Mas começou a dificultar. Quando eu vi que não dava pra fazer a bienal, então eu pulei fora por que eu não ganhava nada pra... eu ganhava uma merreca. Mas eu entrei lá com muito entusiasmo. Quando eu senti que não dava pra fazer então eu pulei fora. E ao mesmo tempo eu repito lá também a coisa dessas conferências também que eram diárias. Aí a programação era mensal. Aí eu já chamava de fórum. Também era no fim da tarde. E fui criando os cursos e atraindo. Mas então a bienal não saiu, quer dizer, houve muita polêmica. Então quer dizer, na época os protótipos... deve tá la na escola. Eu não sei onde é que tão, que eles foram pagos. E era um grupo forte, interessante e tal, inclusive alguns artistas que só iriam aparecer mais tarde já quase nos anos 90. Mas é isso. Quer dizer, é uma das várias frustrações. Mas eu ínsito no ponto seguinte, que quem abriu esse processo, digamos assim, de expansão eu acho que foi o Gerchman. Quer dizer, nesse período.
EUGENIO: É. Eu preciso alguns pontos do ano 75... 79. Senão não temos como costurar isso depois. Tá faltando aí falar do momento... por que você participou de alguns eventos durante o período entre 75 ou 78? Você participou de alguns eventos no Parque Lage? Foi convidado está aí nas pranchas aonde está anunciado com o Luis Felipe Noé, com (Felipe Ehrenberg).
CLARA: Mesa Redonda
FREDERICO: Realmente eu não me lembro disso. Quer dizer, eu não tô muito lembrado. Mas de qualquer maneira são dois pontos que são frequentes no meu trabalho. Um é essa coisa de ir pra rua. Levar arte pra rua. Quer dizer, quando eu faço Do Corpo a Terra, quando eu fiz a Arte no Aterro. No caso, por exemplo, voltando a questão do curso do museu. Desculpa. Mas é pra... é por que eu ..Só pra comentar um exemplo. por exemplo, uma das minhas ideias que de alguma maneira tá relacionada com os Domingos da Criação, é que na época eu publiquei um texto, página inteira, saiu na Globo, “Plano Piloto da Futura Cidade Lúdica”. O meu conceito de museu era esse. Que o museu era um plano piloto de uma cidade que fosse dominada pela ludicidade, que tudo que você fizesse constituísse uma forma de jogo, digamos assim, no sentido de ludos. Quer dizer, que a criatividade de cada um pudesse se manifestar. Mas na verdade esse era o meu conceito de museu. Então, por exemplo, eu chego a afirmar num certo... porque a gente tinha anualmente... havia uma Associação de Museu de Arte Moderna. Então eu fazia parte dessa associação. Num certo momento eu larguei todas essas coisas que eu participava. Não queria mais. Mas tinha umas reuniões e eram interessantes. Tava o Cordeiro, tava o Zanini. O Cordeiro sempre tinha umas ideias assim polêmicas. E então a gente se reunia nessa coisa. E esse texto na verdade foi uma tese que eu apresentei em Belo Horizonte em 69. Então o que eu dizia? Eu achava que aquele momento em que o conceito de obra de arte mudou bastante, já não era mais apenas quadro, já não era mais apenas escultura no sentido tradicional, gravura, desenho, já havia essa questão do objeto, que o Hélio discutiu muito e o Gerchman. Por que, por exemplo, a nova objetividade na verdade nasce com o Gerchman e comigo por que... nisso a gente volta a falar. Mas quer dizer então... eu tô me perdendo agora assim um pouco na minha...O conceito de museu. Então eu achava o seguinte. Que o museu poderia se penar inclusive o próprio prédio. Quer dizer, o museu já não era mais um prédio onde se colocassem obras de arte, quer dizer, as obras primas da arte. Que muitos museus se transformam em mausoléus, de esfinges, essas coisas todas. Mas que o museu era um programador de atividade, que ele teria a cidade inteira como área de criação. Então havia a ideia de que a cidade era um vasto salão de exposições. Esse era o conceito desse artigo. Então quer dizer, o museu ele era esse programador. E pra isso já na era do... o computador já começava a ganhar essa importância. Às vezes bastava um computador. Você programava tudo e tal. Então quer dizer, muita das manifestações de rua tavam ligadas a essa coisa. Mas isso também tava ligado à questão do ensino de arte. Por que, por exemplo, eu levava os meus alunos, eu queria falar de Pop-Art eu levava pra feiras, eu levava pra supermercados pra mostrar. Porque aí analisava o Andy Wharol, quer dizer, com o empilhamento dos produtos dessas marcas. Ou eu levava pra falar, por exemplo, de Minimal Art eu alugava um ônibus e a gente ia ver essas estruturas primárias das indústrias, os gasômetros, esse minimalismo arquitetônico. Ou pra falar de Land Art. A gente alugou bulldozers, tratores, para abrir escavações na Barra que naquele tempo era só areia, uma areia branca, areia bonita. Até o esforço físico. Ou então a gente ia fazer caminhadas pra ver se sentia algum problema do corpo. Depois tinha o corpo a corpo do domingo. Então quer dizer, por exemplo, não tinha mais sentido também ter um ateliê no sentido tradicional. Quer dizer, onde se ensina uma determinada... vai passar um ano estudando solda pra fazer escultura como fazia o Pedro e o próprio Salgueiro num certo momento, quando tem mil coisas acontecendo, possibilidades, o conceito de objeto já abrange, desqualifica aquela escultura tradicional. Então quer dizer, o ateliê pode ser qualquer lugar. Se eu tô numa praia o ateliê é ali na praia. E qual é a matéria prima? É a areia, é a água, é o vento. E as técnicas a serem ensinadas ali são as técnicas adequadas a manipular esses materiais com aquele contexto em determinado horários. Então quer dizer, era também uma discussão simultânea. Então na época foi um texto bastante radical. Eu não quero botar fogo nos museus. Eu até brinco por que me acusavam de que sujavam o museu, que havia uma deformação da ideia de museu, aquela coisa e tal. E não fui eu que botei fogo no museu. O incêndio vem depois do museu. Não é isso? Dos Domingos da Criação em 69. Foi em...78.
BERNARDO: Eu quero saber. Você volte aí naquela historinha. Por que foi você e o Gerchman que criaram a nova objetividade?
FREDERICO: Então quer dizer, por exemplo, havia uma discussão sobre a questão do objeto. O Hélio Oiticica, por exemplo, escreveu artigos sobre instâncias do problema objeto. E o conceito de objeto na época era alguma coisa que se diz... era diferente da pintura, da escultura e das coisas tradicionais. Era uma coisa absolutamente nova. Agora o Hélio amplia enormemente esse conceito. Pra ele esse objeto podia ser qualquer coisa. Podia ser a luz que tá batendo nele, no corpo dele. mas então quando eu fiz o Salão de Brasília que foi o de 66 pra 67... é? ou 68? Em algum lugar tem aí a data. Então foi um salão de certa maneira revolucionário, não só por que pra fazer o salão eu viajei pelo Brasil inteiro pra descobrir artistas novos e levar pra Brasília por que levando em conta esse caráter radial, digamos assim, de Brasília, capital do país, o interior se expandindo pra fora e ao mesmo atraindo as forças criativas pra Brasília, então no regulamento eu introduzi o objeto como categoria, mas consciente de que era uma tradição por que o objeto seria uma não categoria por que questionava tudo. Mas eu queria levar pra dentro da estrutura dos salões uma discussão sobre objeto. Então quer dizer, com esses convites que eu fiz, com os artistas que eu revelei o objeto foi o objeto mais importante desse Salão de Brasília. E a grande polêmica do salão foi um pouco do Leirner. Você já ouviu falar? Então que era aquela coisa do engradado com um porco empalhado, tendo amarrado do lado de fora um pernil. Um pernil já embalado. E o outro trabalho era um tronco de árvore onde ele faz um recorte que faz uma cadeira. Quer dizer, o nome dos trabalhos era... como é que é? Era um nome assim bastante... quase acadêmico. Tá entendendo? Não sei o que lá introdução. Produtos e Derivados. Esse era o título do trabalho. Mas ficou conhecido como O porco do Leirner porque gerou uma polêmica, porque o Leirner foi aceito como artista. Mas o Leirner tem uma tradição de provocação desde os tempos iniciais dele por que é de uma família de artistas, de mecenas, de colecionadores. Ele mandou pro júri a foto do porco perguntando, “por que vocês aceitaram o meu trabalho?”. Pela primeira vez alguém contestava o júri por ter aceitado o trabalho dele. Aí deu uma polêmica. Os críticos acadêmicos, o Walmyr, o Geraldo, esse... já falei, então todo mundo começou amalhar o júri, o Frederico, sobretudo, que eu fui do júri, mas era o coordenador. E ai diziam, “ah. O júri escorregou no toucinho do porco”. Aí começavam a falar, “o crítico juvenil” referindo-se a mim. Aí eu escrevi um texto extremamente violento. É Geraldo Ferraz. Eu então eu escrevi um texto usando sempre assim tudo com “il” , o imbecil, senil, não sei mais o que, pra contestar essa coisa. Mas enfim, o debate então era a questão do objeto. E aí o Terranova... eu tenho que ficar dando voltas pra ficar claro a coisa . Então o Frank Terra Nova inventou um concurso inventado pelo Jaime Maurício que era um crítico jornalista muito dinâmico e tal, mas não era bom caráter, era meio mercenário e tinha ótimas relações com a Sodré, com o Correio da Manhã e tal. Bom. Tem outras fofocas. Mas ele então criou esse... que chamava O Concurso da Caixa. E então o Gerchman começou a levantar essa questão da caixa. Porque ele dizia o seguinte, “que nós, Gerchman, etc. e tal já fazemos trabalhos com essas características”. E, aliás, em algum momento também tem uma relação com algumas caixas do grupo, outra figuração, Noé, esse pessoal e tal. Então quer dizer, ele dizia assim, “se a gente já está fazendo caixas aqui por que vamos importar uma ideia?”. Porque ele achava... o Terranova, e o Jaime Maurício achavam que tavam importando uma ideia, tavam trazendo uma ideia nova, quando ele e Gerchman comentavam isso. Nesse tempo eu escrevia no Diário de Notícias que era um jornal que já iniciava... já tava em fase avançada de decadência. Mas foi um jornal extremamente importante, sobretudo na área juvenil que tinha um... estudantil muito grande. E eu então tinha uma coluna que eu podia escrever o que quisesse. E eu então tava chegando pro Rio de Janeiro com uma gana danada de fazer coisa, então eu botava pra quebrar e escrevia as coisas que eu queria escrever, que muitas vezes faltavam outras colunas por ai. Então o Gerchman começou a falar da caixificação, da vanguarda e tal. Não sei se foi ele que inventou o termo ou ele e tal. Mas eu comecei dar publicidade a esse comportamento do Gerchman, que é essa ideia de que tavam tentando enquadrar a vanguarda brasileira naquele conceito de box form. Então a partir dessa coisa do Gerchman, do concurso e da divulgação que eu tava dando na minha coluna, por que não era o jornal ainda, mas era lido pelas pessoas que tavam interessadas em arte e tal. Aí eu trabalhava no museu, a gente começou a fazer umas discussões dentro do museu que era lá no fundo do museu, próximo onde era o ateliê de gravura que é aquele núcleo fechado de umas mulheres bem histéricas que ficavam ali trabalhando metal. Então a gente começou a fazer umas discussões e disso nasceu a ideia da nova objetividade. E então, quer dizer, o Gerchman foi muito ativo e aí a gente foi ajuntando outas pessoas, Hélio Oiticica, etc. e tal. A gente chegou a fazer um manifesto que eu fiz a minuta desse manifesto, mas que depois foi discutido, alguns pontos reformulados e saiu um outro texto final. Mas a minuta, o roteiro pra essa discussão também eu que fiz. O problema é que num certo momento eu divergi do grupo. Talvez até por uma certa ingenuidade. Eu tinha chegado de Belo Horizonte. Isso foi logo em seguida e com muita gana de fazer coisa. Mas eu achei que tava começando a virar uma coisa assim meio de família, de amigos. Então, por exemplo, o Dias botava o sogro dele que era o Escosteguy, botava a mulher dele também participar. O Hélio botava, sei lá, uma prima que era também Oiticica. O Cordeiro botava a amante dele. então virou uma objetividade em família. E eu achei assim que... não gostei daquilo. Porque eu cheguei ao Rio de Janeiro com uma vontade de estabelecer um dialogo entre Rio e São Paulo, que Rio e São Paulo viviam às turras, era uma guerra. Os sunitas e xiitas ou palestinos e israelenses. E então como eu era de Minas me dava uma certa autoridade. Eu é que na verdade praticamente convidei todos os artistas de São Paulo pra participar dessa exposição. Tava o Cordeiro, vários deles. Pelo menos ali estavam. Mas aí quando começou essas coisas assim, eu falei, “ah. Eu não tô gostando” por que eu achei que tava perdendo o critério por que a questão inicial era essa questão do objeto. Claro. Quase tudo era objeto que tava ali. Mas eu ingenuamente pulei fora, já praticamente no momento de inaugurar. E o texto, por exemplo, que coube a mim fazer eu não fiz. E aí entrou o Mario Barata que fez o texto e um texto meio bobo. Porque o Barata apoiava, de certa maneira, a vanguarda mas ele era um professor acadêmico. E o Cordeiro fez o texto pra São Paulo e o Hélio Oiticica fez o texto da nova objetividade, o texto principal. A exposição abriu. Foi um sucesso. Mas eu saí quando achei que não tava concordando com alguns nomes. Mas isso aí é uma outra coisa a favor também do Hélio. Quer dizer, de qualquer maneira... e houve o concurso. Acho que o Vergara inclusive ganhou um dos prêmios. E o concurso... aí tinha não sei mais quem. Era do júri. Mas nasceu aí a nova objetividade. Mas foi exposição importante no sentido de que talvez depois das nossas Opinião 65 e 66 em que o grupo do Gerchman todo participou e tal e junto com o Hélio Oiticica, como eu disse ele era uma ponte entre os neoconcretos e essa nova geração, talvez tenha sido a primeira tentativa de uma síntese das diferentes tendências da vanguarda brasileira, que o Hélio exprime isso muito bem no texto dele. Questões que eu já abordava também na minha coluna do Diário de Notícias. Porque eu tinha muita liberdade. Eu não precisava inclusive comentar as coisas que estavam ocorrendo por que era um jornal que não havia censura. Quando eu fui pro Globo. Por exemplo, eu tive que ser muito mais cuidadoso pra escrever, mas também a minha coluna tinha uma eficácia muito maior do que tinha, por exemplo, no Diário de Notícias. Então eu acho que depois dessas duas exposições eu acho que foi realmente a primeira tentativa de fazer uma análise assim ampla das diferentes correntes da vanguarda brasileira. E talvez mais do que isso. Talvez a primeira tentativa objetiva de opinar não só sobre a arte que estava sendo feita no Brasil, mas opinar também sobre a situação política brasileira. Eu acho que a nova objetividade foi importante nesse sentido.
EUGENIO: Queria que você comentasse como foi o julgamento de Volpini.
FREDERICO: Bom. Essa aí foi uma para dura e tal.
CLARA: Isso marcou muito meu pai.
FREDERICO: É. Mas o seu pai ainda conseguiu fazer o quadro do julgamento. Depois eu vou te contar uma história sobre isso. Bom. Eu acho o seguinte. Isso foi um salão chamado Salão Global de Inverno. Era um salão realizado em Belo Horizonte patrocinado pela Rede Globo. Rede Globo Televisão, Jornais, etc.. E esse salão tinha um júri. As pessoas se inscreviam. E no júri estávamos eu, Gerchman, Sheila Leirner, Caribé e Mario Cravo. Então aceitamos alguns trabalhos e tal. Foi inaugurado o salão. E no dia seguinte a repressão foi lá e retirou os trabalhos desse Lincoln Volpini, que eram 3 pequenos trabalhos. Com toda certeza foi alguém que denunciou por que era um trabalho pequeno, acho que 30 por 40. Eram 3 trabalhos. Um chamava “Para não dizer que eu não falei de montanhas”. Depois tinha esse outro trabalho. Já não me lembro o nome.
CLARA: Penhor da Igualdade.
FREDERICO: Penhor da Igualdade. Que eu acho que e uma referência ao Hino Nacional. E acho que tem um terceiro ainda. Mas esse trabalho que foi o pivô da situação toda era um trabalho assim... era uma pintura que era meio objeto, que tinha o retângulo da bandeira brasileira de madeira e tinha um losango por dentro e tinha o círculo. E dentro do círculo essa curva onde vem... como é que é? O texto da bandeira?
CLARA: Ordem e Progresso.
FREDERICO: Ordem e Progresso. Então no lugar de Ordem e Progresso ele botou uma interrogação. Agora de baixo, na parte inferior desse trabalho que ele era bem dividido em 2 é uma fotografia de uma menina assim maltrapilha, pobre, vestida e tal, diante de um tronco de árvore que foi derrubado e tal. Tronco que por sua vez dava pra um fundo... uma espécie de... como é que chama aquele lá em Cuba junto ao mar?
EUGENIO: Malecon.
FREDERICO: Malecon. Um muro assim de granito. E aí alguém descobriu que nesse muro tava escrito, “Viva a Guerilha do Araguaia” em letras pequenas. E a Guerilha no Araguaia era o grande tabu da repressão brasileira por que o exército massacrou cerca de 70 guerrilheiros no meio da selva Amazônica e tal. Nunca se pode falar nada. Só muito recentemente, sei lá, 10 anos atrás ou mais, que o Globo iniciou uma série de reportagens. O Genuíno, por exemplo, era membro do grupo. Foi um massacre. Foi mais do que isso. Mais do que 70. Então não se falava. Era um assunto de tabu. Então um cretino, um promotor do Tribunal Militar encaminhou uma denuncia condenando a aceitação desse trabalho. Que, aliás, esse artista... acho que eu não sei se os 3, mas 2 dos trabalhos foram adquiridos pela Rede Globo. A aquisição. Por que tínhamos prêmios de aquisição que era um prêmio menor. Mas hoje todo mundo põe o seu currículo, “prêmio de aquisição”. Mas então não só o artista foi condenado por isso como um provocador, mas o júri também que foi considerado coautor da obra pelo fato de ter aceito os trabalhos. Quer dizer, o júri referendou essa crítica ao sistema militar. Então nós fomos levados a júri. O artista Lincoln Volpini que ainda era um estudante de artes. Não tinha nem ainda concluído seus estudos. E os 5 integrantes do júri. Não. Menos a Sheila Leirner que saiu 2 dias antes por uma questão de saúde da família. Não sei. Ela tinha...
CLARA: Acho que ela tá em algum quadro.
FREDERICO: Nasceu ou tinha nascido um filho dela há pouco tempo. E ela então não completa o trabalho dela no júri. Mas curiosamente a primeira notícia sobre essa coisa saiu no Estado de São Paulo onde ela escrevia. E então nós fomos a julgamento. E eu trabalhava no Globo. Esse julgamento demorou 2 anos. Eu não pude dar uma palavra sobre o assunto. E, por outro lado, os críticos não se manifestaram contra o julgamento. Nossa. Os artistas também não se manifestaram. Todo mundo cagando de medo. Então foram 2 anos assim de uma solidão terrível por que a gente tava sozinho e tal. Quer dizer, a gente teve que ir lá tocar piano. Piano é uma expressão pra botar o dedo lá na coisa e tal. A gente depois conseguiu um advogado que era o Técio Ulisses Silva e o julgamento era em Juiz de Fora que era a sede da Circunscrição Militar de Minas Gerais, Quarta Região Militar. Então foi aquela coisa. Nós lá sentados no banco lá e os militares todos lá na mesa, os representantes. E a gente sendo julgado. Agora ao final nós fomos inocentados, mas o Lincoln foi condenado a 1 ano de prisão. Mas como ele era réu primário ele não chegou a ser preso. Era a primeira vez que um artista era condenado por um trabalho de arte apresentado no salão. E no final do julgamento mais ou menos coincide com o incêndio do museu. E aí então eu escrevo inclusive um artigo no Globo relacionando as duas coisas, as duas tragédias que marcaram a arte brasileira. Quer dizer, a condenação do Lincoln Volpini que nuca mais praticamente fez nada e o incêndio do museu. Foi no mesmo dia. Quer dizer, o pessoal dizia que eu tava instruindo o museu e o museu na verdade se queimou. E realmente foram duas coisas marcantes. Quer dizer, agora a diretora era a filha do Pedro Aleixo, Eloisa Aleixo, uma dondoca carismática, dessa religião ai dos carismáticos, dos católicos. E preocupada com o sapato dela que queimou. Tava lá entre os destroços. E depois até alguns anos mais tarde ela... ela tinha muito prestígio porque o pai dela era vice-presidente no tempo da ditadura. O militar era o presidente. E o vice-presidente era o Pedro Aleixo que era um udenista que sempre foi um partido moralista, dos ricos. Bom. Todas as pessoas têm alguns momentos bons. Bom. É coisa do Guignard. Isso é mais complicado. Mas depois ela dirigiu o Museu Nacional de Belas Artes. Até procurou fazer um bom trabalho lá, fazer as reformas, deu um certo estímulo. De repente atraia o Waltercio pra expor lá, u pouco pra remediar aquele erro todo. Mas então foi isso. Foi um momento... foi uma espécie de auge assim da repressão. Só tem similar com a não abertura da exposição da Bienal de Paris de jovens e que também foi fechada. E aí o personagem era um fotógrafo. Como é que eles chamam? Repórter fotográfico, que tinha uma ótima tradição, que... a foto que tava era uma foto de um militar caindo da motocicleta numa dessas lutas de áreas que tinham entre estudantes e a cavalaria da polícia. Ele tava na Avenida Rio Branco. E o outro trabalho era o trabalho do Antônio Manoel que era o negócio da censura. E aí deu inicio ao boicote da Bienal. Agora o exemplo também do caso do incêndio é que também teve uma coisa muito bonita que foi realmente a passeata. E aí também é outra inciativa. Não sei se foi só dele. Mas acho que foi o personagem principal o Gerchman. E inclusive por que a coisa mais criminosa do incêndio foi a destruição de 80 trabalhos do Torres Garcia. Praticamente toda a série mais ou menos conhecida dos trabalhos dele da arte... da obra consultiva. Se bem que uma vez eu fui lá visitar a viúva do Torres Garcia, por iniciativa minha dar condolências por que nem sequer o governo brasileiro deu. E o ateliê dele era meio num porão. Mas volta e meia saía um quadro construtivo lá de baixo e aí eu acho que a produção era muito maior. Mas então teve aquela coisa bonita que a passeata veio, a construção do peixe. porque como é um trabalho construtivo e na verdade é uma construção de fragmentos, permitiu inclusive essa fragmentação inclusive do trabalho, uma refragmentação. E as pessoas compondo e tal. E gerou também toda aquela coisa do Mario Pedrosa, da proposta do Museu das Origens então, que era uma velha ideia dele. Porque o Mario Pedrosa sempre esteve muito aberto a coisas mais ou menos paralelas. Não só fez defesa da arte dos doentes mentais, da Nise da Silveira, mas defendia, por exemplo, a arte das crianças, no caso do Ivan Serpa e também as coisas dos indígenas. Então ele queria criar um museu que fosse uma síntese de todas essas coisas. Quer dizer, da arte dos marginais, da arte dos... e junto com arte de vanguarda, com a produção de vanguarda. Mas também não sei se era uma ideia viável. Alias, a Heloisa quando era diretora do Museu Nacional ela tentou criar dentro do museu esse Museu das Origens. Mas acho que foi mais uma esperteza do que propriamente. Mas ela inclusive criou uma sala Mario Pedrosa. Mas foi um bom momento. Um momento assim que a cidade percebeu. Porque é curioso, quer dizer, quando a gente... voltando àquela coisa dos domingos. Quer dizer, esses depoimentos de pessoas que diziam que o museu era extensão da sua casa, que era o quintal da sua casa, quer dizer, demonstrando que o museu foi importante, que provavelmente se não frequentasse o museu iam fazer algumas besteiras. Mas quer dizer, esse incêndio mostrou também que o museu ia além dessas pessoas que conseguiram transformar o museu uma espécie de oxigênio pessoal. Quer dizer, era um patrimônio da cidade. Isso eu acho que foi também uma coisa bonita. Então foi assim até comovente por que juntou o pessoal de todas as áreas, de Literatura do Pasquin, tinha muitas coisas do Pasquin, umas faixas. E foi bonita a chegada. Parecia uns peixes parangolé do Hélio também.
BERNARDO: O Rubens sempre me falou quando eu convivi com ele... ele odiava que confundisse a obra dele com a POP. E o Vergara também falou a mesma coisa pra mim há duas semanas atrás. Que ele odeia que confundam eles com a POP. Você confunde eles com POP?
FREDERICO: Olha. Os artistas não são muito confiáveis não. Viu? E os artistas mentem muito também. Entende? Aliás, isso o Borges já diz, “os artistas são mentirosos e são plagiários de si mesmo”. Não. Eu acho o seguinte. Quer dizer, em algum momento sim. Eu acho que existe algum diálogo. Mas não é a POP dos Estados Unidos. Quer dizer, é uma POP nascida aqui, cultivada aqui, que é a tal história, sei lá. Quando o Vergara põe lá um determinado, sei lá, um objeto, alguma coisa no trabalho dele e tal que eventualmente pode lembrar um artista lá norte-americano, esse trabalho do Vergara, os trabalhos do Gerchman quando confrontados com a nossa realidade, aqui ganham uma dimensão política que não tem nos Estados Unidos. Porque a POP nos Estados Unidos foi muito uma espécie de saudação ou de... da sociedade de consumo, da ideia da quantidade, da ideia da publicidade. Quer dizer, da cultura de massa, de uma comunicação rápida, veloz. Mas ela tinha um caráter muito mais hedonista. No início você pega o mesmo, por exemplo, aquele que fazia as comidas, os...
EUGENIO: Oldenburg?
FREDERICO: Oldenburg fazia aquelas coisas. Então você vê que é uma coisa muito prazerosa quando ele mostra aquelas coisas. Agora por outro lado a POP também não é uma coisa assim fechada numa só porque você tem... dentro da POP americana você tem um Liechtenstein que é quase um clássico dentro da cultura, que ele pegou a retícula como elemento fundamental e ele redesenhou não só toda a arte, redesenhou a própria POP, como redesenhou a própria História da Arte a partir desse ícone que é da retícula. E a coisa dele é fria. É quase minimalista esse tipo de leitura.
EUGENIO: Mas você falou antes que, por exemplo, no caso do de Gerchman quando alguns outros que trabalharam com ícones...
FREDERICO: Sim. Sim. Mas...
EUGENIO: ... que era... que se faz assim também a História do Brasil.
FREDERICO: Não. Não. Tem. Quer dizer, eu tô entendendo. Eu não... eu quero dizer o seguinte.
M: Não. Não. Não.
FREDERICO: A POP no Brasil, esses artistas não fizeram uma importação literal da POP. Algum contato tem. Até por que é o momento de deslocamento da questão das influências. Porque até então a arte era coisa de europeus. De França, de Alemanha, os Países Baixos, etc. e tal. Quer dizer, os premiados com viagem ao exterior do Brasil iam todos pra Europa. Ainda pegou o início de Gerchman, de... o Gerchman foi um dos primeiros que foi pra Nova Iorque. Quer dizer, mas o Dias vai pra Europa. O Roberto Magalhães vai pra Europa. Entoa quer dizer, é o momento que o polo criador se desloca da Europa para os Estados Unidos. Há uma correspondência, por exemplo, entre o Nouveau Realism de Pierre Restany e daqueles... e inclusive aquela vertente dos dilaceradores de cartazes, e a POP. Inclusive há uma discussão de quem veio primeiro. Os europeus alegam que de alguma maneira eles foram os fundadores da POP. Mas é diferente por que tem um conteúdo inclusive teórico e até quase literário maior entre os franceses e o norte-americano. Porque os norte-americanos passam esse entusiasmo pela nova sociedade de consumo, como hoje o entusiasmo pela tecnologia, as computações, a coisa digitalizada e tal. Então eu acho que não é descartável essa ligação, mas não acho que foi uma ligação assim de... e até por que naquele tempo, quer dizer, o contato, as revistas que vinham da Europa e mesmo dos Estados Unidos vinham com muito atraso. Tanto que a bienal em São Paulo ela nasce nos anos 50. Ela nasce muito mais como busca de uma informação europeia, trazer pro Brasil um tipo de arte que se fazia, sobretudo na Europa. Os Estados Unidos começa a entrar na bienal muito depois. E as revistas chegavam com 6 meses de atraso ou mais. Mas os artistas já da geração de Antônio Dias, de Gerchman, depois da geração de Cildo e que... quer dizer, eles frequentavam a biblioteca do Consulado dos Estados Unidos. Aí eles tinham acesso às revistas norte-americanas. E o consulado era em frente ao Museu de Arte Moderna. Já, por exemplo, a geração do Cildo que eles eram ainda estudantes secundaristas, mas eles tinham acesso à biblioteca da universidade, que é coisa do Darcy Ribeiro. Então a velocidade com que as revistas externas chegavam à biblioteca da universidade era muito grande. Então eles se atualizaram e já estavam se atualizando sobre o pós POP, que já era a coisa conceitual. Então quer dizer, alguma influência existiu. Isso não há dúvida nenhuma. Mas eu acho que não foi uma coisa assim de ser capacho, digamos, da POP. E de alguma maneira até o Gerchman é o que mais se aproximou. E, aliás, o Gerchman foi o primeiro desses a ir pra Nova Iorque. Mas isso já depois quando ele já tirou o prêmio. Então eu não que eles foram dependentes literalmente ou totalmente da POP, mas claro que há algum contato, mas com outras características por que os materiais eram outros, quer dizer, a realidade era outra. Por exemplo, o trabalho do Gerchman é muito mais político do que a maioria dos artistas.
EUGENIO: Também a questão da América Latina, para o POP norte-americano, fascínio ou a relação com os meios de massa, a cultura em massa, aqui se reformula como cultura popular. Era uma aproximação à cultura indígena, cultura popular...
FREDERICO: Não. Mas a cultura popular de massa é tema. É tema.
EUGENIO: Não. Mas até produz uma discussão grande dentro, entre os teóricos latino-americanos da época sobre as sutilezas entre cada campo: a cultura massa, a cultura popular, a cultura indígena... por isso produz essa flexibilidade ou que produz variantes de POP latino-americano, no caso diferente do povo cubano que assume Fidel e Che que o povo colombiano que também se aproximam de outra maneira que o povo brasileiro.
FREDERICO: Não. Mas eu mesmo fiz uma exposição chamada “O Artista Brasileiro e a Cultura de Massa”. Na ESDI. Nesse pavilhão lá que dava pros... então eu juntei uma porção de artistas que tratavam dos temas de cultura de massa. E o Gerchman é um dos personagens. Foi a primeira vez que o Hélio Oiticica mostrou o trabalho do Cara de Cavalo. O Che Guevara aparece com muita frequência por que o Che virou um clichê, clitchê. Não sou eu que inventei isso. Então quer dizer, há essa cultura de massa sim. Mas não vejo assim. E, por outro lado, quer dizer, eu acho que... por que a cultura de massa nos Estados Unidos ela já tem uma qualidade técnica e tecnológica muito maior do que no Brasil porque a gente era pobre ainda em relação aos meios. Então quer dizer, uma certa precariedade que isso e muito visível no Gerchman acaba dando uma conotação forte ao trabalho. E até politicamente por que a gente faz nessa precariedade um valor positivo. E lá eles... você vê. Os trabalhos do Oldenburg são todos muito bem feitos. O Liechtenstein também. Tem equipes. O Andy Warhol, quer dizer, a oficina dele chamava... como é que era?
CLARA: Fábrica.
FREDERICO: Fábrica. Factory. Exatamente. Quer dizer, ele tinha assistência aqui. E mais uma vez, o artista ele era o faz tudo. Quer dizer, só pouco a pouco a medida que vai criando um mercado, nascendo um mercado, que já tem alguns compradores, alguns colecionadores, você já pode até ter assistentes, coisas assim pra trabalhar. Mas naquele tempo e tal... e depois o Gerchman fez disso uma qualidade, essa rapidez. Porque as ideias eram meio borbulhantes, vinham assim, e tinha que botar tudo pra fora. Eu acho que o Gerchman nisso ele é um campeão. Ele trabalhou muito bem isso. E diferente de um Vergara que já pela forma, pelo tipo de formação dele, já é um trabalho mais lento. Quer dizer, o Roberto Magalhães, bom, esse nem entrou na cultura de massa porque ele ficou no mundo alquímico dele e tal. Mas é um trabalho que ele levava às vezes um mês pra fazer um trabalho. Aqueles cadernos dele. Qual é o outro? O outro é o...
CLARA: O Antônio.
FREDERICO: O Antônio tem também alguma coisa de POP. Mas ele rapidamente evoluiu pra questão mais conceitual. E depois ele entrou... ele foi pra Europa, passou algum tempo lá. Depois foi pra Itália onde a arte conceitual teve uma certa força. Então eu acho que no início tem a questão dos quadrinhos, dos primeiros trabalhos dele e tal, aquela narrativa quadrilizada, tinha muito sangue nas coisas dele. Mas depois ele já começa aquelas formas bulbosas, vão saindo do quadro e tal. Eu acho que tem. Eu acho que há diálogo com a POP Arte. Eu não acho que é uma simples importação. Até porque nesse momento a arte brasileira já tava ganhando força. Já vinha toda a coisa do concretismo. Que, aliás, esses artistas, geração do Gerchman, num certo momento até retomam algumas questões do neoconcreto. O Gerchman, principalmente. E quando ele vai pros Estados Unidos principalmente que ele faz as letras, os textos e tal. Mas é essas coisas aí.
BERNARDO: Como é que era o Gerchman? Última pergunta. Como é que era o Gerchman?
FREDERICO: Como é que ele era?
BERNARDO: É.
CLARA: Ou o Rubens?
FREDERICO: O Gerchman era assim meio...
CLARA: Não se acanhe. Não se acanhe.
FREDERICO: Não. Não. Como é que ele era pessoalmente? O Gerchman era uma pessoa assim extremamente educada, fino ou refinado. O Gerchman tinha um lado meio assim... eu não diria que é grosseiro, mas às vezes ele era muito duro as vezes. Entende? Quer dizer, por que dava logo as suas opiniões. Quer dizer, ele não se recolhia e tal. Não era uma pessoa... minha mulher podia falar dele, pois tempo que trabalhou com ele. Mas o Gerchman é assim. É muito parecido com a obra dele. Os artistas são muito parecidos com o seu trabalho. Você vê o Antônio Dias é muito cabeça. Muito assim e tal. Então quer dizer, o trabalho dele tem muita introspecção, tem muita coisa assim. Você tem que ficar decifrando aquelas coisas. Sabe? Tem umas coisas assim indecifráveis até pra ele, como ele mesmo diz quando sempre tem um cantinho assim que ele mesmo diz, não explica. E depois é extremamente controlado. Quer dizer, não se abre muito e tal. O Gerchman era meio porra louca assim. Abria. Falava. Era mais expansivo e tal até na maneira... mas era uma pessoa muito estimulante com os trabalhos dele e tal. Tanto que ele é personagem de muitas iniciativas e tal. O Antônio Dias, nunca tomou uma iniciativa assim de fazer uma... por que o Antônio Dias é mais um... como é que se diz? Esses caras assim que faz tudo meio escondido, meio... por que ele é um... politicamente tem um nome assim. É um conspirador.
EUGENIO: Clandestino?
FREDERICO: Não. Não. Clandestino não. Assim. Quer dizer... Ele faz tudo meio em silêncio e tal. Já leva a coisa mais ou menos pronta. E é muito crítico assim. O Gerchman era um... a pesar e uma certa coisa dele assim meio pra fora e tal ele era mais habilidoso eu acho pra lidar comas coisas políticas e tal. O Dias, por exemplo, era muito fechado. Muito assim difícil. E o Roberto Magalhães não tava nem aí. Tá na dele. Mas é um cara maravilho. Eu gosto muito do Roberto Magalhães. Desenhista primoroso e tal. Quer dizer então...
CLARA: É o nosso ermitão.
FREDERICO: É. Pois é. Os grupos geralmente dá uma espécie de distribuição de tarefas. Você faz isso, o outro faz isso, faz aquilo, etc. e tal. E sendo só 4 fica mais fácil. Agora se fosse demais, você vê, aí dá briga e tal por que aí começa a disputa de poder e tal. Mas o grupo foi importante. E é a primeira geração pós-construtivos e tal. Mas a sorte foi o Hélio ser elo de ligação. Um pouco a Lygia. Mas a Lygia era outra pessoa também esquisita, doente, muito fechada. Adorava... sempre que você ligava pra casa dela ela tava doente. Com dor de cabeça, não sei o que, “tô assim”. Não saía. E...
BERNARDO: Primeiro, eu queria que a gente esquecer um pouco o Parque Lage. Eu quero voltar um pouco no tempo pra te perguntar como você e o Rubens se aproximaram, como vocês se conheceram e como era esse primeiro momento de vocês dois, artistas.
ROBERTO: Então, a gente se conheceu acho que foi em 1962. Foi o ano da minha primeira exposição na Galeria Macunaíma, na antiga Escola Nacional de Belas Artes. Eu fiz uma exposição lá e comecei a frequentar a escola – como um intruso, né? – e fui conhecendo os artistas. E um deles foi o Gerchman. Isso tem 52 anos. Então, é uma amizade que vem desde aquela época. Sempre fomos muito próximos um do outro, sempre nos visitamos muito. Depois, mais recentemente, o Rubens foi pra São Paulo. Foi morar em São Paulo e a gente se desligou um pouco, mas a amizade sempre continuou. Mesmo as minhas visitas em São Paulo, frequentava a casa do Rubens, saía com ele, almoçávamos juntos. Foi uma amizade permanente.
BERNARDO: Esse primeiro momento, como era a troca de experiência de trabalho de vocês, como era o diálogo, nesse início da descoberta das artes?
ROBERTO: Nós éramos muito garotos ainda. Eu tinha 22 anos, o Gerchman, 20. E era uma época de muita efervescência nas artes plásticas. Não só nas artes plásticas, mas em todas as artes. Foi a época do Cinema Novo, da Bossa Nova. Em todas as artes havia um movimento de renovação. Então, a gente tinha muita coisa pra trocar, muitas opiniões, muitas ideias novas. E a gente trabalhava em cima dessas novas ideias, nesse novo boom que as artes estavam tomando, não só no Brasil , mas no mundo inteiro. Era mais ou menos isso.
BERNARDO: Como era o debate da poética de vocês? Porque o Gerchman falava muito, quando eu conheci ele, que vocês não gostavam, assim, do Pop. Tanto o Vergara, que a gente esteve com ele, falou que, assim, “não éramos pop”. Como era esse contato com a temática da pintura de vocês?
ROBERTO: A arte brasileira nessa época ia até, vamos dizer assim, Di Cavalcanti, Tarsila, Portinari, Pancetti – era até ali. E a nossa geração, ela começou a fazer uma coisa completamente diferente. Eu acho que esses movimentos, eles brotam espontaneamente dentro dos jovens. Tanto é, que essas gerações novas vêm com outras ideias, outra temática, outra maneira de se expressar. E é uma coisa que germina dentro de uma geração nova. E nós vivíamos essa época, mas tínhamos uma linguagem própria, independente do que se fazia no resto do mundo, independente do que se fazia nos Estados Unidos, por exemplo, que era onde surgiu esses movimentos Pop art. Nós éramos, também, brasileiros, sul americanos, naquela época não existia essa comunicação que existe hoje, né? Era uma coisa espontânea, mesmo.
BERNARDO: Queria que você tentasse se lembrar e me contar – eu não sei de nada, tá? –, me descrever como foi a noite do happening da G4.
ROBERTO: Ah, o happening da G4. Eu me lembro, assim, era muita gente. Foi em Copacabana, numa rua transversal, que eu não me lembro qual. Mas uma galeria, assim, abriu as portas para os jovens artistas. E era uma coisa meio, entre aspas, maluca, porque ninguém fazia aquilo. Eu, por timidez, por meu próprio temperamento, não me envolvi muito naquele happening, mas outros artistas, como o Gerchman, no caso, ele fez alguma coisa lá – eu não tô lembrado o que era, mas fez. Era uma coisa muito teatral. E os artistas participaram de uma maneira, assim, teatral, desse movimento. Eu não estou lembrado exatamente, eu me lembro da confusão.
CLARA: Foi aquele elevador social, que todo mundo entrou, ele lacrou, e, aí, começou aquela inquietação, e as pessoas romperam...
ROBERTO: Ah, então. Tá vendo? Essas coisas, a minha memória não é muito boa, não. Mas eu me lembro daquele ambiente. Como daqui da escola, eu me lembro do ambiente que existia aqui. Eu não me lembro dos detalhes dessas coisas.
BERNARDO: Você consegue lembrar, assim, porque a vontade de fazer esse happening, de onde vinha?
ROBERTO: Desses mesmos artistas. Que eram, além de mim, o Gerchman, o Antônio Dias, o Vergara, principalmente esse grupo, que resolveu fazer isso. Eu não sei por que, eu não me lembro por que, eu era muito desligado.
CLARA: Vocês eram muito novos. Você acha que vocês tinham a noção da dimensão, assim, do poder disso tudo?
ROBERTO: Não tinha, não. Não tinha mesmo. Tanto é que, falando de um assunto referente a mim, eu, naquela época, fazia umas esculturas. Como o Gerchman fez o elevador, eu fiz um grande revólver, fiz um grande microscópio de madeira. Tudo feito em casa, eu mesmo fazia. Eram objetos, como o Gerchman fazia esse elevador, essas caixas de morar, esses ônibus. Eu, depois, fiz uma exposição, lá nessa Opinião-65, lá no Museu de Arte Moderna – junto com esse grupo e muitos outros, inclusive de São Paulo –, e depois eu não sabia mais o que fazer com aqueles objetos, e, inclusive, eu dei coisas que pra mim seriam muito preciosas. Que eram objetos grandes, da época, mas eu não tinha a mínima noção do que estava fazendo, assim, profissionalmente. Apenas fazia.
BERNARDO: Vocês não tinham muita expectativa de mercado, também, né?
ROBERTO: Não, porque o mercado, ele praticamente não existia. O mercado de arte também foi um fenômeno que começou a existir nessa época. Praticamente não tinha galeria. Eu me lembro que existia a Galeria Bonino, a Petite Galerie – que foi a primeira, que era na Avenida Atlântica –, talvez uma loja ou outra. Não existia mercado de arte. E essa geração nossa coincidiu com o início do mercado de arte. O mercado de arte existia para esses artistas que eu falei, Di Cavalcanti... Mas era muito amador, entendeu? Não era uma coisa profissional, como hoje.
BERNARDO: Como é que nesses primeiros anos, nesses anos 60, nesse período todo, aí, de Opinião, da Nova Objetividade, como era o Gerchman nesse momento?
ROBERTO: Sempre foi a mesma coisa. Sempre agitado, ansioso, nervoso, empreendedor, sempre queria fazer coisas. Sempre foi assim. É a mesma pessoa, falante, opinava em tudo, era polêmico. E sempre companheiro. A gente viajava muito pra São Paulo, viajava, inclusive, dirigindo o carro, até São Paulo, levava coisa pra tentar vender lá. Era tudo muito no início. Hoje não, as coisas são muito mais profissionais, não existe esse movimento como naquele tempo, que era muito pessoal, amadorístico.
BERNARDO: Você sente saudade, disso?
ROBERTO: Às vezes sinto, sim. Mas talvez não seja a saudade da estrutura que existia, mas saudade da juventude que a gente tinha, sabe, tantos sonhos, tanta esperança de coisas que... Essas coisas não se realizam nunca, né? É como uma utopia, um ideal que nunca acontece. Parece que o mundo vai se complicando cada vez mais, né? Em vez de ficar mais simples, mais fácil, não, vai se complicando.
BERNARDO: Tem um período da época do Gerchman que é, assim, um pouco enigmático, que ele vai pra Nova Iorque. Quando ele foi pra Nova Iorque, como é que ficou a comunicação de vocês? Vocês trocavam carta, vocês tinham contato?
ROBERTO: Não. Comigo, muito pouco, nada. Quase não tinha comunicação. Ele foi e ficou lá durante um período. Um período, também, eu viajei pra a França e fiquei um tempo lá, e também não tinha comunicação – fiquei com o Antônio Dias, na época, lá. Mas, suponho que com o Gerchman nosEstados Unidos) era outro tipo de assunto, outra coisa, outro astral.
BERNARDO: E você foi pra a França. Você volta da França em que ano? Você lembra?
ROBERTO: Em 69. Eu fiquei de 66 a 69.
BERNARDO: Eu quero te perguntar, então, como foi o teu reencontro com o Gerchman, depois de Nova Iorque, quando ele retorna, no início dos 70.
ROBERTO: Não teve nada, assim, que eu me lembre, de extraordinário. Reatamos a amizade, continuamos trabalhando. Não teve, que eu me lembre, nada de extraordinário.
BERNARDO: Você notou nele alguma diferença?
ROBERTO: Não.
BERNARDO: Porque a obra dele muda muito, né, depois de Nova Iorque, em contato lá com o cenário de lá.
ROBERTO: É, mas eu acho que não tem nada assim de tão significativo, que seja uma transformação, na obra dele. Eu acho que ele sempre foi muito coerente no que ele fazia, até depois que ele voltou dos Estados Unidos.
BERNARDO: E nesse período pré Parque Lage, esses primeiros anos de 70, você estava fazendo o quê? Você já dava aula?
ROBERTO: Nos primeiros anos de 70 eu tava meio retirado, total, da vida artística. Eu tava num período de introspecção, de meditação, então, eu tava retirado absolutamente, não tinha contato com ninguém. Fiquei 4 anos assim. E depois de 74 é que eu comecei a retomar os contatos, as amizades, a minha vida de relacionamento. E foi aí que o Gerchman começou a organizar a transformação da escola que existia aqui... – eu não me lembro o nome dessa escola.
CLARA: IBA – Instituto de Belas Artes.
ROBERTO: IBA – Instituto de Belas Artes...pra transformar numa coisa que chamava Escola de Artes Visuais. Que foi uma coisa absolutamente revolucionária, que não existia na época, foi a primeira. Então, foi o período que ele estava organizando, e me chamou, entre outros, pra dar aula aqui. E eu vim, claro, com muito prazer. E ele realmente conseguiu fazer desse lugar um lugar muito legal.
Eu não sei ensinar. Mas, de qualquer maneira, eu procurava entender o que os alunos estavam fazendo. E dava força ao que eles estavam fazendo, não queria transformar ninguém. Mas era de poucas palavras, entendeu? Eu passava o tempo todo naquela sala, ia observando e tal, mas não criticava muito. Apenas procurava incentivar as potencialidades de cada um. Agora, eu me lembro, também, que o Gerchman sofreu muita oposição pra abrir esse lugar aqui, do jeito que ele queria. Muita oposição, mesmo. Ele sempre reclamava, comentava de pessoas contrárias a esse lugar. E não só pessoalmente, mas como ideias políticas, também. E queriam transformar esse lugar em outro lugar que não fosse escola de artes. É um lugar muito grande, muito bonito, muito bem localizado, então politicamente era muito visado. E o Gerchman sofreu muita oposição pra abrir isso. Mas uma das características que o Gerchman tem, e deu certo, é que pra fazer o que ele fez aqui ele peitou, entendeu? Uma das características dele, que ajudou a ele a realizar isso, foi a coragem dele de peitar isso tudo, essas oposições políticas e pessoais que vieram contra as ideias dele. E ele peitou e conseguiu. Se não fosse essa força interior que ele tinha, outra pessoa não conseguiria. Ele conseguiu por causa disso, também.
BERNARDO: Você trocava ideia com ele sobre a sua oficina, sobre o desempenho dos alunos? Vocês conversavam sobre isso?
ROBERTO: Não muito. Eu me sentia muito à vontade, aqui. Ele deixava todos os professores à vontade, fazerem o que quisessem. Inclusive o próprio funcionamento da escola – não digo a parte administrativa, mas a própria comportamento dos alunos da escola – era muito livre. Como até hoje é, suponho que seja. Então, isso é uma das características aqui do Parque Lage, esse desprendimento, essa despreocupação com regras. Como todo artista deve ter, né? É muito livre.
BERNARDO: Você colaborava em outras oficinas com os professores, também?
ROBERTO: Não me lembro. Participava pra observar eventos que havia, filmes, teatro. Participava como espectador, mas não colaborava, não.
BERNARDO: A gente tava numa entrevista com o Eichbauer, o Hélio Eichbauer...
ROBERTO: Era um deles.
BERNARDO: ...ele fala uma coisa muito interessante, dessa ideia da liberdade. Ele fala que – se eu estiver falando besteira, vocês me corrijam, tá? – era importante ter muita liberdade, mas era importante ter método. E que era muito importante pra a produção, pra a criação, que houvesse alegria no ambiente. Você acha que essa perspectiva de juntar liberdade, método e alegria pertence a essa época, era uma coisa da época?
ROBERTO: Eu acho que não é só da época, mas é uma coisa muito pessoal de cada um, entende? Eu acho que pra se realizar alguma coisa é preciso essas três coisas, liberdade, método e alegria interna de fazer aquilo que gosta, que sabe fazer bem. Então, depende muito de cada um. É claro que isso se extravasa. Extravasa no ambiente, influencia outras pessoas, principalmente os jovens. É importante, essas três coisas que o Hélio falou. Eu acho, mesmo.
BERNARDO: Você deu aula durante os 4 anos que o Gerchman ficou aqui, né?
ROBERTO: Eu acho que não. Eu não me lembro, ao certo, mas um pouco mais de 2 anos eu dei aula aqui. Ou em dois períodos diferentes – não estou lembrado. Eu sei que 74 eu acho que foi um deles, 76 eu me lembro de ter dado aula aqui. Mas eu não sei se foi junto, em sequência, ou em épocas separadas.
BERNARDO: E você convivia, também, aqui, fora dos horários de aula?
ROBERTO: Convivia, era um lugar lindo. Não existia outro, no Rio, que substituísse o Parque Lage. Não tinha outro. Porque antes do Parque Lage o encontro dos artistas era no Museu de Arte Moderna. Antes do museu era na Escola Nacional de Belas Artes, depois veio a Revolução, fecharam aquilo lá, impediram a entrada de qualquer pessoa na Escola de Belas Artes, jogaram uma bomba na porta da escola, e os artistas que se reuniam por ali se espalharam. Começaram a se reunir no Museu de Arte Moderna. Depois da abertura da Escola de Artes Visuais, foi um foco de encontro, o foco de atenção para os artistas, alunos. E que foi muito importante, nessa época, não existia outro.
BERNARDO: O Parque Lage e a experiência como educador aqui, de alguma forma influenciaram ou mudaram os seus rumos como artista, o rumo do seu trabalho em ateliê?
ROBERTO: Não, não mudaram. Mesmo porque, como falei, eu não sei ensinar. Porque como é que eu vou ensinar arte? Não tem como, né? Você pode ensinar a técnica, você pode ensinar ao aluno desenvolver aquilo que ele é capaz de fazer, mas a arte não se ensina, não tem como transmitir isso. Agora, eu achei muito importante pra mim esse contato com os alunos, com pessoas que estavam iniciando. Porque, no fundo, eu também aprendia muita coisa com as pessoas que não tinham experiência nenhuma. Eu também me beneficiava disso, aprendi muito.
BERNARDO: Você lembra do período em que teve o incêndio do MAM, qual era a repercussão? Como é a tua memória desse momento?
ROBERTO: Me lembro. Me lembro que eu soube – claro, todo mundo soube – que o MAM tinha pegado fogo. Foi chocante. Mas nesse período, não sei, eu não tava muito envolvido com as coisas, sabe? Eu tava muito ainda desligado do mundo. Isso foi que ano?
CLARA: 1978. Teve uma marcha, a eles produziram faixas, e ele mobilizou uma saída daqui, em direção ao Museu.
ROBERTO: Não, isso eu não participei. Eu não era, eu não sou uma pessoa muito, assim, chegada a esses movimentos populares, essas saídas, essas coisas de rua. Eu não sou assim. Eu sou mais recluso. Então, essas coisas, não participei, não. Apenas fiquei chocado com a história do MAM. Porque eu, inclusive, tinha quadros no MAM, e que se queimaram.
BERNARDO: Havia também uma coisa, acho que é uma coisa até dos anos 60, que tem aqui no Parque Lage, também, nos anos 70, que é uma preocupação e uma vontade muito grande com o debate. Por que, na tua opinião - não sei se você participava tanto do debate....
ROBERTO: Não. Debate, não.
BERNARDO: Mas você consegue me dizer por que a tua geração gostava tanto do debate?
ROBERTO: Porque era um período de transformação, tava mudando tudo. Até alimentação mudou, entrou a macrobiótica, comida vegetariana, isso tudo não existia, entendeu? Foi uma época, os anos 60, realmente como eu falei, foi um boom cultural, no mundo todo. Até a comida mudou, o vestuário mudou, as roupas. Vieram os movimentos hippie. Mudou tudo, comportamento, vieram... a maconha, né? Porque antes disso não existia, não. Isso começou a existir no princípio dos anos 60. Então, mudou a cabeça de todo mundo. Pra você ver, até a comida mudar, né? Até a filosofia hippie. A música, os Beatles. Mudou tudo.
BERNARDO: Você falou muito do Gerchman, falou coisas muito legais, dele. Agora, você chegou a ver o Gerchman dando oficina aqui, oficina dele, ele como professor?
ROBERTO: Não. Nunca vi. Talvez não tenha coincidido os horários, ou os dias, né? Mas eu via ele sempre aqui, estava sempre com ele, aqui. Mas ele estava sempre preocupado com a coisa da estrutura, do funcionamento, da implantação do que ele queria aqui, das oficinas que ele queria criada. Ele sempre debatia e conversava muito com a gente isso. Mas as aulas dele, mesmo, eu nunca presenciei.
BERNARDO: Porque alguém escreveu, ou falou, não sei – e eu não vou me recordar quem, agora –, dessa ambivalência, que ele era um homem muito generoso, mas, ao mesmo tempo, muito exigente.
ROBERTO: É, era exigente. Exigente e autoritário. Ele tinha autoridade. Por isso que ele conseguiu formar esse Parque Lage, senão não conseguia, não. Autoritário no bom sentido, impor a ideia que ele tinha e o que ele vislumbrava pra construir aqui. Então, ele tinha que ter autoridade.
BERNARDO: Eu sei que você tá falando da memória, não sei quê, mas por que você acha que ele saiu daqui? Por que você acha que não teve continuidade?
ROBERTO: Olha, é tão difícil falar nisso, mas eu acho que também tem um período que a pessoa cansa, né? Talvez não fosse a vocação dele ficar a vida inteira dirigindo uma escola dessa. Ele fez o que ele pôde, ele deu o máximo, no período que ele pôde, e, talvez, o tempo dele nessa implantação dessa estrutura do Parque Lage tenha terminado. Pra ele, talvez, né? Pode ser isso, pode não ser. Não sei por que. Mas eu vejo assim, também. Cansou, talvez. Não sei. Queria fazer outras coisas, queria ou viajar, ou continuar a arte dele, e isso ocupava muito a cabeça dele.
CLARA: Roberto, tenta me falar alguma coisa, a gente achou uns registros que vocês depois vão criar aquela escola na Barra – não é na Barrinha, mas é no início da Barra –, que já é 80. Então, se ele sai daqui em 79 e vocês lá repensam – tudo bem que é criança, é outra dimensão –, como é isso, como foi essa história?
ROBERTO: Eu não tenho a memória detalhada desse tempo. Mas eu acho isso. Ele se aborrecia muito, aqui, com essa política em cima do lugar, era um desgaste muito grande pra ele. E ele é artista, ele não ia ficar a vida toda administrando e combatendo politicamente. Não era a vocação dele. Talvez tenha sido isso, ele pode ter cansado disso e queria fazer outra coisa. Ou isso que você está falando, ou, então, continuar fazendo a arte dele sem tá a cabeça ocupada com esse desgaste daqui.
CLARA: Eu queria saber do Roberto Maia, um pouco, se você tem alguma fala. Se você souber do curso dele, ótimo, mas, se não, uma fala afetiva.
ROBERTO: Eu gostava do Roberto Maia. Gosta muito. A gente se encontrava muito, aqui. Ele era muito bem humorado. Muito falador, muito bem humorado. Mas nós não chegamos a ter uma amizade mais próxima, entendeu? Era amizade do ambiente, mesmo, aqui, a convivência aqui. Eu gostava muito dele, claro, que era uma pessoa muito legal. Mas não tinha essa amizade próxima, como tinha com o Rubens.
BERNARDO: Você consegue lembrar quais eram as outras pessoas aqui, dentre os professores, ou alunos, que você conviveu mais intensamente?
ROBERTO: É esses que eu me lembro, o Hélio Eichbauer, o Santeiro, o Roberto Maia e outros – dá um branco, às vezes.
BERNARDO: Celeida...
ROBERTO: Celeida. Eram pessoas muito legais, era um ambiente muito agradável.
CLARA: Você lembra de alguma história, assim, algum episódio?
BERNARDO: Algum, vai, um lado B, aí.
ROBERT): Deve ter tido, mas eu não tô lembrando, assim.
M1: Algum porre, alguma noitada dessas, o pessoal no telhado...
ROBERTO: Não, sempre teve umas festas, né? Eu me lembro só daquele movimento de gente, daquela confusão, mas não tem nada, assim, que tenha saído das rédeas. Foi tudo normal.
CLARA: Roberto, e a ida pra Mauá? De repente vocês dois vão pra Visconde de Mauá e constroem os seus ateliês. E você tá lá até hoje?
ROBERTO: Tô até hoje. Então, a primeira vez que eu conheci o lugar que eu estou, lá em Mauá, eu estava com o Rubens. Nós – eu, o Rubens – fomos passar um fim de semana na casa do Oscar Araripe, que hoje tá lá em Tiradentes. E fomos no carro do Rubens, um Jeep. Ficamos lá, e o Oscar Araripe começou a nos levar pra ver lugares que a gente podia pensar em adquirir alguma coisa lá. E o Rubens comprou uma terra lá no Vale da Prata e eu comprei, logo em seguida, no Vale das Flores. Então, fomos juntos, lá, e descobrimos esses lugares lá, que hoje são nossos, na mesma época, nessa mesma viagem.
BERNARDO: Então essa retirada foi conjunta?
ROBERTO: Foi conjunta.
BERNARDO: Por que?
ROBERTO: Eu não sei por que. Porque sim. Era apenas uma aventura. Poxa, isso já tem 30 anos. Vontade de ter um lugar fora, um lugar bonito, cheio de cachoeira, de mata, de frio, árvores. Não tinha intenção nenhuma, a não ser ter um lugar bonito, fora do Rio. Mas foi junto. Fomos juntos, vimos os lugares juntos.
BERNARDO: E como ficou essa amizade, nesses anos 80?
ROBERTO: Sempre foi a mesma. Por mais tempo que, às vezes, a gente se separe, a amizade sempre continua. Eu tenho muitos amigos que eu não vejo há anos, mas são meus amigos. Eu mesmo sou uma pessoa, como eu expliquei, muito retirada, gosto muito de ficar lá em Mauá, fico muitos dias lá. Não frequento os lugares aqui no Rio, mais, não saio à noite. Eu sou caseiro. Então, não encontro mais as pessoas – muito raro –, mas as amizades continuam. E são amizades muito antigas. Não se desfaz nunca. A gente só encontra e, poxa, o outro tá com a barba mais branca, o cabelo mais branco. Mas a amizade continua.
PEDRO: Às vezes caiu um dente, né?
ROBERTO: É. Cai um dente, fica mais careca.
CLARA: Pra a gente chegar no nosso sítio a gente passa, praticamente, pelo seu, né? Então, eu lembro que o meu pai, a gente ia dirigindo, toda vez a gente olhava pra o alto, “Roberto Magalhães”!!!!
ROBERTO: Pois é, exatamente. Porque a gente era separado por uma montanha. De um lado tá a minha casa, do outro lado a casa do Rubens, entendeu? E tinha uma montanha. Mas pra um pra outro tinha que dar a volta, claro. Uma volta enorme.
CLARA: Se tivesse um túnel...
ROBERTO: Se tivesse um túnel... Tem uma trilha de cavalo, ali.
PEDRO: Você acha que essa sua ida pra Mauá, há 30 anos, assim, ela acabou influenciando no seu trabalho como artista?
ROBERTO: Olha, eu acho que não. Mas que influencia na visão do mundo, influencia. Você vê o mundo de outra maneira. Isso, quando você fica um período grande, lá, que você fica um mês, dois meses, direto. Você vê a cidade completamente diferente, o mundo. É outro mundo. Lá é outro mundo.
BERNARDO: Você fala que a sua oficina era muito livre, não sei quê, mas todo mundo que falou com a gente, que foi seu aluno, falou que foi muito importante ter sido seu aluno. Sabia?
ROBERTO: Poxa, que surpresa. Não sabia.
BERNARDO: Falam que aprenderam muito com você.
ROBERTO: Pois é, porque eu ensinava, como te falei, mais a técnica, a maneira da pessoa desenvolver a sua criação, a sua criatividade, desenvolver a potencialidade. Eu não influenciava, “ó, faz assim, vai por esse caminho”. Não era isso, eu nunca fiz isso. Eu deixava a pessoa livre pra ela seguir o que ela podia fazer, a inspiração dela, a criação dela.
CLARA: É, o Luiz Ernesto, aquele que foi seu aluno, falou, “bom, eu ficava esperando o Roberto vir e olhar o trabalho. Quando ele dava uma balançadinha de cabeça é que tava tudo bem”.
ROBERTO: É, eu às vezes saía da sala, ficava sentado na piscina. Porque as pessoas estão concentradas, tavam desenhando concentradas, não é? Eu não vou ficar lá tirando a concentração da pessoa. Deixava aparecer alguma coisa pra poder ir lá e falar, dar uma sugestão. Não ficava em cima, sabe? Deixava ela livre. Quer dizer, não dava aula, né?
CLARA: Mas o meu pai falava muito em não ser aluno, mas ser usuário, e não ser professor e, sim, ser um orientador.
ROBERTO: É, isso mesmo. É isso mesmo, um orientador. Agora, sem influenciar o aluno pra o que o professor acha que ele deve ser, a verdade do professor. O professor é apenas um orientador, ele não vai dizer que, “olha, segue por ali, ou segue por aqui”. Não, o aluno é que sabe. Não é? A pessoa é que sabe. É muito pessoal.
BERNARDO: Agora, uma pergunta toda trivial. Era pintura a óleo, que vocês faziam aqui?
ROBERTO: As minhas aulas eram de desenho. Tinha outros professores que davam pintura a óleo. Mas eu dava mais era desenho.
BERNARDO: Eu li que você dava aula de desenho em cores, é isso?
ROBERTO: Em cores! Qualquer técnica. De guache, ou aquarela, ou pintura acrílica, com lápis de cor. Qualquer material sobre papel – ou a preto e branco ou tinta, mas sempre sobre um papel. Desenho.
BERNARDO: Agora, se você quiser me dizer se você tem muita saudade do Gerchman... Você tem?
ROBERTO: Ah, o que eu vou responder, hem? É, poxa, faz falta, né? Faz falta, porque era um companheirão. Mesmo quando ele estava em São Paulo, eu ia pra São Paulo, a gente saía junto. Estava sempre junto, entende? Cada um já com a cabeça muito mais velha do que antes, do que a juventude, com outra visão do mundo. Mas estávamos sempre juntos e conversávamos, sobre todos os assuntos possíveis. Então, faz falta, a gente sente saudade.
BERNARDO: Eu me lembro muito de quando eu convivi com ele – já tem uns 12 anos, isso – ele tinha um carinho especial, quando a gente citava teu nome, assim.
ROBERTO: Sei.
BERNARDO: Ele tinha um certo brilho no olho pra falar da tua obra e da tua amizade, assim. Isso era uma coisa que eu me lembro.
ROBERTO: É, e eu sentia que ele admirava o que eu fazia, também. Pelos comentários dele. Eu sentia isso. Quando ele falava do meu trabalho pra outras pessoas eu sentia isso. Então, eu tenho essa gratidão, também.
CLARA: Um apreço.
ROBERTO: É, um apreço, poxa, que legal. Fomos grandes amigos. Desde 52 anos atrás, 1962.
CLARA: A gente estava falando do Instituto Belas Artes, que vocês já estavam juntos desde lá, você, o Gerchman e a Ana Maria Maiolino.
ANTÔNIO GROSSO: Não, não lá. Lá não, estávamos juntos na Escola de Belas Artes.
CLARA: Como foi esse encontro?
ANTÔNIO GROSSO: Esse encontro foi mais na sala de gravura mesmo. Era a sala do Goeldi... o caminho foi esse. Enfim, e daí cada um foi para um lado, logicamente. Viemos a nos encontrar depois no Parque Lage, mas eu já estava lá.
CLARA: Você estava no IBA, no Instituto Belas Artes?
ANTÔNIO GROSSO: Isso, isso. Depois é que houve a troca de nome e tudo mais. Aí foi uma arrancada, uma alavancada boa com gente moça, com gente nova e mais participativa na época. Eram bastantes artistas a dar aula, enfim, e foi se vivendo aquele período, que foi bom. Eu cheguei a introduzir a litografia lá e aí vieram exposições, essa que você tem o cartazinho, teve uma outra, essa que eu te disse que eram “14 Para Viagem” e outras. Vieram alunos também.
CLARA: Sempre na Escola?
ANTÔNIO GROSSO: Sempre na Escola. E como poesia, essa coisa de teatro, como se chama? Com o corpo?
BERNARDO: Performance.
ANTÔNIO GROSSO: Não, isso era mais ligado com o Hélio. O Hélio fazia lá uns tumultos. Enfim, mas foi um período muito bom. Eu acho que para os alunos também, para a turma mais moça. Alguns viraram professores, inclusive até diretor do próprio Parque Lage.
CLARA: Você ficou até que ano?
ANTÔNIO GROSSO: 80 e qualquer coisa. Eu saí acho que logo depois do Lontra. Um bocado, fiquei lá um bocado.
CLARA: E como foi estruturar o atelier de litogravura?
ANTÔNIO GROSSO: Isso foi no período do Darcy Bove. Eu fui transferido da Secretaria de Educação para lá e introduzi aí a litografia. Foi daí para cá que... o Rubens quando chegou lá já tinha a litografia já funcionando.
CLARA: E seguiu nos mesmos moldes?
ANTÔNIO GROSSO: Seguiu nos mesmos moldes, sendo que com algumas alterações, com mais exposições, dando mais chances também para os alunos. Eram alunos e professores, eu acho que essa coisa não se distingue muito bem não. Eram várias exposições. Você também poderia participar em uma, em outra, enfim.
CLARA: A gente ouviu falar muito que a escola se alimentava dela mesma.
ANTÔNIO GROSSO: É, não havia uma regra para você... "só faz isso, então só faz aquilo". Não, tinha um conjunto de coisas e você participava, enfim. Em que eu posso te ajudar mais?
PEDRO: O Gerchman, a formação dele, tudo bem que ele estava vindo de Nova York onde ele tinha convivido com uma turma da arte conceitual, então ele vinha com outras influencias, mas a formação dele primordial é de gráfico, de artista gráfico.
ANTÔNIO GROSSO: Exatamente, foi por isso que eu disse a ela que nós tivemos esse início na Escola de Belas Artes. Isso vem daí. Eu, ele como qualquer outra, Ana Maria Maiolino foi a primeira mulher dele, veio daí. Enfim, era do atelier do Goeldi.
PEDRO: E você acha que o Gerchman, ao longo do período que ele foi diretor da escola e que você estava à frente do atelier, você acha que essa formação de gráfico dele de alguma forma ajudou na produção do que aconteceu dentro o seu atelier? Ou seja, essas outras matérias do curso, vinham alunos de outros lugares?
ANTÔNIO GROSSO: Sim, porque aquilo não era fechado, você podia visitar o atelier que você quisesse, o atelier de pintura, o atelier de gravura, atelier de cerâmica com a Celeida. Enfim, você não tinha uma regra, não era só a sua sala de aula, que você entrava, saía e ia embora. Não, não era isso, era um conjunto. Isso funcionava assim.
CLARA: E como você acha que foi estabelecida essa metodologia, esse pensamento pedagógico dessa escola?
ANTÔNIO GROSSO: Agora eu não sei te informar isso, mas o Rubens deve ter se informado com algumas outras pessoas, pessoas com bastante experiência para que ele também caminhasse.
CLARA: Mas eu digo, ele deixava, por exemplo, você livre com a sua aula ou vocês tinham...
ANTÔNIO GROSSO: Não, não, era livre com a aula, enfim, não havia rigidez nenhuma com relação a isso. Logicamente ele estava a par do que estava acontecendo e você também tinha que dar uma satisfação que fosse ou apresentando coisas ou conversando. Eu acho que era por aí.
BERNARDO: Eu queria voltar nessa história de como você conheceu o Gerchman. Como era esse Gerchman desde o início?
ANTÔNIO GROSSO: Olha, éramos todos iguais, não havia distinção não, havia vontade de fazer alguma coisa. Isso sempre predominou, a vontade de fazer alguma coisa. Então éramos todos iguais, sem nada, nem mais para um, nem mais para outro nem menos, eram iguais.
BERNARDO: Que coisa era essa que vocês estavam a fim de fazer?
ANTÔNIO GROSSO: Que coisas nós fazíamos lá?
BERNARDO: É.
ANTÔNIO GROSSO: Gravura. Gravura, trocávamos ideia, enfim. É bem verdade que a sala de gravura do Goeldi era mais formal, isso estou falando da Escola de Belas Artes, mais formal. Mas nada impedia que você, saindo, batesse papo ou tivesse um outro tipo de visão. Ou saísse dali e fosse fazer o seu trabalho individual, sem regras, sem coisa nenhuma, era o que você estava pensando e o que você estava executando. Eu acho que é isso aí.
BERNARDO: Em que ano foi mais ou menos que você conheceu o Gerchman?
ANTÔNIO GROSSO: E agora?
CLARA: 62?
ANTÔNIO GROSSO: Pode ser.
CLARA: Talvez um pouquinho antes?
ANTÔNIO GROSSO: Por aí, por aí, é.
CLARA: 60?
ANTÔNIO GROSSO: É, por aí, anos 60, por aí. Já tem um bocado.
CLARA: Uma pergunta, voltando ao Parque Lage, você acha que essa coisa que acontecia, essa coisa livre que as pessoas entravam na sua sala, iam para a sala do Rubens, iam à sala da Inês Paula, a Celeida, esse encontro influenciou na produção do que os alunos estavam produzindo na tua matéria?
ANTÔNIO GROSSO: Acredito que sim, porque são conversas e caminhos, eu acho que você ganha muito esse diálogo com outras pessoas, com outros artistas, fazendo coisas diferentes do que você está executando naquele momento. Eu acho que você só tem a enriquecer. Esse é o meu ponto de vista.
CLARA: Será que você consegue falar alguma coisa da Celeida pra gente?
ANTÔNIO GROSSO: Eu não consigo não. Eu conheci Celeida... porque éramos vizinhos de atelier, o atelier era colado no meu.
CLARA: Lá embaixo?
ANTÔNIO GROSSO: Lá embaixo. E a Celeida estava sempre correndo, então para a gente conversar com Celeida era fora da escola, tomando um chopinho, era um outro mundo, porque ela tentava também passar isso para os alunos, ela tentava ajudar da melhor maneira possível, estava sempre junto.
CLARA: E como era o exercício da liberdade em um momento tão ao contrário, um momento da ditadura, um momento tão duro?
ANTÔNIO GROSSO: Olha, eu acho que para o aluno moço ainda, que está entrando, vendo essas coisas e tudo mais, acho que ele não pensa muito não. E se pensa, ele vai descarregar aquilo em um trabalho. Eu acho que é isso. Ele vai fazer alguma coisa que diga a insatisfação.
CLARA: Mas vocês viveram, você lembra de algum caso, alguma história naquele espaço ou justamente de resistência ou então alguma situação política que vocês tenham vivenciado?
ANTÔNIO GROSSO: Não, não lembro disso não. Se existiu, eu não sei. Pode ser até que tenha existido e eu não saiba.
CLARA: E você ficava lá direto? Porque tem muita gente que falava que não saía.
ANTÔNIO GROSSO: Não, eu ficava 3 dias na semana acho que durante o período da manhã e o período da tarde. E depois eram os próprios alunos mais velhos quem ficavam lá tomando conta do atelier, que era para a turma desenvolver seu trabalho, senão não dá tempo.
BERNARDO: Como foi essa diferença de sair de um instituto onde era uma coisa, uma...
ANTÔNIO GROSSO: Rigidez.
BERNARDO: Rigidez e de gente mais velha, não sei o que e quando vem essa jorrada de gente jovem, cheia de energia. Como mudou o trabalho, o resultado desses trabalhos?
ANTÔNIO GROSSO: Isso é lento, são passagens lentas, você sai de um negócio rígido e vai para um ambiente mais livre. Eu acho que essa coisa vai tomando corpo, você vai se acostumando a isso. O diálogo que você tem com o outro que está entrando também e com uma outra mentalidade eu acho muito bom.
BERNARDO: Mas você consegue dizer se mudou a característica dos trabalhos? Quer dizer, que mudou, mudou.
ANTÔNIO GROSSO: Muda, muda sim. Muda fisicamente, muda, a imagem modifica, tudo se modifica. Acho que é bom, esse diálogo é sempre bom.
CLARA: E a sua oficina dialogava com as outras, você sentia essa...
Antônio Grosso: Dialogava pelo seguinte, porque as exposições, por exemplo, exposição de litografia com “14 Para Viagens”, por exemplo, era professor de pintura, professor de desenho, professor de cerâmica, eram todos lá fazendo gravura. Então o diálogo é muito bom.
PEDRO: Interessante isso. Como você acha que a gravura era vista nesse território de hippies? Era todo mundo hippie.
ANTÔNIO GROSSO: É.
PEDRO: Como esses hippies viam a gravura, que é um negócio tão tradicional?
ANTÔNIO GROSSO: Era mais experimental. Uma certa ocasião um aluno falou para mim, "Grosso, eu queria fazer o seguinte, eu vou desenhar um pedaço aqui na pedra e depois eu vou despejar a gasolina e vou tacar fogo, posso?". "Pode, mas vá lá para dentro do tanque, se tiver algum problema a gente abre a torneira. Pode, ué. Por que não?". Você entendeu? Então era isso.
CLARA: E o mercado de arte? Porque não existia mercado.
ANTÔNIO GROSSO: Aí já é complicado. Pouquíssimos eram os que vendiam. O Roberto conseguia vender alguma coisa, quem mais? Não me lembro nem mais quem conseguia vender gravura. Não me lembro, realmente não me lembro.
BERNARDO: Que era esse Gerchman? Qual era a diferença do Gerchman lá dos anos 60, começando, garotão, vindo com toda a bagagem do pai dele para esse Gerchman que já chega mais contemporâneo, pós-Nova York, bacana? Qual é a diferença desses dois Gerchmans que você teve contato de conviver?
ANTÔNIO GROSSO: Não tem nada a ver um com o outro, obviamente não tem nada a ver. A figuração, a imagem que é criada antes e depois não tem nada uma com a outra. Acho que até no pensamento não tem nada a ver uma coisa com a outra. Você entra para a Escola de Belas Artes, você experimenta muita coisa, mas depois que você tem um cunho mais profissional, a coisa tem outro caminho. A imagem vai se modificar e você já vai tentando resolver problemas aí.
CLARA: E vocês se acompanharam até que ano, você lembra? Que fase?
ANTÔNIO GROSSO: Olha, depois do Parque Lage nosso contato era mais profissional, para imprimir alguma coisa, pra eu imprimir alguma coisa ou coisas assim. Era mais isso, era mais por aí. É bem verdade que ele ficou mais ligado com serigrafia que com a litografia. Ele ficou mais ligado aí.
CLARA: Você pode dizer que vocês ficaram amigos?
ANTÔNIO GROSSO: Sim, éramos amigos. Tantos anos. Toda hora ele vinha pegar você aqui no colégio.
CLARA: Alguma história, algum momento?
ANTÔNIO GROSSO: Não. Ele passava aqui, "amanhã volto aí". "Tá bem, volta". Pronto. A Maria Maiolino ficou mais afastada. Eu não tive bastante contato com ela depois.
PEDRO: Perdão, interrompi o senhor. Uma pergunta só, desses todos alunos seus que passaram pelo Parque Lage, algum se destacou, algum você se lembra dele até hoje?
ANTÔNIO GROSSO: Quem? Tem o Luiz Ernesto, que foi aluno de litografia, depois foi professor de desenho, depois foi diretor, tem a Claudia. A Claudia eu não sei se exerce alguma coisa com relação a artista.
CLARA: Saldanha?
ANTÔNIO GROSSO: É, Claudia Saldanha. Quem mais? De pronto assim, não lembro. É muita gente, é muita coisa. E minha cabecinha já está dando umas falhadas.
TUNGA: Maioria das coisas sobre o Rubens Gerchman, e o Rubens Gerchman, tem muitos Rubens Gerchman, primeiro tem muitos Rubens Gerchman no meu coração e no meu espírito, porque era um grande amigo meu, e tem muitos Rubens no mundo que escreveram uma trajetória plural, criando transformações na arte brasileira, na cabeça de muita gente, no modo de olhar de muita gente, e de maneira diferente, a maneira de ele ser, na maneira de ele ver as coisas, representando através da obra dele, da pintura, dos gestos, da performance implícita em existir, e também de uma maneira muito peculiar, que foi sendo Diretor de uma Escola de Arte, coisa que muito surpreendeu a gente, quando isso aconteceu, e isso foi há muito tempo, foi nos anos?
CLARA: 75, 79.
TUNGA: Passados. E o Rubens chega com esse projeto, e surpreende todo mundo porque ele ocupa um lugar que era uma escola acadêmica, um pouco morta, um pouco empoeirada, enfim, que tinha uma função quase que social, de abrigar pessoas desocupadas, fazendo uma pintura de paisagens, outras pessoas de uma reflexão diletante. E ele traz uma novidade eufórica, e convoca todo mundo que estava em volta. E quem era todo mundo? Eram as melhores cabeças que estavam querendo se concentrar, querendo uma transformação, então tinha gente de teatro, gente de dança, tinha gente de desenho, gente de pintura, e gente que estava querendo uma transformação, e esse Rubens é mais um deles, que nos levou agora a falar dele, porque começa a partir dessa experiência do Parque Lage. Uma pergunta.
BERNARDO: Eu queria fazer uma pergunta para você. Eu queria que você primeiro me contasse, quando você ainda muito comunista, na sua carreira jovem, como é que... quem eram essas pessoas, assim, quem era essa tal geração anterior à sua?
TUNGA: Isso é muito curioso. No início da carreira jovem e agora, mas enfim, não, é muito curioso, porque há uma defasagem de uns 15 anos de diferença, e eu muito cedo comecei a me interessar por artes, pelo contexto da minha vida, contexto familiar, e frequentar galerias, vernissages, e era galeria relevo, o lugar que eu ia, mas teve um dia que teve uma sessão de um filme, à meia noite, no Rian, e era um filme chamado, “Ver e ouvir”, do Antônio Carlos Fontoura, e que era um filme sobre quatro cavaleiros apocalípticos, na minha visão de 15 anos, 16 anos, e que eram o Roberto Magalhães, o Carlos Vergara, o Antônio Dias e o Rubens Gerchman. Então era uma espécie de Beatles, cada um aparecia como um exponente, como uma direção, e abrindo uma percepção do real, que para aquele momento era um campo completamente inexplorado, e que a gente foi investigando, essa abertura eu acho que o Rubens oferece, eu por acaso moravam em Copacabana ao lado de uma galeria chamada G4, aonde houve uma exposição também do Rubens, e era uma espécie de lugar que movimentava esse pessoal, ia muito moleque frequentava. Então a presença do Rubens para mim foi paradigmática na minha formação, bem como a dos outros companheiros dele, era como referência, eu acho que o Rubens abriu a porta. Tive a imensa sorte de vir morar e ser vizinho do Rubens, e perpetuar uma amizade que já existia, uma simpatia, uma proximidade, e transformar em uma amizade legítima, e que a gente como vizinho tinha as mesmas inquietações como artista, e se cruzava, e ia um para a casa do outro, e conversava, e eram diálogos intermináveis e coisas que enfim, não se perdem, se mantém vivas e toda vez que eu olho a obra do Rubens por aqui ou por ali, vem a obra, e vem ele, e vem as conversas, e vem essas inquietações, e vem esses espírito de combate, de transformação, que sempre esteve presente nele, e que eu acho que continua sendo uma marca fundamental para uma artista hoje, quer dizer, é uma falta imensa que faz, e é uma presença imensa que tem, e uma falta no meu coração. Está bom.
BERNARDO: Clara está emocionadíssima aqui, chorando do meu lado. Eu queria que... não, eu queria também que aquilo que a gente quer tentar aprofundar um pouco na pesquisa é a questão da Malasartes, como era para aquele momento, qual foi a importância da Malasartes, e se puder contar o que era a Malasartes também?
TUNGA: Olha só, eu não fazia parte do corpo da Malasartes.
BERNARDO: Mas você publicou em Malasartes?
TUNGA: Eu publiquei no Malasartes, mas eu não estava dentro do corpo editorial, eu não sei porque boa razão porque fazia um pouco parte daquilo tudo, mas efetivamente ao estava no Malas-artes. E a Malas-artes foi uma confluência, quase que uma grande abertura de linhas, de pessoas em um dado momento política, que viam a possibilidade de juntar forças, apesar de diferenças de direções, de tendências, ou ideológicas, e de criar um pouco o que seria a frente ampla que politicamente se criou, culturalmente. Quer dizer, é curioso porque historicamente todas as diferenças viáveis e possíveis que mesmo os participantes de Malas-artes viam entre si com a história, com o tempo, se bem que são muito pequenos, são bônus muito próximos, então foi uma coisa muito importante nessa primeira mobilização, de uma pluralidade de linhas, mas em direção à uma legítima contemporaneidade, combativa que abrisse perspectiva para um espaço reflexivo diferente, do que aquilo que era o olhar oficial, culturalmente naquele momento o olhar oficial das elite brasileiras era um pouco ainda baseado na figuração, em uma certa modernidade figurativa, e que tinha os seus valores, e que se identificava como uma certa esquerda, então a questão das linguagens não era levado em conta. Então Malas-artes vem como que atualizar culturalmente a presença da investigação das linguagens, da importância da especificidade do pensamento de linguagens diversas, nas questões vigentes do país, da cultura no país. Eu acho que isso, esse espírito... pelo que eu me lembre de testemunhar um pouco o contexto, acredito eu que o Rubens era uma das figuras centrais nisso, com essa capacidade dele, essa habilidade dele, de congregar e de levar as pessoas adiante em direção a algum movimento, à alguma manifestação, à fazer a acontecer, eu acredito que muitos Malas-artes se deva à iniciativa do Rubens Gerchman.
CLARA: Hoje você está... eu vejo que você está envolvido com a EAV, com a escola, você tem dado umas aulas, uns...?
TUNGA: Não, eu tenho uma aula não necessariamente a EAV, eu dei uma aula, me convidaram para dar uma aula inaugural, eu vi na possibilidade e para eu ouvir o discurso da Lisette que é atual Diretora, o desejo, a vontade exatamente de retomar o projeto e o programa do Rubens, acho que as circunstâncias são diferentes, eu não me sinto envolvido com a instituição porque realmente eu estou longe dessa questão institucional, mas o nosso primeiro encontro a Lisette, que era uma pessoa que apenas conhecia, e que nos tornamos amigos, se deu exatamente na evocação dessas posições que foram adotadas, as construídas quando o Rubens voltou e fundou a escola, quer dizer, eu acho que a marca que ele deixou foi tão verdadeira, foi legítima, que ainda se sente a ausência, ou a necessidade que por circunstâncias históricas que na época se fizeram, faça outras circunstâncias hoje, essa mesma posição, parece ainda ser a posição adequada a tomar, de criar uma pluralidade de linguagens, de criar uma pluralidade de identidades, que são características do nosso país, do Brasil, há diferença da circulação internacional. Ou seja, certo princípios que o Rubens viu muito lucidamente parecem continuar sendo urgentes hoje em dia, e o... parece que no Parque Lage a diretoria tem como paradigma aquela modelo que foi um pouco, enfim, foi se dissolvendo com a ausência dele, enfim.
BERNARDO: Eu queria também entender, porque é um outro enigma na nossa pesquisa do Gerchman, esses anos 70, porque ele vai para Nova Iorque, e a obra dele sai do quadro, da figuração, e vira uma coisa muito conceitual. Nos anos 70 é um período que é transformador, a arte aberta que topam tudo, vem essa desmaterialização dos objetos de arte, como é que era esse cenário para você Tunga, os anos 70 eles são únicos, assim, eles são reeditáveis?
TUNGA: É uma pergunta complexa, os anos 70, cada década é única, que cada muca de tempo é diferente da outra, se os anos 70 eu acho que houve uma urgência de uma certa reflexão, reflexão essa que vem preparar, pode se ver assim também, a eclosão de uma arte que nos anos 80 aparece já com um vocabulário muito mais amplo, é como se fosse necessário um recuo e uma reflexão intensa, e uma reflexão sobre a linguagem para depois poder voltar ao exercício de uma linguagem plena, essa é uma visão possível. Eu me lembro que a volta do Rubens depois disso, foi uma exposição no MAM que ele fez, muito surpreendente, aonde conviviam obras de vários períodos diferentes, ele no auge da atividade artística dele, e aonde estava a presença maciça de uma reflexão mais próxima à arte conceitual, de uma presença estética mais seca, mais reflexiva, e que você vendo no conjunto da obra dela, fazia uma coerência absoluta, embora tivesse uma aparência do ar do tempo, do ar dos anos 70, era completamente inserida e coesa à trajetória deles, quer dizer, você vendo historicamente hoje se coloca assim, então muitas vezes, determinações históricas, exteriores ao trabalho, se apresenta ao artista, e termina se colocando como uma oportunidade de se investigar um viés da obra e que às vezes, está escondido sobre outros. Então eu acho que essas tendências, e o que foi a arte conceitual enquanto tendência nele momento, levou todos os artistas comprometidos com a atualidade, a um tipo de reflexão sobre a linguagem que foi muito importante, e assim foi também para o Rubens.
BERNARDO: É porque no fundo a minha pergunta era justamente isso, o lugar que que eu estou querendo investigar é esse lugar de, se... que foi uma pergunta que eu fiz, se eu não engano, acho que foi para o Antônio Dias, é como teria sido a obra do Rubens, se ele ao invés de ele ir para Nova Iorque, ele ter ido para a França...
TUNGA: ...ou para o Pequim, ele foi para Pequim. Isso, cada um vai para um lugar, e é evidente que isso vai alterar. Assim, o que a arte brasileira tem de diferente? É uma poeira que você tem em baixo do pé, porque somos todos hominídeos, somos acidentalóides, e sabe, convivemos mais ou menos parecidos mundo afora, e cada território alguns hábitos e algumas determinações daquilo que se chama cultura, termina nos levando a aprofundar um aspecto desses humanos mais do que outros, e eu acho que a efervescência de Nova Iorque era um lugar fascinante para os artistas, porque parecia ser uma capital do mundo naquele momento. Então levou muita gente para se congregar lá, e eu acho que foi para algumas muito importante, na elaboração do projeto do Parque Lage, por exemplo, não sei se para a obra dele foi tão importante assim, mas para essa elaboração que era questão de vídeo, de certo foi determinante, porque eu tinha uma modelo de escola bastante livre em Nova Iorque, que serviu como paradigma para ele trazer e adequar esse modelo, que seria importante, ele não trouxe o modelo, ele pensou a partir daquele modelo, a possibilidade de fazer uma coisa mais ampla, mais livre aqui, e mais adequada aqui. Enfim, o que teria sido se ele tivesse isso para a China? Não sei, o Merzbau, arte nas paredes, ou artes... na França, não sei também, uma coisa mais de diálogo, de reflexões, enfim, eu acho que o artista é uma espécie de generalista de clínico geral, então como clínico geral faz muito você ir descobrir outras especificidades em outros lugares, e trazer e enriquecer a sua visão que você tem sobre o humano, e que não seja uma visão local, e uma questão só e sim uma visão plural, muitas vezes, você vê na expressão no olhar, um problema na perna, digamos.
BERNARDO: Eu estava te perguntando isso, porque assim, é uma coisa que a gente se pergunta muito, nesse 1 ano e meio que a gente está nessa história, que é a gênese dos anos 70, porque a gente toda hora a gente fica se perguntando, o mundo encaretou?
TUNGA: Nos anos 70?
BERNARDO: Não, o mundo encaretou hoje? Porque essa gênese e a mudança, me parece ser muito experimental, é por isso que eu me perdi naquela pergunta, que eu estou tentando entender essa gênese dos anos 70.
TUNGA: Eu acho o seguinte, estamos em plenos anos 70, vamos colocar assim, ninguém aguenta mais no mercado de arte, ninguém aguenta mais as instituição geradas do jeito que são, ninguém aguenta mais uma certa configuração da arte, da forma como que está sendo colocada, como uma parte do capital, do mundo capitalista, como um instrumento de consumo, eu acho que o século 21 chegou, quer dizer, quem tem 20 anos passou 15 anos no século 21, a luz da informática, a luz de um outro modo de circulação das ideias, a luz da vigência, da eminencia do pensamento ecológico da importância desse pensamento, em um outro modo de sentir. Então eu acho que hoje a gente está vivendo em uma situação muita próxima aos anos 70, de gente jovem querendo experimentar a arte, não ver a arte, comprar a arte, conseguir a arte, não, querendo experimentar aquilo que vai virar a arte, e eu acho que é esse modo que foi o que talvez hoje a gente reconhece nos anos 70, que era uma inquietação, aonde a arte e a vida parecia uma coisa só. Eu acho que é uma coisa muito atual, e eu tenho visto isso nessa geração atual.
CLARA: Eu queria que você... eu lembro assim dos encontros, de uma conversa assim, tipo um almoço aqui, a gente aqui o dia inteiro, longuíssimo e tal. Queria que você falasse um pouco dessas trocas, esses momentos livres, porque ou eram dois artistas, ou eram apenas dois amigos que falavam, que... sabe, como é isso que nascia, rolava, ou até onde ficavam juntos?
TUNGA: Não sei se eu teria um causo, mas era exatamente isso, quando... tem essa coisa de você ser artista a rigor, você não tira um horário e diz, bom, agora eu vou começar a trabalhar, eu não trabalho assim, eu estou trabalhando o tempo inteiro e a rigor eu não estou trabalhando nunca, eu estou me divertindo, eu estou vivendo, e é desse viver que surge aquilo que eu faço, que é a expressão desse modo de viver, assim com isso é para mim, assim também era para o Rubens. Então a gente tinha muito tempo disponível, porque não tinha nenhum tempo disponível, porque a gente sabia que estando perdendo tempo a gente estava ganhando tempo trabalhando, ou seja, conversando, pensando, e havia uma proximidade com o trabalho também, de mostrar o que estava sendo feito, quer dizer, muitas das coisas que a gente mostrava um para o outro ou conversava, jamais viu a luz do dia como obra de arte, era o pensamento que estava sendo feito na hora, até o bonitinha, eu posso te dizer que eu fiquei muito emocionado quando você me trouxe aquela caixinha, porque era um gesto típico do Rubens, de chegar com uma caixinha, me mostrar, e dizer assim, é um pensamento que eu estou fazendo, aí eu subia, ia no terceiro andar, e mostrava uma coisa que era um fragmento, sabe? Essa intimidade do começo do surgir, de um trabalho, de uma obra, é que é uma coisa apreciável, e eu acho que voltando aos anos 70, eu acho que eu encontro hoje em dia em quem está apalpando, em quem está começando a fazer coisas, e toda a via não está assim nesse desespero de querer achar uma galeria, uma exposição, e sim de querer fazer, e eu acho que esse exercício que eu tinha com o Rubens e o Rubens tinha comigo, pela amizade, pelo fato de a gente ser vizinho também, se cruzar toda hora, está disponível a perder tempo, é que nos viabilizou essa coisa da vida, que é imperdível. Não, às vezes, não tinha nada marcado, eu saia aqui para ir até ali, ele também está saindo, falava assim, o que você vai fazer? Vamos até lá em casa, vamos olhar não sei... e passavam horas, assim.
CLARA: Comendo jambo?
TUNGA: Comendo jambo, extremamente produtivo, fazendo arte, pensamento.
PEDRO: São perguntas assim, por exemplo, porque eu fico muito curioso, no seu território lá o químico, o que eu acompanho a sua obra, sei lá, desde garoto, assim. Primeira vez que eu fiquei chocado com uma obra sua, foi quando no Louvre, aquela que colocou em baixa da pirâmide assim, que eu falei, não acredito. Eu em relação bem novo assim, que é esse cara mesmo? Me deu um choque assim, aí depois em Inhotim quando eu pude ver tudo junto assim, eu acho que os artistas eles tem um território para onde eles se reportam, para eles... um território dele imaginário assim, do que acho que cada um vai construindo o seu, e vai sedimentando ao longo da carreira. Eu queria que você pudesse ir só de vagar, um pouco a respeito disso seu, não é explicar, eu não quero nenhuma explicação, mas da onde veio essa... qual é o comichão assim, o que é impulsiona você a continuar trabalhando ainda nesse momento, por exemplo, e para onde você se reporta, quando você se sente órfão de criatividade assim, para onde você volta?
TUNGA: Olha, eu quero continuar trabalhando, eu acho que cada vez é a primeira vez, é sempre uma experiência... a gente está sempre recomeçando, a gente não se aposenta, quer dizer, enquanto houver essa inquietação, isso aí não há sombra de dúvida. E eu acho que há questões fundamentais que povoam a sua existência, e as quais você se esbarra com elas frequentemente, muito cedo eu compreendi que havia uma questão que era a energia da conjunção, é como as coisas, como duas coisas, quando colocadas juntas, cria uma terceira coisa que não está nem na primeira nem na segunda, e como é que é essa mágica? De juntar dois coisas, que é a mesma mágica de juntar duas palavras e criar um sentido, que não está na primeira e nem na segunda, de juntar duas pessoas que não se conhecem, e de repente elas se amam e produzir uma terceira, ou produzem um desejo, essa energia de conjunção que eu chamo, a investigação sobre o que é essa energia, que é que eu acho que me move, e é um pouco a questão de saber o que somos nós, hominídeos, o que somos nós humanos, o que faz de nós humanos, o que fez de nós há 15 mil anos atrás, depois, de 100 mil anos de animalidade, aonde só existiam alguns gestos perdidos em cavernas, há 15 mil anos atrás, a gente passar por aquilo que se chama uma revolução neolítica, que foi você começar instrumentalizar através da sua mão e do seu pensar, e dominar as coisas, e criar, e fazer plantação, fazer agricultura, não existia, você só colhia, e ao invés de caçar os animais, junta-los e fazer procriar, e ter a sua comida ali, e perceber que daquela agricultura que você fazia, o grão germinava, mas essa energia de conjunção era talvez uma deusa da terra, que fazia aparecer aquilo, e essa ideia de uma deusa da terra, já nos fez pensar de que havia uma mitologia, de que havia uma energia oculta, ou algo que se podia fazer em homenagem a essa deusa da terra, para que ela fizesse que a colheita fosse boa, e que isso são 15 mil anos, não é nada, é muito pouco tempo. E eu acho que tentar compreender essa energia de conjunção, é o que me faz continuar me mexendo, por quê? Porque eu sou capaz de criar conjunções, e me surpreender, o tempo inteiro, não criar um novo, talvez desvelar coisas que não tivessem... que não fossem acessíveis à percepção, ao sentir, à visão, por que o novo? Por que descobrir coisas? Para melhorar, para ser mais humano, para ampliar o território daquilo que é humano, para sentir mais, para sentir mais intensamente, para estar maiorias próximo ao outro, para tentar criar uma coisa maiorias harmônica nesse diabo dessa existência.
PEDRO: Uma coisa que eu uma vez em um site assim que eu tive vendo o seu trabalho, lá em Inhotim, cara, é justamente isso, porque o tempo é uma abstração que a gente cria, o tempo entre a tua ideia, e aquelas coisas estarem no mundo, aqueles objetos, se você parar para pensar, ele é uma abstração, assim, existe a ideia, e existe aquelas formas, isso foi o que me chocou assim, o que me fez olhar de uma forma assim, parece uma coisa de alquimia mesmo, que é enfim, concretizar ideias, ideias brutas em alguns casos assim, isso que eu achei muito interessante assim, o cara manipula, sabe fazer energia.
TUNGA: Sim, a palavra é bonita. Eu acho que quando você ouvi música acontece isso, tem músicos que inventam tempos diferentes, eu acho que artistas fazem isso, são temporalidades diferentes, naquele pavilhão, você andando, de repente você... o futuro parece que está no passado, o passado está no presente, as coisas se movem dentro do tempo, não do mesmo modo que como que a gente caminha na rua, e sabe que daqui até ali vai demorar, enfim, esse tempo fica em suspensão, esse efeito, digamos assim, é uma capacidade de usar energias, de coordenar energias, de certo modo, com certas harmonias, e que deixam as coisas em suspensão, e eu acho que isso é a música das coisas, saber ouvir as músicas das coisas, é saber colocar uma coisa ao lado de outra coisa, que não tem nada a ver, e ela passa ter a ver, e ela produz uma terceira coisa, por exemplo, e acho que você tem razão.
"Os hippies viraram yuppies e entraram pra Wall Street, ai quebrou uma corrente anticapitalista que era o projeto daquele momento." Jards Macalé